*Bertino de Miranda
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Assassinato de Lobo de Souza. – Presidência de Felix Malcher e Francisco Vinagre. – Volta da Provincia á Legalidade. – Jorge Rodrigues.
O assassinato de Lobo de Souza se sabe em Manáos por duas vias; uma, é um ofício do padre Prudêncio Tavares, chefe da resistência legalista no Tocantins; outra, uma carta de Porfirio da Costa, antigo Morador da Barra. Esta é lacônica e imperfeita. O ofício é mais minucioso; dele nos aproveitamos para compor este período.
Henrique Cordeiro pediu logo uma sessão extraordinária á Câmara, que se reúne duas vezes. Assentam unanimemente que ninguém abandonará a Villa; todos se comprometem a ficar fiéis á Regência. A Câmara envia às outras colegas cópias das Actas de 4 e 13 de abril.
A de Luzéa responde em 8 de julho. Desde maio que em sessão extraordinária (dia 4) havia decidido fazer guerra de morte ao intruso governo de Malcher e Vinagre, que são ainda os corypheus da primeira in- vasão. Um dos Vereadores (Pedro Pacheco) adivinha talvez os excessos da reação legalista, tão cruel e tão barbara como a dos Cabanos. Que se use, portanto, de generosidade; «revoltosos embora, diz ele, são brasileiros; paraenses desviados da ordem, mas, em todo o caso, patrícios e irmãos. Obram, se rebelando, por uma paixão caprichosa. Aos legais, porém, não sucede o mesmo; devem agir com calma, com segurança, com elevação de espírito» (ibid., Acta cit. de 4 de maio). Apesar desses conselhos e deste bom senso, Luzéa é o primeiro Município que se bandeia com os Cabanos e inaugura o Terror na Comarca.
Malcher, solto de sua prisão na Fortaleza da Barra, fôra, com efeito, aclamado Presidente e Francisco Vinagre Comandante das Armas, logo após a morte de Lobo de Souza. A Capital caíra por completo nas mãos dos Cabanos. Os acontecimentos sucedem-se uns aos outros vertiginosamente. Mal se inteiram em Manáos dessas mudanças bruscas, quando outra lhes chega n’uma viagem extraordinária. Ângelo Corrêa, o Deputado que obtivera maior número de votos, assume, nesse caractere, a Presidência da Provincia. É um simulacro apenas de governo. Só a Esquadrilha e Tocantins o reconhecem como tal!
Ângelo Corrêa concita os amazonenses a não quebrarem «os laços de união». Devem conservar inalteráveis os brios, a honra, a obediência, enfim, ás leis. Os subscritos destes ofícios são um favo de mel derramado com muita arte; subscrita sempre Câmara da benemérita Villa de Manáos». Ao – «A’ remeter uma proclamação da Regência não se esquece de afirmar que «prestes está a cair sobre a cabeça dos anarquistas o raio da justiça». D’ora em diante (23 de junho) devem dirigir toda a correspondência ao novo Presidente, Marechal Manuel Jorge Rodrigues.
Já então a anarquia lavra outra vez na Capital. O Marechal fiara-se em demasia nos protestos de Francisco Vinagre, que escolhido substituto de Malcher e morto este, é agora arbitro de tudo. Parece um espírito calmo, que não se deixa arrastar a nenhum desatino, salvo se influi nele um dos irmãos. Nas. desavenças com o seu antigo chefe a maioria coloca-se sempre do seu lado. Alguns de seus rasgos de estratégia guerrilheira provam que, embora rústico e quase analfabeto, podia vir a ser num excelente táctico. Malcher era doutro estofo. Orgulhoso, muito cheio da abastança em que vivia, antigo miliciano, agricultor, e cônscio, além do mais, que não podiam prescindir do seu concurso, não admite que ninguém obste ás suas decisões irrefletidas. Com Grenfell, nos dias posteriores a Independência, enfrenta Baptista Campos; é o único que se quisesse podia eliminá-lo do cenário político. Seu primeiro ímpeto é sempre puxar a espada e investir aos berros; mas impulsivo voluntario, a um gesto, a uma frase amiga, voltava, de repente, a serenidade primitiva. Infeliz! escreve um de seus panegiristas; parece que uma força oculta o arrasta a estas desgraças; seus princípios não foram estes». (História Abreviada das Revoltas do Pará-1851). Eduardo Angelim é um adolescente de palavra fácil e gestos fascinadores. Declama nas reuniões e nas praças públicas; é o orador predileto daquela amalgama de facínoras e fanáticos. Morto um dos Vinagres, que comanda o ataque geral, Angelim o substitui e à frente dos Cabanos avança pelas ruas mais centrais da Cidade. A loucura de investir cinco dias contra o Trem de Guerra demonstra uma coragem que infelizmente contrasta com a tibieza nos arraiais contrários.
O Marechal chegara sem tropa ao Pará e sem esperança de a receber pelo caminho. «Chegou com uma patrulha e umas orações que lhe deram no Rio de Janeiro para pacificar o Pará. É como se expressa um cronista (idid). Na Bahia recebera apenas uma pastoral do Arcebispo D. Romualdo, que não modifica o
seu aperto. Era sexagenário e brasileiro adoptivo. Assim alcunham aos portugueses que haviam aderido ao Império. Para se extremarem deles, os nascidos no Brasil adicionam sempre ao nome a palavra nato, distinção que perdura ainda muito depois de instalada a Provincia em 1852.
Outras causas, além das que já vimos, provocam a rebelião; elas se prendem primordialmente ás duas fases do reinado de Pedro I. Na primeira, é sincero e absoluto seu devotamento pelo Brasil; já na segunda é todo o inverso. Os emigrados enxameiam no Rio, fugidos á ferocidade de D. Miguel. Seu amor-próprio não pode ser ferido com a condição subalterna e humilhante de seus patrícios. Ele os vê por outro vidro de aumento. A ideia fixa do Imperador é provocar um rompimento formal com os seus súditos americanos.
Como Bolivar, tem a mania de libertar povos e fazer e desfazer Constituições. Ambos serviram a causa da Liberdade enquanto ela esteve perigando no campo da batalha e nas incertezas de êxito; assegurado este, e na hora de reconstruir e perpetuar a obra revolucionária, são elementos subversivos que se precisa eliminar. O ostracismo de Bolivar, sob a capa de que receiam as suas ditaduras, não teve outra causa. Nos dias angustiosos da Independência e da Restauração do liberalismo português Pedro I é a audácia necessária; nenhum outro o substitui; mas quando é necessário asselar os dois regimes políticos, sua presença é um perigo e um obstáculo. Por isso o eliminam, ou ele mesmo se elimina por si.
Si o Imperador tem, entretanto, motivos para se vingar, ele o consegue, melhor do que supõe, provocando a Abdicação. No Pará produz um grande abalo. Os cargos militares pertencem aos estrangeiros. Um inglês é chefe da flotilha com Lobo de Souza. Sua expedição ao Acará é um morticínio crudelíssimo, de que se vem gabar na Cidade, como se fosse um feito d’armas digno de uma marinha de guerra civilizada. Virá outro substitui-lo nesse com- mando; Andréas trará também um outro. Todos eles são brutais, vingativos, presumidos, e se capacitam de que devem levar tudo a ferro e a fogo.
Jorge Rodrigues só ao penetrar o território paraense vê a situação exata das cousas. A Esquadrilha Imperial balouça-se na baia de S. Antônio, a quatro horas de distância da Cidade. Em terra do- mina Vinagre, rodeado de sua gente e em contacto com alguns navios de guerra estrangeiros. Um de seus assessores prediletos é o Comandante da corveta portuguesa «Elisa», que se jacta de lhe ter inspirado muitos alvitres e lhe ter merecido grande afeto. Este se estende logo a todos os seus compatriotas; jamais eles gozaram de tanta liberdade. Do que se colige que o jacobinismo dos Cabanos tinha intermitências assas curiosas!