Recortes Pessoais
Continuação…
Cidade a ser reconstruída
Prédio da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), conhecido como “Velha Jaqueira”,
localizado na praça dos Remédios, centro histórico de Manaus.
Hoje já prevalece a concepção de que os mundos e o nosso “pálido ponto azul”, o planeta Terra, como o nominava Carl Sagan, não surgiu do nada. Houve, sim, um construtor, um criador, porquanto em todas as coisas existentes se revela um “desing”, um padrão perfeito, que jamais poderia ser objeto do acaso, mas fruto de uma inteligência superior, que pôs ordem ao caos…
A maioria dos povos o chama de Deus. Os maçons, guardiães da sabedoria e dos mistérios ancestrais, o designam muito apropriadamente de “o Grande Arquiteto do Universo”. No plano terreno o homem, herdeiro dessa centelha divina, também desenvolveu o dom de construir. O egípcio Imhotep, que ergueu a pirâmide escalonada do faraó Djoser, em Saqqara, por volta de 2.630 a.C, é o primeiro arquiteto reconhecido da história. Daí por diante, do Oriente ao Ocidente, os habitantes de vilas, aldeias e cidades, por meio de seus artífices mais habilidosos, de posse do martelo, do cinzel e das demais ferramentas do pedreiro, puseram de pé casas, templos, palácios, sepulcros, torres, estradas, pontes, edifícios de todo o gênero, capazes de, a um só tempo, melhorar a qualidade do lugar que escolheram para viver e demonstrar, com o orgulho, o nível de evolução em que estavam. Isso foi tão importante e marcante para a humanidade que aprendemos, desde jovens, a admirar as chamadas sete maravilhas do mundo antigo, obras-primas da arquitetura: a pirâmide de Gizé, o mausoléu de Halicarnasso, o templo de Artemis, a estátua de Zeus, o Colosso de Rodes, o Farol de Alexandria e os Jardins Suspensos da Babilônia. Mesquitas e zigurates de um lado; castelos e catedrais de outro, elevaram o engenho de construir à sublime categoria de arte real.
Não foi por outro motivo que a maioria absoluta dos líderes políticos de todas as épocas procuraram marcar os seus governos com grandes obras, muitas delas verdadeiramente necessárias à sociedade; outras, despidas de qualquer utilidade, a não ser a própria ostentação. De todo jeito, seus nomes acabaram, para o bem ou para o mal, registrados nos anais da história. Certamente que nenhum deles gostaria de figurar no lado negativo deste cadastro, mas de seu lado positivo, do lado de quem constrói e de quem não destrói, seja por ação, seja por omissão, aquilo de concreto que constitui, também, fator distintivo de uma comunidade, de uma cidade.
É por isso que, desolado, mas não rendido, dispondo somente de minha pena, como diriam os jornalistas de antigamente, diante do número expressivo de prédios públicos abandonados em Manaus, muitos dos quais, pasmem, já foram casas de ensino, que tratarei, a seguir, sobre o tema, na esperança de colaborar para uma mudança de rumos no que diz respeito ao precioso patrimônio histórico, arquitetônico e imaterial de nossa cidade.
As primeiras, digamos assim, peças de arquitetura de que se tem notícia na história de nosso país e, particularmente, do nosso Amazonas, são as habitações dos povos indígenas. Eles viviam em malocas, constituídas por espaços maiores destinadas a rituais religiosos ou a festividades e, também, em ocas, moradias de menor dimensão. Elas eram erguidas com madeira, fibras, cipós e palhas.
No período colonial as aldeias foram destruídas e várias nações foram dizimadas pelos invasores europeus. Dentre a aldeias destaca-se a da tribo dos manáos. A reação desse povo, aliás, liderada pelo valente cacique Ajuricaba, foi tão forte que o seu nome, até hoje, identifica a nossa cidade.
Sob o ponto de vista da sociedade envolvente, colonizadora, a primeira edificação em solo manauara data de 1669 e é a Fortaleza de São José do Rio Negro, localizada na margem esquerda do rio do mesmo nome, próximo ao seu encontro com o Solimões, resultado das petições de Pedro da Costa Favela ao Governador do Maranhão e Grão-Pará Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho e do trabalho do capitão, também maranhense, Francisco da Mota Falcão e de seu filho Manuel da Mota Siqueira. No Museu Crisanto Jobim, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), há uma linda maquete que o reproduz na forma em que se acha revelado nos prospectos do capitão engenheiro Johann Andreas (João André) Schwebel, de 1756, que integrou a expedição organizada por D. João V, a qual, na época, delimitou as possessões americanas portuguesas e espanholas. O forte tinha capacidade para abrigar 270 homens. Ao seu redor, por obra dos carmelitas, juntaram-se famílias de índios barés, passés, baniuas e outros que, miscigenando-se, engrossaram a população do lugar.
Coube a Manuel da Gama Lobo D’Almada, que era brigadeiro e engenheiro militar português, promover as mais significativas alterações de governança, incluindo a economia e a estrutura daquele pequeno povoado. Foi ele quem conseguiu transferir a capital de Mariuá (Barcelos) para o Lugar da Barra (Manaus), isso em 1791, que deu um salto extraordinário em sua gestão. Para o que nos interessa no presente artigo, basta dizer que ele começou a organizar Manaus como uma cidade respeitável, que passa pela construção de um novo templo, segundo, para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que foi consumida por um incêndio e reerguida anos depois; pelo Palácio dos governadores; pelo Quartel; e pela Cadeia Pública. A cidade passava a ganhar nova feição. Para Arthur Cézar Ferreira Reis ele foi um estadista colonial. Seu desempenho, diga-se, só encontra paralelo na atuação de outro maranhense e também militar, o governador Eduardo Gonçalves Ribeiro.
Robério Braga, ex-presidente da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), em uma de suas encantadoras palestras disse, com muita propriedade, que Manaus é a única cidade do mundo reconhecida pelo seu teatro, o teatro Amazonas. Nem Paris, nem Rio de Janeiro, nem São Paulo, nem Barcelona e nem Lisboa, nenhuma delas possui tal privilégio, complementa ele.
De fato, o teatro Amazonas, fincado em meio à floresta, é o símbolo de uma era em que Manaus, aquinhoada pela economia da borracha, em seu primeiro ciclo, passou pela sua mais extraordinária transformação, deixando de ser, nas palavras de Arthur Cézar Ferreira Reis, uma primária aldeia, para tornar-se uma cidade nervosa, renovada, monumental, em crescimento vertiginoso, o qual se deu, em essência, entre 1890 a 1900.
A principal personagem dessa revolução urbana foi o governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, um militar maranhense, negro, engenheiro, jornalista e maçom que pode ser verdadeiramente considerado o grande construtor da cidade. Ribeiro administrou em dois períodos: entre 1890 e 1891, em substituição ao primeiro governador republicano, Augusto Ximeno de Villeroy; e entre 1892 a 1896. Ele pegou as obras do teatro Amazonas paradas, apenas nos alicerces, mas no espaço de quatro anos, promoveu o que era necessário para pô-lo de pé em toda a sua exuberância. Por uma dessas ironias do destino, não conseguiu inaugurá-lo, missão que coube ao seu sucessor Fileto Pires, ainda em 1896.
São muitas, porém, as obras de Eduardo Ribeiro, não somente no campo do embelezamento da cidade, mas em outras searas, onde permanece imbatível. Ele foi o homem certo, na hora certa e no lugar certo. Dessa força da natureza chamada Eduardo Ribeiro tudo o mais floresceu e frutificou naquela Manaus linda de que guardamos boas recordações.
Mestre Robério Braga revelou que, em 2012, numa manutenção que se fazia no Teatro Amazonas, os operários encontraram o nome do notável construtor, gravado em pedra e ouro, totalmente encoberto, certamente por obra de seus inimigos, numa tentativa vã de que fosse esquecido. Eduardo Ribeiro, no entanto, deixou um legado, que nem o tempo, nem a distância, nem a maldade, nem a inveja e nem a mediocridade de alguns de seus contemporâneos conseguiram apagar. Vive ele para sempre como o homem que inventou a Manaus que ainda habita os nossos sonhos. Nos dias de hoje, fora do perímetro do Largo de São Sebastião, lindamente preservado, mas até nas suas imediações, Manaus era e continua a ser assombrada pelo número absurdo de prédios, em sua maioria públicos, deteriorados, abandonados ou em escombros.
Para que não se diga, porém, que o escopo destes escritos seja a crítica pela crítica, importa registrar, assim num átimo de memória, algumas ações positivas no sentido da preservação de nossa história: o mercado municipal, restaurado na gestão do prefeito Serafim Corrêa; a biblioteca João Bosco Pantoja Evangelista, na administração de Artur Neto; o bairro da Cidade Nova, concebido pelo governador José Lindoso; o grande projeto de revitalização, pensando e executado pelo ex-secretário de estado Robério Braga durante vários governos, sobretudo o de Amazonino Mendes; e a Casa Bernardo Ramos, inaugurada pelo governador Wilson Lima, que será administrada pelo Centro de Educação e Tecnologia (CETAM), com especialização em gastronomia.
Incomoda, todavia, ver o casarão que abrigava a Faculdade de Direito, localizado na Praça dos Remédios, gênesis do que é hoje a Ufam, ainda sem intervenções significativas, apesar da luta e do apoio constante do movimento “Salve a Velha Jaqueira”, assim como do comprometimento do atual reitor em busca de uma solução para o caso. De igual modo, constatar o estado lastimável do antigo Corpo de Bombeiros, na rua 7 de setembro; o da antiga Escola Superior da Magistratura do Amazonas (ESMAM), na esquina da Praça da Saudade; agora o ideal Clube, que está ocupado, mas em franca deterioração.
O advento da Zona Franca, que trouxe prosperidade para Manaus, não foi, todavia, acompanhado pelo necessário planejamento e pelo respeito à sua memória. Para atender às funcionalidades do comércio, prédios do centro da cidade foram, digamos assim, “adaptados” para a nova realidade, alguns deles, mesmo, derrubados, para dar lugar a caixotes feios, com o antigo cinema Guarany, substituído por uma agência do banco Itaú; e o Palácio das Lágrimas, na rua Joaquim Nabuco, onde, depois de vários anos como estacionamento, erigiu-se um edifício para vender importados, tudo em desconexão com a cidade sonhada, projetada e erguida por Eduardo Ribeiro e seus sucessores.
Como contributo ao debate, apresento as seguintes propostas: a) em se tratando de prédios públicos, que os governos os reformem ou restaurem, dando-lhes uma destinação útil, como por exemplo, criando, prioritariamente, abrigos, com atendimento médico, comida, pernoite e oficinas de trabalho para moradores e trabalhadores de rua, bem como criando espaços culturais ou centro de convenções; b) em caso de inação, que o Ministério Público intente as respectivas ações cíveis e criminais contra o administrador desidioso, sem esperar a provocação de ninguém; c) em se cuidando de prédios privados, que sejam desapropriados e utilizados nos mesmos moldes ou em outros, que atendam ao interesse público similares aos do item “a”; d) que a sociedade não fique esperando a ação dos “políticos”, mas promova campanhas construtivas, destinada a potencializar forças para o alcance dos objetivos desejados.
Somente assim, acredito, por uma ação de cidadania, poderemos vencer a inércia, o comodismo ou o descaso. A cidade é a nossa casa em tom maior. Precisamos dela cuidar.
Continua na próxima edição…
Views: 0