
*Éder de Castro Gama
Continuação…
CAPÍTULO 3
Etnografia visual da procissão de Nossa Senhora de Aparecida do Lago de Serpa dia 12 de outubro de 2009.
Este trabalho foi apresentado como parte de um relatório ao Governo do Estado do Amazonas, ao PROARTE – Pesquisa Artística e Cultural, na Secretaria de Cultura do Estado no ano de 2009. A captura fotográfica foi realizada no contexto da pesquisa, sobre etnografia da procissão da Festa de Nossa Senhora Aparecida do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa. Buscasse interpretar o seu significado para as pessoas que participam anualmente da manifestação religiosa, no dia 12 de outubro de cada ano.
Nesta época, as pessoas da comunidade, tinham em suas manifestações culturais e nas suas relações de trabalho o discurso sobre as suas origens que remontavam aos remanescentes de escravos da Colônia Itacoatiara no séc. XIX e do processo migratório dos cearenses e maranhenses vindos para trabalhar nos seringais na década de 70 no mesmo século. A comunidade ainda não tinha se organizado para requerer da Fundação Cultural Palmares a Certidão de Autodefinição, como Remanescentes de Quilombo, documento que foi expedido somente em 05 de dezembro de 2014.
Porém, deixo claro que o registro dessa manifestação cultural serviu como uma tentativa de compreender um momento da construção de tecido sociocultural, em que a interdependência dos elementos presentes se torna visível, segundo as orientações de Fredrik Barth (2000), em se tratando de etnografia sobre um dado grupo étnico. Pois ainda, para este autor, um determinado evento pode ser vivido e interpretado a partir de diferentes modelos, de acordo com contexto cultural do participante. Neste caso, em 2009, as pessoas tinham na manifestação cultural da Festa de Nossa Senhora Aparecida, a oportunidade de serem visitados, tanto pela Igreja Católica, uma vez que congregavam na paróquia de São José da Área Pastoral Rural da Prelazia de Itacoatiara, e das comunidades próximas pela rodovia AM-010.
Conforme dito, “Lago de Serpa” aparece nos autos históricos no séc. XIX, como lugar rico de biodiversidade de plantas, peixes e caça. Foi o lugar de moradia de negros e indígenas da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa. Localizado a 10 km da sede do município, o Lago de Serpa, no ano de 2009, já era considerado Área de Preservação Ambiental – APA.
Avé – Lallemant apud Silva (1997, p. 94) comenta que os remanescentes da povoação da Colônia Itacoatiara deram origem ao atual bairro da Colônia, e a maioria de seus descendentes negros, morando no Lago de Serpa, passaram a viver da produção agrícola e do fábrico de carvão à lenha. Este fato histórico marca conside ravelmente a relação entre os moradores do lago de Serpa frente aos seus usos e costumes. Outro viajante do século XIX, o naturalista Henry Walter Bates, passando pela cidade de Itacoatiara no ano de 1849, presenciou, na época das festividades do Natal, uma expressiva participação de índios, negros e mestiços residentes no lugar
Em 2009, observou-se nas festividades de Nossa Senhora Aparecida do Lago de Serpa, no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, o pagamento de promessas de fiéis da comunidade de uma forma mais intimista, inclusive com a imagem doada por um promesseiro. Porém, na comunidade do Sagrado Coração de Jesus, há também os festejos no dia 22 de setembro, o dia que a Imagem de Nossa Senhora Aparecida foi achada no lago de Serpa, neste caso, uma festa mais aberta, com procissão fluvial e realização de novenário.
Segundo Oliveira (2005, p.11), a comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, está assentada na Área de Preservação do Lago de Serpa no município de Itacoatiara – AM, à margem esquerda da rodovia AM-010 a 10 km da sede do município. Possui cerca de cinquenta famílias, distribuídas na sede e no entorno do Lago, faz fronteira com a comunidade de São Pedro, também do Lago de Serpa, localizada pela estrada da Rondon. Na sede da “comunidade” do Sagrado Coração de Jesus, existe uma sede social, um campo para atividades esportivas, uma escola municipal (inaugurada em 2005) em estrutura de alvenaria, com três salas de aula, com o grau escolar de Educação Infantil, Ensino Fundamental (1ª a 4ª série) e duas salas de Educação de Jovens e Adultos – EJA (5ª a 8ª série), uma igreja católica e uma evangélica, um poço artesiano e energia elétrica, além de 10 boxes situados na praça da igreja católica para venda de produtos agrícolas produzidos pelas famílias do lugar.
A pesquisadora descreve que no município de Itacoatiara o Lago de Serpa era, até 2005, a única área protegida por uma Área de Preservação Ambiental (APA), criada pela Lei Ordinária nº 004/98 de 23 de setembro de 1998, conhecida como Área de Preservação Ambiental do Lago de Serpa. “Esta área estaria destinada à conservação da qualidade ambiental e os sistemas naturais ali existentes, visando melhoria da qualidade de vida das comunidades locais e o desenvolvimento econômico e turístico”. A APA do Lago de Serpa abrange toda a área do acidente geográfico conhecido como Lago de Serpa, que vai desde a rodovia AM-010, entre as latitudes 3º 04′ e 3º 09′; e as longitudes 58º 26′ e 58 º 34′, assim como todo o seu entorno e área de influência, entendendo-se como área alcançada por um raio de 2,0 km a partir de toda a sua margem e lugar de assentamento. O Lago de Serpa, situa-se entre o aeroporto e a estrada Am-010 medindo aproximadamente 15 mil metros de comprimento, por uma largura média de 100 metros e uma profundidade de 9 metros no inverno e 4,5 metros no verão (OLIVEIRA, 2005, p. 14).
Oliveira (2005) identificou que no aspecto econômico as famílias dependem da agricultura de subsistência (mandioca, macaxeira, milho, etc.), e da fabricação de carvão (que tenta entrar em conformidade com a legislação da APA) e pescado. A visitação turística do Lago não traz subsídios para as famílias remanescentes de maranhenses e cearenses, a não ser para algumas pessoas da cidade que têm “casa flutuante” e flutuantes com serviços de bar. Neste caso, aos fins de semana, a estrada que dá acesso à comunidade é tomada por um trânsito de carro e moto de banhistas que vêm da cidade para o Balneário e Mirante do Serpa, de propriedade particular de um comerciante popular da cidade de Itacoatiara. Este espaço é composto por mesas com chapéus de palha, serviços de restaurante e bar, bem como um flutuante de madeira sustentado por garrafas PET e galão de combustível de polietileno que está às margens do Lago, onde os banhistas relaxam em dias de sol e aproveitam para passear de canoas, chalanas e jet-ski.
Em observações em 2009, nota-se que os moradores da comunidade Sagrado Coração de Jesus não se sentem tão à vontade com o constante movimento de pessoas que se dirigem até os mirantes, pois aos fins de semana, o lugar fica muito movimentado, com um fluxo intenso de carros e motos pela estrada que dá acesso aos sítios, que andam em alta velocidade, comprometendo a integridade dos moradores que andam a pé e de bicicleta. Os moradores também se queixam do translado que é feito no Lago de uma casa para outra, pois aos fins de semana, se tem um trânsito intenso de jet-ski e voadeira, comprometendo o transporte de crianças e idosos. As constantes idas e vindas no Lago, movimenta a água calma ao ponto de cometer por algumas vezes alagamento das canoas que estão a remo. Os moradores afirmam que com a criação dos balneários o Lago passou a ficar mais sujo, com poluição de óleo dos jet-ski e das latas de cervejas e refrigerantes que os banhistas jogam na água.
Oliveira (2005, p.12) identifica que a denominação Comunidade do Sagrado Coração de Jesus, ocorreu devido à homenagem ao padroeiro de mesmo nome, que é festejado anualmente entre os dias 19 e 27 de junho. “Segundo relato dos moradores mais antigos do lugar, esta comunidade teria surgido na chegada da família Ferreira Nascimento e migrantes de remanescente de quilombos oriundos de outros estados, que formaram o pequeno povoado e organizaram a comunidade”. Antônio Loureiro (2007), ao comentar sobre a vinda de africanos escravos para trabalhar no Amazonas, registra que
“em 1857, o presidente Ângelo Tomaz Amaral noticiava que a Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, pertencente ao Barão de Mauá, recebera pelo Aviso de 30 de dezembro de 1856, do Ministério da Justiça, 50 negros apreendidos, em São Mateus e Serinhaem, para trabalharem na Colônia de Itacoatiara, instalada por aquela empresa. Do total inicial, aqui só chegaram 34, pois dois haviam falecido na viagem. Seriam eles os últimos africanos entrados no Brasil, conforme a citação de Joaquim Silva, em seus textos didáticos? São Fatos a Esclarecer? (LOUREIRO, 2007, p. 256)”.
Desta forma, observa-se a presença de escravos no Amazonas vindo de outros lugares do Brasil e da África. Em Itacoatiara, figuravam como trabalhadores de Companhia de Navegação e Comércio, nos trabalhos agrícolas e dos afazeres domésticos.
Porém, cabe destacar que relatos históricos dos Cronistas Viajantes do século XIX fazem referência ao Lago de Serpa como um lugar de retiro de descendentes de negros e de moradia de “índios muras”. De acordo com as pesquisas históricas de Silva (1997) o mesmo descreve Robert Avé – Lallemant visitando o Lago em uma pequena montaria no ano de 1859.
Robert ficou encantado com a floresta, os pássaros, os macacos, a vitória-régia, o trabalho da pesca do pirarucu e das tartarugas. Conversou com alguns de seus habitantes, índios Muras aculturados, misto de agricultores e cortadores de lenha para Companhia do Amazonas, liderados por um português. Chamou-lhe atenção um grupo de índias “sob uma varanda, sentadas com um bando de crianças bronzeadas, todas as idades e na mais inocente nudez. Faziam pequenos trabalhos manuais, redes, etc., enquanto os homens gozavam do dolce far niente a que têm direito em todo o Amazonas. Arcos e flechas para pesca, arpões com as pontas móveis, anzóis, remos, etc., constituem principalmente os utensílios domésticos, tudo o mais sendo inteiramente rudimento”. No lago de Serpa, provou tacacá (ele o chama cacacá), “a bebida nacional dos Muras” mingau quase líquido de goma de tapioca temperado com tucupi, jambu, camarão e pimenta, que bebeu com maior naturalidade”, achando-a bem gostosa e nutritiva (SILVA, 1997, p. 109-110).
É interessante observar a presença de indígenas Muras que fixavam residência no Lago, bem como sua importância para o abastecimento de madeira para Companhia do Amazonas, que tinha sede em Itacoatiara, além do registro do tacacá como patrimônio imaterial e material de uma culinária local e regional. Apesar de o historiador está pautado numa interpretação evolucionista da identidade indígena, utilizando-se da noção de aculturação para explicar o contato entre “brancos e índios”, é preciso fazer um trabalho de pesquisa profunda, no sentido de revelar as diferentes identidades que habitaram e habitam o Lago de Serpa. Utilizando-se da noção de grupos étnicos e da auto-definição identitária e da recuperação da memória dos moradores mais antigos do lugar, seria possível uma atenção diferenciada do poder público local e municipal, para valorização das práticas agrícolas tradicionais que, neste caso, é a produção de carvão, para uma prática de manejo que atenda os anseios da comunidade
Márcio Souza (2009, p. 276) ressalta que o período da seca e a depressão econômica levaram o Nordeste brasileiro, especialmente o Estado do Ceará, “a participar com maior número de imigrantes, que a partir de 1877 foram chegando em levas desordenadas, para a seguir se transformar numa rotina perversa, resultando num quadro terrível de exploração humana”. Quadro este que retrata a dura realidade dos trabalhadores nos seringais do alto Purus, Rio Madeira e Acre. Neste caso, as cidades serviam como ponto de ligação econômica por meio do “aviamento” e abastecimento dos seringais.
Dias (S.D, p. 142) ressalta que o Ceará foi um dos estados que mais concorreu para o aumento da população do Amazonas. “As colônias e núcleos agrícolas colocam-se como alternativas para os nordestinos: Colônia Maracaju, Santa Isabel, núcleo de Moura, Carvoeiro, Moreira, Thomas, Silves e Manaus, receberam contingente significativo de cearenses. Enquanto esperavam o deslocamento para o interior, muitos deles trabalhavam nos serviços de melhoramentos das praças e ruas”, neste caso, da capital e de cidades que vivenciavam o fluxo econômico da borracha. Para Oliveira (2007, p. 67 – 68) a imigração nordestina ocorrida no ano de 1877, serviu como mão de obra escrava para os “coronéis de barranco” com intuito de aumentar a produção da borracha. “Durante muito tempo, redes carregadas nos ombros de escravos e trabalhadores dividiam espaço com pedestres, nas ruas e ladeiras de Itacoatiara. Aos poucos, o advento da borracha propiciava mudanças significativas para o espaço da cidade”. Desta forma, a “cidade sobre rodas” começou a aparecer, com a necessidade de transporte de cargas, como madeira, tijolos, castanha, carvão, borracha, cacau e outros.
Oliveira (2007, p. 71) destaca que, com o boom econômico, ao poder público coube a iniciativa de modernizar, embelezar e adaptar Itacoatiara às exigências econômicas e sociais da época, e este foi o principal foco dos administradores públicos. “A modernidade retrataria um novo estilo de vida e as transformações no espaço transcenderiam à alma. Com os ares da modernidade, a cidade não só substitui a madeira pelo ferro, a palha pela telha, o barro pela alvenaria, mas também transforma a paisagem natural, destrói antigos costumes e tradições, expande a navegação, desenvolve a imigração nacional e estrangeira”. É importante salientar que o autor, descreve em uma nota de rodapé que, em 1879, no distrito Itacoatiarense de São José do Amatary, foi implantada a Colônia de Imigrantes Nordestinos “Pedro Borges”, custeada pelo governo, com doação de lotes e a cessão de títulos definitivos às famílias, bem como a instalação de posto médico, usina de luz a vapor, mercado público e serviço telegráfico. Apesar de a Colônia dos nordestinos ter sido instalada em São José do Amatary, alguns dos migrantes fixaram residência no Lago de Serpa, conforme o relato dos moradores do lugar
A Festa de Nossa Senhora de Aparecida do Lago de Serpa configura-se como “denominador comum” por congregar as pessoas da comunidade do Sagrado Coração de Jesus, pessoas de comunidades circunvizinhas e da cidade de Itacoatiara. São pescadores, agricultores e comerciantes. Para Galvão (1976, p. 27) as festas de santo preservam tradições antigas e criam laços de solidariedade entre os indivíduos, em que “os brancos, gente da cidade, são procurados pela gente mais pobre para apadrinhar seus filhos. Sua proteção é sempre pedida para a realização de festas das freguesias”. Deste modo, observa-se que esta relação se estabelece na comunidade do Sagrado Coração, uma vez que a sede da igreja foi erguida em alvenaria após a aproximação de comerciantes da cidade de Itacoatiara que tem sítios ao redor do Lago.
Galvão (1976, p. 28-30) descreve que em Itá “os católicos têm a sua igreja e um sem número de capelas”, ele mostra que na cidade existe um Santo Padroeiro, além de outros Santos chamados de “santos de devoção pessoal”. Nesse caso, a Festa de Nossa Senhora de Aparecida do Lago de Serpa é uma festa que não consta no calendário festivo da Prelazia de Itacoatiara e nem é a festa oficial da comunidade católica do Sagrado Coração de Jesus. A imagem que foi achada no Lago é tomada pelos fiéis como “santa milagreira”, observam-se os inúmeros relatos de graças alcançada que são atribuídas a ela. Mas também há milagres atribuído à imagem de Nossa Senhora Aparecida, que foi dado por um fiel como pagamento de promessa e é a imagem que sai na procissão no dia 12 de outubro.
Maria Madalena Marques, 67 anos de idade, natural do Lago Serpa, filha de João Marque Macedo e Raimunda Soares, conhecida na comunidade como Dona Madalena, trabalhou como carvoeira (na produção de carvão) e é aposentada como agricultora. Ao ser perguntada por que estava vestida com uma bata branca, respondeu: É um pagamento de promessa. Isso foi uma doença que eu tive há um ano atrás. Eu não andava, era umas dores que apareceram nos meus pés e nas minhas mãos. Minha vida era ficar bolando em cima de uma cama. Aí, meu esposo comprou uma rede, eu ficava lá. Foi quando minha filha se pegou a Nossa Senhora. Se terminasse aquele sofrimento, eu comprava uma roupa, para no dia Dela, eu ir com essa roupa. (…) foi quando este ano, minha filha veio e disse, Mãe a senhora sabe, tem que pagar promessa?! ‘Tá’ aqui! Para a senhora acompanhar a procissão com um manto.
Galvão (1976) nos demonstra as formas de comunicação ou aproximação com o Santo, e nesta relação “a comunicação ou aproximação com o santo para dele se obter auxílio se faz, sobretudo, através de ladainhas e novenas, independente de tratar-se de oração da igreja, ou na capela, ou nos pequenos oratórios domésticos”. No Lago de Serpa, às formas de comunicação com a Santa ocorrem, também, da mesma forma. Vale ressaltar o profundo grau de respeito com a imagem, uma vez que, durante a procissão, não se tem um contato direto com a imagem da Santa e o corpo do fiel que a carrega. A imagem é envolta a um manto branco em crochê. Este cuidado marca claramente a distinção do que é “sagrado” e do que é “profano”.
Antes da saída da procissão, um dos dirigentes da comunidade, o Sr. Ernando Soares Macedo, (idade não informada) lembra ao povo da importância da realização da procissão no dia 12 de outubro: Fizemos em barco, fizemos em canoa, fizemos caminhadas fluviais (referente aos festejos em setembro [grifo nosso]. E, agora, nós estamos fazendo também por onde, nós andamos dia e noite. Com o poder e com a misericórdia e com a vontade a gente vai mais com a imagem dessa, que é nossa Senhora e do nosso senhor Jesus Cristo. Olha, eu quero dizer a vocês que não é em vão uma caminhada dessa. Nós sempre precisamos de fazer uma luta, um sacrifício. (…) Olha gente, nós que lutamos pela unidade (…) A gente se sente tão feliz. Ora, a gente faz uma caminhada dessa no meio do povo. Os meus companheiros de boa-fé. Fazendo essa alegria. Imaginem a nossa Mãe o nosso Pai que está lá no céu. Que Ele faz tanta questão pela nossa unidade, da nossa fé. Eu sempre falo sempre as nossas lutas. Das caminhadas, nós temos uma recompensa muito grande do nosso Pai. Essa luta é realmente em prol da construção de nossa comunidade.
Pode-se considerar também as festividades religiosas da Comunidade do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, dentro de um “ciclo festivo”, onde a estrutura que se estabelece se dá pela eleição da diretória da comunidade. Ela fica responsável para cuidar administrativamente da igreja e da coordenação das equipes de trabalho no período das festas. A relação do Sagrado e Profano ocorre por toda estrutura ritualística estabelecida no decorrer das festas, a partir da missa, dos batizados, crisma e do novenário, e o profano pela estrutura festiva do arraial.
Jaílse dos Santos de Melo, 49 anos, casada com um descendente do Lago de Serpa, mora a mais de 30 anos no lugar. Ela comenta que existe o festejo de Nossa Senhora de aparecida, da imagem que foi achada no lago no dia 22 de setembro, com a procissão fluvial; o festejo do dia 12 de outubro, com a imagem doada por um promesseiro e a Festa do Sagrado Coração de Jesus, que é o padroeiro oficial da comunidade, realizado pela Igreja Católica. “A Santa que foi encontrada no rio né, a gente festeja dia 22 de setembro. Foi Encontrada por um senhor que morava na boca do Lago de Serpa, aí ele morreu, os filhos dele trouxeram a imagem pra cá. A gente faz a festa dela do dia 14 a 22 de setembro. Essa outra, aqui do dia 12 de outubro, foi um promesseiro que trouxe, fez promessa com essa, conseguiu a graça, a gente festeja no dia Nossa Senhora Aparecida mesmo. (…) O dia do padroeiro mesmo, é o dia 27 de junho, começa no dia 19 e vai até o dia 27 de junho, que é o dia do Padroeiro Sagrado Coração de Jesus.
As festividades da comunidade do Sagrado Coração de Jesus, conta com a realização da festa do padroeiro entre os dias 19 e 27 de junho de cada ano; a festa de Nossa Senhora Aparecida do Lago de
Serpa entre os dia 14 e 22 de setembro; e a festa de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, no dia 12 de junho de cada ano, com uma festa mais intimista, com a realização de uma procissão no ramal da comunidade que vai até ao início da rodovia AM-010, retornando até a igreja, com a realização de uma missa ou celebração, dependendo da disponibilidade do padre, bem como a realização de uma noite alegre, com venda de mingau, churrasco e bebidas, além da disposição de uma mesa de leilão.
No dia 12 de outubro, antes da procissão pela parte da tarde, as pessoas se reúnem por volta das 14 horas, próximo à igreja, nos boxes comerciais da comunidade, sentados em redes para conversar e colocar os assuntos em dia. Há também os senhores que se reúnem em uma mesa para uma jogatina de dominó e alguns adolescentes que jogam bola no campo de futebol, que fica atrás da igreja. É um momento de relaxamento e descontração antes da realização da procissão. Dentro da igreja, algumas mulheres preparam a imagem da santa, colocando o manto branco em crochê e as fitas com seus pedidos.
As famílias que participam desta procissão têm uma devoção pessoal a Nossa Senhora Aparecida como um “Santo de Casa”, aquele que realiza o milagre de uma forma mais intimista, neste caso a “mãezinha, que nos ajuda em momentos mais difíceis de doença”. É o momento também que os músicos da comunidade fazem uma procissão cantada ao som de violões e atabaques. Não se tem a presença do andor, mas a imagem é levada na mão por aqueles que pagam promessas, de uma forma em que os filhos seguram na mão de sua mãe nos caminhos da fé.
Refletindo esta manifestação de fé, pode-se considerar que as manifestações religiosas e culturais da Comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, serviram num processo de resistência cultural em torno da identidade negra, atrelado ao fabrico do carvão que por vezes era tomada por pessoas da cidade de Itacoatiara como uma prática depreciativa ligado aos “pretos de Serpa”, foi e é utilizado pelos membros da comunidade como uma forma de auto definição identitária por meio dos “sinais diacríticos”, ou seja, por elementos que os próprios sujeitos elegem para afirmação identitária. Portanto, a Certidão de Autodefinição, como Remanescentes de Quilombo (2014) foi apenas o primeiro passo para o reconhecimento frente às autoridades públicas, a fim de se exigir políticas públicas de proteção para a comunidade. Sugerimos que as festas religiosas assumam o contexto de manutenção da identidade frente a uma permanente reconstrução de sistemas de valores intrínseco a ela.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etnohistória da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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