*Bertino de Miranda
XII
Liga do Baixo e Alto Amazonas. – Planos estratégicos adoptados em Santarém, Óbidos e Faro. – Dissensões em Manáos. – As primeiras vedetas dos Cabanos.
De Almeirim a Faro respira-se até 1834 um ambiente de abundância. As casas têm um aspecto senhoril; os agricultores e os fazendeiros vivem com certo fausto. Grandes plantações de cacau e fazendas de gado se estendem pelas várzeas e Terra Firme. É claro que a abundância traz a alegria. E esta, desde os começos do século XIX, é a nota predominante no Baixo Amazonas. Mais felizes que os Moradores da região inferior do rio, só muito tarde, quando Jorge Rodrigues abandona a Capital e se instala em Tatuóca, é que os Cabanos conseguem passar de Gurupá e se estabelecem no Icuipiranga. Em todo o caso, a caída da Cidade em poder dos rebeldes infunde, ao que se presume, um pânico enorme.
Santarém se prepara logo para resistir. Uns lembram que se intercepte todo o contágio com a Capital. Outros querem a ofensiva. Os mais sensatos propendem para uma coligação de forças. Sem embargo dessas divergências, todos concordam em reconhecer apenas o Presidente legitimo. Não se pode encampar, diziam os mais exaltados, «nem os crimes, nem os ataques, nem os assassínios de tantas autoridades civis e militares. Sobre este horror é que se eleva a Presidência o intruso e desgraçado Malcher. Morto este, Vinagre procede do mesmo modo (Off. e Act. de 21 de março de 1835). A defesa da Villa é confiada aos Guardas Nacionais e o bloqueio fluvial a dois barcos armados em escuna.
Óbidos se manifesta a 25 de março (1835). Modifica, entretanto, o plano adoptado em Santarém; assim se torna, segundo observam os entendidos, mais extensiva a salvação de toda a Comarca». Faro resolve aderir a 5 de abril, já sob a influência do Padre Sanches de Brito, o futuro herói da Legalidade de no Baixo Amazonas, Juruty oferece o adjutório prestadio de Romualdo de Souza Paes e outros proprietários.
O plano de Sanches de Brito é o mais racional. Concentra num ou em dois chefes o mando absoluto. No seu entender, Óbidos deve ser a base central das operações. De todas as medidas a mais eficaz é impedir o desembarque de pessoas suspeitas ou desconhecidas nas malocas dos índios e nas roças. Especialmente nas primeiras, aconselha ele, gente fácil de ser corrompida pelos malvados». Ver-se-á mais adiante que é exatamente por esse meio que os Cabanos alcançam penetrar nas Villas e Povoados. Faro envia um agente confidencial para Tupinambarana, o Padre Torquato de Souza. Luzéa se encarrega de fortificar a serra de Parintins.
Todos estes acordos chegam a Manáos trazidos por um próprio, com incumbência de pedir duas peças de pequeno calibre e trinta armas de fogo. A Câmara responde colocando-se ao lado dos patriotas. Esta é a crise em que se não deve olhar sacrifícios, na certeza de que, dando a vida pela Pátria, é doce a morte (Act. de 13 de abril). Dias antes, o Comandante Militar Silva Santiago, irmão do Comandante das Armas assassinado com Lobo de Souza, assina uma das Atas pondo este adendo debaixo do nome: Protesto defender a Lei e a Liberdade Constitucional de últimas.
Já em maio (1835), um mês depois de oferecer a vida em penhor & Pátria, principiam as rivalidades e as deserções. A Câmara tem de reunir para uniformizar ar medidas postas em prática e a apagar os ressentimentos entre os patriotas e autoridades. Parece que os Vendeiros, que representam a pequenina plutocracia do Termo, repelem a proposta, vinda de Cametá, de se proibir a remessa de viveres para Belém. coagida por aqueles, a Câmara declara que essa proibição não lhe parece bem fundada. «No Commercio, contesta, obra cada um como entende melhor a seus interesses». Um Vereador observa que já se começa a quebrar o compromisso contraído de não sair da Villa. Contra a expectativa de todos, o autor dessa proposta, aprovada em abril último, é quem primeiro se retira de Manáos! O segundo foi o Comandante Militar, sob a escuridão da noite, para o Tocantins. Fica-se, portanto, na inteligência aparta outro Vereador que o nosso colega e daqueles que a si mesmo se aclamam patriotas por excelência e que tanto zelo afecção pelo bem da causa publica, quando tudo demonstra que só prezam a sua causa particular..
Henrique Cordeiro é o único que não perde a calma e encara os factos com muito acerto e previdência. E possível que estas duas qualidades superiores concorram para a sua figura andar desfigurada nas crônicas posteriores à Cabanagem. É um homem enérgico e de atividade assombrosa. Pelo Código do Processo, como Juiz de Direito interino, acumula o cargo de Chefe de Polícia. A Câmara, que receia talvez o seu ascendente, não perde vasa em lhe reiterar
que é o governo econômico do Município. Estranha também o tom enfático com que ele redige os seus ofícios. São pequenas rusgas que mais tarde ou mais cedo terão de favorecer a vitória dos Cabanos. Em Mariuh, Cordeiro não é mais feliz. A Câmara repele os seus conselhos e as suas advertências; taxa de ir risória e ambição essa boa vontade infatigável de querer auxiliar a todos.
Em junho encontramos Cordeiro em Luzea, dirigindo, com a mesma fleugma e sem se escarmentar das repulsas anteriores, as preliminares da reação na baia de Maués. Com seu regresso a Manáos voltam os atritos. Seus desafetos se acastelam na Câmara e não cessam de molestá-lo. Cheia a medida, num momento de mau humor, declara-se demitido dos cargos que ocupa. «Por me ver coacto e vilipendiado até deliberação do Governo».
E’ difícil apurar se este rasgo de indignação intimida os Vereadores; ou si, como o perigo aumenta, Cordeiro afinal se impõe aos inimigos. O que é certo é que em outubro (1835) a Câmara reúne extraordinariamente, a pedido dele, para ouvirem ler uma carta avisando que em Juruty Sanches de Brito recebera notícia da segunda invasão da Capital.
Apesar do bloqueio no Baixo Amazonas, as avançadas dos Cabanos se aproximam de Manáos e procuram com muita habilidade observar e estudar o terreno; mesclam-se subtilmente com os Moradores e se fingem submissos e vítimas dos rebeldes. Antecedem de 70 anos os nippões, com o seu processo de espionagem, de propaganda surda e minaz, e sem que os espionados se apercebam do perigo. Com este sistema, nenhum dos primeiros ataques dos Cabanos deixou de ter êxito no Baixo e Alto amazonas. Em tudo são muito mais estratégicos e muito mais hábeis que a gente com que Angelim e Vinagre organizam a Revolta.
Todavia, é fora de dúvida que Cordeiro não foi dos mais iludidos com os ardis dos Cabanos. Seguiria todos os passos das vedetas que desembarcam na Villa e tratam de se misturar com os Moradores, ou com os índios, encarregados das plantações e roças que se prolongam até o Amatary. Entre os perseguidos por Cordeiro e que se fingia de mais humilde, conta-se Bernardo de Sena, o chefe da Expedição que em 1836 submete Manáos á obediência de Eduardo Angelim. Isto corrobora o que já se disse mais atrás, a escolha calculista, o disfarce engenhoso dos chefes nos reconhecimentos prévios, que reduziam depois os as- saltos a uma certeza matemática de triunfo.
Sena, já senhor da Villa e na presença da Câmara reunida com o povo e a tropa (Mem. de Sena in Act. extr. de 8 de março de 1836), declara que Cordeiro teve-o preso num calabouço durante três dias, meteu-o em ferros num lugar remoto, com sentinela há vista. «E depois de existir três dias preso fui em lançado pelas oito horas da noite em ferros, remetido para um lugar remoto e aí conservado com um guarda armado e municiado e remetido depois dessa data para a Capital da Provincia». Na versão dos Cabanos Cordeiro foi um flagelo. Parece que não se lhe pode fazer maior elogio.
*Bertino de Miranda (1864-1919). Jornalista e historiador paraense. No final do século XIX para início do século XX participou ativamente da vida social, política e cultural do Amazonas. O livro de sua autoria, que em partes levamos ao conhecimento do nosso público ledor, é um importante e esclarecedor documento sobre a História amazonense.
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