
*Éder de Castro Gama
Continuação…
A questão do Messianismo e Milenarismo
O movimento em torno das Aparições de Nossa Senhora na cidade de Itapiranga estaria alinhado ao messianismo ou ao milenarismo? Antes de responder esta questão, deixo claro que não faremos uma história social de movimentos messiânicos no Brasil, como o já conhecido caso de Antônio Conselheiro, de Canudos na Bahia (1896-1897), mas um breve apanhado teórico sobre os temas messianismo e milenarismo.
Como já dito, ambos os termos são cunhados do ponto de vista teórico para tentar explicar movimentos religiosos de escatologia34 cristã. Dobroruka (2004) ao fazer considerações sobre movimentos messiânicos e milenaristas, afirma que existem duas posições sobre estes assuntos, o primeiro é que “somente podem ocorrer em sociedades que tenham tido contatos com a herança judaico-cristã”, e a segunda posição é de que “afirmam ser a expectativa da vinda ou do retorno de um redentor e a instauração de uma ‘ideia de ouro’, traços universais, encontráveis em todo o mundo e em todas as sociedades”. Neste caso, seriam os mitos que cada cultura tem sobre o seu redentor.
De uma forma mais direta, para este autor, “messiânicos seriam os movimentos que envolvem a expectativa em torno de um salvador sobrenatural, e milenaristas aqueles que esperam a inauguração do milênio de felicidade e bem-aventurança, não necessariamente por meio de “messias”. Ele nos esclarece ainda, que a expectativa messiânica e do milênio não foram privilégios somente de judeus e cristãos na antiguidade, como por exemplo, os textos apocalípticos com fins de propaganda política entre populações helenísticas e pagãs. Destacam-se os textos oráculo do Oleiro egípcio e o Oráculo de Hystaspes dos persas.
Ainda para Dobroruka (2004) a expectativa milenarista pode ser definida genericamente como a espera vivida coletivamente por um grupo social de figura redentora, que por meios sobrenaturais fará imperar a prosperidade material e espiritual indefinidamente, ou por longo período de tempo ou milênio. Cabe deixar claro que milenarismo não está associada necessariamente a virada de milênio, como pode parecer à primeira vista, mas a mil anos de bonança no sentido bíblico.
Delumeau (1997) pautado nas reflexões de Jan Séguy sobre o milenarismo, considera que “o milenarismo representa uma das formas assumidas pelas frustrações da espera messiânica”. Destaca que ambos os termos se distinguem, onde o milenarismo finca-se na crença no advento de um reino concebido como uma reatualização das condições que existiam antes do primeiro pecado, a certeza de que o Salvador já se manifestou e que a espera se concentra no momento do seu retorno. No cristianismo, deve-se chamar de milenarismo a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino que deve durar mil anos, entendidos, seja literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos já mortos – e uma segunda – a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o tempo da história e a descida da Jerusalém celeste” (DELUMEAU, 1997, p. 18).
Queiroz (1989), ao fazer um estudo sobre os surtos messiânicomilenaristas no território brasileiro, aponta que estes são mais comuns em áreas rurais do território brasileiro. Ele os chama de “messianismos rústicos” brasileiros e não desconsidera fenômenos similares observados nos seios das populações indígenas em cenários urbanos, além de apontar diferentes formas de mobilização presente no catolicismo popular, protestantismo de emigração ou etnicizado (luteranismo), espiritismo (kardecismo), denominações evangélicas (adventismo e pentecostalismo) e cosmovisões indígenas.
O autor nos demostra que há inúmeros relatos de cronistas sobre os “profetismos indígenas”, de povos que migram de um lugar para o outro em busca de uma “terra sem males”, como é o caso de um estudo realizado pelo Antropólogo Júlio Cezar Melatti (1972), sobre os Krahós de Goiás nos anos de 1950, quando um integrante da tribo, sobre efeito da maconha, começou a ouvir vozes e ter visões do deus Tati, a personificação da chuva, que colocou à disposição do vidente poderes (domínio sobre os raios por exemplo) para punir os cristãos e transformar os índios em civilizados, além da promessa de a aldeia ficar repleta de gado e mercadorias industrializadas.
Entre as interpretações destes fatos messiânicos entre os indígenas, ainda segundo este autor, ressalta-se que as migrações indígenas de caráter mítico-religioso seriam um eficiente mecanismo de controle demográfico, pois entre aqueles que partiram à procura da “terra sem males” aliviavam os populosos grupos locais, contribuindo para manutenção de uma estrutura social igualitária e, portanto, para conjurar a emergência do Estado e a centralização do poder. Por outro lado, conforme o surto messiânico observado entre os Krahós, seria a manifestação da fase de espera e a de um período intermediário, de intensa atividade mística, registrando também que a ‘chuva’ evocava o herói mítico AUKE, em que foram depositadas as esperanças na emergência de uma nova ordem: haveria uma equiparação ao estado de penúria e subordinação em que se encontravam os krahós (QUEIROZ,1989, p. 134). Estes surtos messiânicos-milenaristas ocorreram entre as populações indígenas.
Ainda falando de messianismo rústico, Queiroz (1989) nos demostra dois casos, fundados em concepções espíritas. O primeiro, é de uma organização religiosa denominada Fraternidade Espiritualista Universal, em 1949, no Estado da Guanabara (Rio de Janeiro), liderada por Oceano Araújo Sá, dizia-se ex-oficial da Força Aérea Brasileira e adotava o pseudônimo de Yokanam. Este líder pregava a união entre todas as religiões em litígio em trono do evangelho de Cristo e anunciava a chegada do fim dos tempos. O líder decide construir uma nova cidade em terras sagrada do planalto central no município de Anápolis, seria uma área apontada pela profecia de Dom Bosco como o lócus da salvação da humanidade com a chegada do apocalipse.
O segundo caso, seria sobre os Borboletas Azuis de Campina Grande, Paraíba. O centro espírita, fundado em 1961, passa a dedicarse à cura espiritual de enfermos, com a construção de uma casa de caridade. Liderados por Roldão Mangueira, tem em suas revelações proféticas a proximidade do fim do mundo por meio de um novo dilúvio, muito mais destrutivo do que o bíblico, além de outras desgraças. Adotavam trajes diferenciados e organizavam procissões. Após uma repressão policial foram desmobilizados em 13 de maio de 1980.
Queiroz (1989) continua suas análises mostrando a relação entre o que ele classifica como mentalidade messiânica e catolicismo rústico. A mentalidade messiânica estaria voltada para a crença de que o mundo terreno estaria em fim de desaparecimento para dar lugar a uma nova terra, dada por deliberação divina, um lugar de boaventurança e da justiça um verdadeiro reino de paz. Onde este mundo de pecados e injusto deverá sofrer uma transformação operada por interferência divina. E o catolicismo rústico seria aquele das populações interioranas, dos sertões brasileiros, que sofrem com a ausência de padres e sacerdotes e buscam fundar suas práticas em um cristianismo de penitência de apocalipse, segundo alguns autores, marcado por redefinições peculiares, influências indígenas e africanas bastantes heterogêneas em suas características essenciais. (QUEIROZ, 1989, p. 138).
O autor finaliza esta análise recorrendo a Maria Isaura Pereira de Queiroz (1976) de que o distanciamento, por vezes tenso, em relação ao catolicismo oficial, é o ventre fecundo dos líderes religiosos leigos, penitentes, santos e beatos. “Acreditam ser os verdadeiros representantes de Deus, que o inspira diretamente, enquanto o padre é antes um funcionário da Igreja”.
Em nível de abstração, vale demonstrar os casos de messianismo descrito por Mario Ypiranga Monteiro (1983) na Amazônia. Em suas pesquisas, constatou três casos descritos nos Relatórios de Presidentes de Província do Amazonas, entre os anos de 1857 e 1859. Em suas palavras, “existia a imagem de pau utilizada pelo índio de nome Venâncio a propaganda do novo credo que ele, se dizendo Cristo, profetizava o fim do mundo para a noite de São João Batista”. Segundo o autor, este fato ocorreu no ano de 1857,
quando um falso Cristo que descera da Venezuela e fazia se passar por mártir, encenando mortes naturais de que ressuscitava depois, declarando que ia conferenciar com Deus. O velhaco sofria de ataques de epilepsia e servia-se deste colapso para explorar a credulidade dos pobres índios do Alto Rio Negro, de quem tomava cevados porcos, galinhas, paneiros de farinha, roupas, mulheres, por aí assim, vivendo tripa forra, não fosse ele divino. (…) movimento de neófitos aumentava dia após dia (…) os índios abandonaram suas terras, casas, roças, seus haveres para seguir ao falso profeta, na verdade um tratante que talvez, como desconfiavam as autoridades provinciais, estivesse a soldo do governo venezuelano. Mas acontece que falso cristo não era só: possuía mulher, legítima ou não, que se fazia passar por Virgem Maria (MONTEIRO, 1983, p. 137).
Segundo o autor, Venâncio intitulava-se como Padre Santo ou Deus, os seus ritos consistiam na “dança e a cachaçada, verdadeiras orgias improvisadas diariamente e em que a indiada tomava parte por entusiasmo”. Os fatos, chamaram atenção do Presidente de Província que ordenou que as autoridades religiosas acabassem com este movimento, pois já estava trazendo prejuízo aos cofres da Província, uma vez que não se produzia mais. Foram presos os índios que se diziam ser São Lourenço, Padre Santo e Santa Maria, que logo foram remetidos para Manaus, enquanto que o Cristo Venezuelano fugiu para seu país, sendo preso em seguida pelo governo local.
No ano de 1858, aproveitando do vazio que tinha ficado entre os índios, Alexandre, morador do Rio Uapé, retomou as mesmas atividades nas aldeias de Santa Maria e São Marcelino, houve revide por parte dos índios quando o Presidente de Província mandou uma autoridade religiosa dissolver o movimento, porém o caso só foi resolvido quando o Capitão Fermino conseguiu dissolver definitivamente o ajuntamento religioso,
“o Dr. Francisco José Furtado mando dissolver os ajuntamentos pelo juiz Municipal e Delegado de Polícia da Capital, Bacharel Marcos Antônio Rodrigues de Souza”. Pois o objetivo era dissolver todo o movimento messiânico naquela região, e responsabilizar as autoridades locais pelas possíveis desordem que pudera surgir. Tanto que 1859, “segundo as palavras do sacerdote, corroborada pela do capitão Pinheiro; a ordem reinava naqueles altos rios. Eis que por um expresso aqui chegado a 11 de março participa o capitão Pinheiro haver-lhe comunicado o Capitão Joaquim Firmino Xavier, encarregado no Ixiê de um ajuntamento de índios passantes de cem indivíduos, armados de três espingardas e curabis e dispostos a resistirem à qual escolta, que fosse dissolver (…) o Presidente da Província mandou despachar no dia 04 de março mesmo expresso, os reforços necessários, armas, munições e soldados, determinados pelo Capitão Pinheiro que sem detença fosse dissolver a reunião” (MONTEIRO, 1983, p. 140-143).
O relato termina descrevendo que não houve nenhum revide por parte dos índios, culminando com a fuga dos responsáveis para as matas. Estas três manifestações messiânicas descritas por Mario Ypiranga Monteiro (1983), encaixam-se nas análises estabelecidas por Queiroz (1989), de que o messianismo surge em resposta à ausência de autoridade religiosa, por meio de uma atitude evangelizadora, que mistura aspectos culturais míticos das populações indígenas, frente à ordem religiosa dogmática e de Estado.
Em consideração a isso, pode-se inferir que o movimento das Aparições de Nossa Senhora em Itapiranga é composto por um misto do que alguns autores chamam de messiânico-milenarista, tendo em vista que detém as características dos dois conceitos, inclusive levando-se em consideração o aspecto de um catolicismo popular mais expressivo.
Por isso, é preciso entender os motivos pelas quais as pessoas ou segmentos sociais tomam parte nesta manifestação? Como as pessoas envolvidas neste movimento criam formas de organização social e resistência frente as dificuldades e adversários? É preciso fazer análise do discurso das mensagens, a fim de saber quais os símbolos e discurso ideológico estão por trás na construção desta dada realidade. Em última análise, Queiroz (1989) nos sugere que as mobilizações messiânico-milenaristas ocupam um lugar ímpar nas lutas contra a morte social, contra a perda da identidade, constituindo-se ações articuladas a partir da desestruturação profunda de modos de vida tradicionais – mobilizações. Elas podem constituir-se em novas modalidades de sociabilidade, que podem ser perenes ou abreviadas pela violência institucionalizante da Igreja Católica ou do Estado.
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34 Em linhas gerais seriam a doutrina que trata do destino final da humanidade ou fim do mundo. Aparecendo em discursos proféticos ou em contexto apocalíptico.
Continua na próxima edição…
*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor do livro “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022). É Assessor Jurídico e vem prestando assessoria ao patrimônio imaterial etnohistória da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.
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