É compreensível que a memória social, política, artística, cultural, familiar se esvaia aos pedaços a cada ser humano que encerra o ciclo de passagem nesse campo de experimentações, até porque não é possível registrar idealmente os acontecimentos que marcaram a cada um, nem mesmo os que tenham tido oportunidades mais favoráveis e exercido funções de influência na vida da coletividade. Essa memória se esvai, restando fragmentos de artistas, cientistas, professores, políticos que gravam depoimentos sobre episódios que testemunharam. Ainda assim, restará uma só versão dos acontecimentos e o historiador vai se debruçar para entender e reconstituir o cenário da época, sob a sua ótica e a de doutrinadores.
Não é compreensível – e este é o ponto central desse artigo – que essa memória se esvaia com a perda de bens edificados e que são patrimônios da história da cidade e, sobretudo, representam as tradições acadêmicas, a formação de gerações. E que isso se faça por responsabilidade de quem deveria ensinar a preservá-las e esquece sua trajetória: a Universidade.
O que me incomoda, e julgo que tenha alguma autoridade para falar do assunto, e por isso venho a público declarar inconformismo e esperar que se reverta, é que os governos e a sociedade deixem de ostentar um dos símbolos da primeira Universidade do Brasil assim tomada conforme o conceito dos primeiros anos de 1900 e consintam com o abandono do prédio da Faculdade de Direito do Amazonas, na Praça do Torquato Tapajós, ao qual a galhofa de alguns resolveu timbrar de “jaqueira”, mas que abrigou a formação profissional de centenas de homens e mulheres que honram as letras jurídicas.
Explico: em razão de decreto presidencial n. 11.929, de 26 de fevereiro de 2024, dito para democratização de imóveis do patrimônio da União, a Universidade Federal do Amazonas foi levada a escolher quais prédios antigos iriam permanecer sob seu poder e uso. Nesse caso, tem-se notícia por fonte fidedigna de que a UFAM teria “desistido” do prédio da Faculdade de Direito, o qual, por essa razão, está sujeito à demolição, ao uso de menor valia por entidade nem sempre qualificada, ou a se tornar moradia popular, que são os objetivos do decreto.
Essa mesma Universidade já deixou escapar de suas mãos e se encontram em estado de abandono outros dois prédios que também são símbolo de sua história: as escolas “Saldanha Marinho” e “Nilo Peçanha”, nos quais os idealistas da Universidade Livre de Manáos depositaram energias e esperanças de edificarem uma sociedade igualitária, promotora do desenvolvimento social e econômica.
Até onde iremos com esse tratamento desalentador para a nossa geração e criminoso com as futuras gerações que não terão o direito de conhecer um exemplar sequer da memória urbana do que tanto se fala como período áureo da cidade. Um só dos prédios que foram alicerce da antiga Universidade de Manáos.
Não basta que daqui a tempos sobrem nichos de florestas, águas nos rios e igarapés, alguns animais silvestres que são do que mais se diz cuidar nos últimos anos em defesa do direito das futuras gerações a um meio ambiente harmônico e equilibrado. É preciso que haja vida humana e memórias de suas passagens, mas, do jeito que vamos, nem os arqueólogos com avançados robôs lunáticos serão capazes de encontrar vestígios da Manaus que tivemos.
Hora, pois, de repormos as becas conquistadas na Praça dos Remédios e agirmos no salvamento do templo do qual nos orgulhamos ter servido ao nosso estudo e formação de cidadãos e cidadãs de bem.
E assim se esvai a memória que poderia ficar.
Views: 3