Manaus, 19 de junho de 2025

As mil vidas de Ajuricaba: genealogia de uma tradição (re)inventada (parte II)

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*Helio Dantas

O terceiro momento das variadas representações de Ajuricaba se dá ao longo dos anos 1970, em produções ficcionais na dramaturgia e no cinema, dos quais destaco como exemplos A paixão de Ajuricaba, peça teatral de autoria do escritor amazonense Márcio Souza, encenada pela primeira vez pelo Teatro Experimental do SESC em Manaus, no ano de 1974, e Ajuricaba, o rebelde da Amazônia, longa-metragem de 1977 dirigido pelo cineasta mineiro Oswaldo Caldeira. Produzidas no contexto da ditadura militar brasileira, as narrativas ganharam uma inflexão de resistência, vinculando as questões históricas do processo colonizador com demandas contemporâneas: dos conflitos agrários e do avanço da exploração capitalista na Amazônia da segunda metade do séc. XX, assim como a perseguição política, censura e tortura praticadas durante o período ditatorial no Brasil.

Tanto a peça quanto o filme inserem-se num contexto de revisionismo da identidade brasileira, que se via em disputa, por um lado, pela narrativa oficial dos governos militares, de viés nacionalista, e por outro lado, por jovens artistas que se apropriaram da figura de Ajuricaba, que deixa de ser menos um herói e passa a ser uma espécie de guerrilheiro revolucionário. No caso da tragédia de Márcio Souza, apresentar a tortura e a aniquilação dos indígenas, justamente no ano de 1974, passados dez anos do golpe militar, parece ter a intenção de trazer aos espectadores brasileiros a reflexão de sua própria tragédia contemporânea, marcada por perseguições e torturas a estudantes, intelectuais e prisioneiros políticos.

Nesse sentido, a escolha de Ajuricaba não teria sido baseada somente numa questão estética, mas uma opção política em um momento de forte repressão do regime ditatorial, somado à pressão econômica, que influíam na imposição e no apagamento cultural na região amazônica. No filme de Oswaldo Caldeira, por exemplo, ficam superpostas duas temporalidades: a do séc. XVIII, no desenrolar dos acontecimentos que marcaram a captura de Ajuricaba, e a do séc. XX, onde, do colonizador lusitano, passa-se à figura do investidor internacional autorizado pelo Estado que concede os incentivos financeiros e legais para sua instalação em milhares de hectares e se utiliza dos contemporâneos descendentes de Ajuricaba como mão de obra, explora tanto os povos nativos quanto o que ainda resta das riquezas naturais.

Nessa produção cinematográfica, Ajuricaba morre não somente no passado, mas no presente. O monólogo final da personagem, narrado em off, que encerra o longa-metragem, é literalmente um chamado para a luta contra o apagamento cultural, a marginalização urbana e rural, a defesa das terras ameaçadas pelo inimigo estrangeiro: “E os guerreiros renascerão como as folhas renascem nas árvores, os peixes na água, os pássaros no céu e Manari reconhecerá o seu povo. O céu acima da montanha, a luz do relâmpago, a voz do trovão acima do céu. Eu sou a luta do guerreiro para sempre”.

O quarto momento já seria mais recente, marcado pela difusão da figura do herói Ajuricaba na comunicação de massa: no levantamento feito, foram encontrados desde sambas-enredo (“Ajuricaba, um herói amazonense”, da G.R.E.S. Unidos de Padre Miguel, de 1976, assim como “Ajuricaba, o herói manaó”, da G.R.E.S. Andanças de Ciganos, de 2015), toadas de boi-bumbá (“Cacique Ajuricaba” e “Herói Ajuricaba”, do Boi Bumbá Garantido, e “Ajuricaba (Anjo Tuíra)”, do Boi Bumbá Caprichoso), canções de música popular amazonense (“Ajuricaba”, de Raízes Caboclas, “Ajuricaba, filho de Tupã”, do Grupo Rio Xingu, “Ajuricaba, o guerreiro das águas”, de Nicolas Jr e “Revolta de Ajuricaba” de Jander Manauara).

No que diz respeito às artes plásticas, em 2006, a Câmara dos Deputados montou a exposição “Construtores do Brasil – Homens e Mulheres que ajudaram a fazer um grande País”. Em 2009 a Câmara reabriu essa exposição e editou um catálogo com as biografias dos homenageados, que está disponível na Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Em 2012, a exposição aconteceu mais uma vez, nas comemorações dos 190 anos da Independência do Brasil. O artista plástico amazonense Óscar Ramos contribuiu com o quadro “Índio Ajuricaba” (imagem de cabeçalho dessa postagem). Sobre essa obra, o próprio Óscar Ramos comentou: “representei Ajuricaba onde ficou prisioneiro, no momento em que era apresentado para reconhecimento. Sua expressão reflete o que ele está passando sem, contudo, perder o orgulho, mais evidente na posição da sua boca. Ele olha diretamente para quem o encara”.

Foto preta e branca de rosto de homem visto de perto

Descrição gerada automaticamente

Retrato de Ajuricaba Óscar Ramos técnica mista

Há também grafittis, como o que foi feito, com apoio da Prefeitura de Manaus, pelo grafiteiro amazonense Fábio Ortiz. Trata-se de um mural de 34 metros de comprimento, inaugurado em abril de 2021, que retrata Ajuricaba em trecho do centro histórico da cidade que ficou conhecido como Aldeia da Memória Indígena de Manaus, e, por fim, encontrei livros paradidáticos (“Ajuricaba, o caudilho das selvas”, de Márcio Souza, publicado em 2006 como parte da coleção “A luta de cada um”) e histórias em quadrinhos (a novela gráfica “Ajuricaba”, lançada em 2020, teve roteiro feito pelo jornalista, roteirista e ilustrador Ademar Vieira e a arte gráfica feita pelos quadrinistas Jucylande Júnior, Tieê Santos e Ana Valente, todos artistas manauaras). Em todas essas produções, parece, em linhas gerais, haver uma fusão tanto da abordagem mais tradicional do herói, alusiva às primeiras décadas do séc. XX, quanto do rebelde revolucionário da segunda metade do séc. XX. Há, inclusive, uma lei, a saber, a de nº 3.856, publicada em 11 de janeiro de 2013 e sancionando o dia 24 de outubro como Dia do Índio Ajuricaba, “ícone cultural das etnias indígenas”, ou seja, o mesmo dia em que se comemora o aniversário de Manaus.

No seminal texto organizado por José Ribamar Bessa Freire em meados dos anos 1980, a saber, A Amazônia Colonial (1616-1798), em texto complementar intitulado As mil mortes de Ajuricaba, é feita uma contundente análise, onde se aponta o esvaziamento de qualquer referência mais profunda em relação à cultura e identidade indígenas, que coloca o agente social Ajuricaba em um lugar a-histórico de mártir, cujas características tais como “valentia”, “bravura”, “abnegação”, “coragem”, associadas ao seu suposto ato de martírio e sacrifício, alimentam não uma compreensão da participação de indígenas no processo histórico na América portuguesa marcado por conflitos, embates violentos, usurpação e morte, mas sim o reforço de uma figura a-histórica: o “povo amazonense”.

Parafraseando o texto de Bessa Freire, se Ajuricaba teve “mil mortes”, é possível afirmarmos que ele também teve “mil vidas”. Entre ficção e história, o herói Ajuricaba, de quem não sabemos sequer o nome, até hoje rende produções na intersecção do histórico, do artístico, do político. Para além dos revisionismos críticos, parece haver uma constante e reiterada demanda coletiva pela figura do herói: encara-se a narrativa histórica à moda shakespeariana, como um palco: há a plateia, há os coadjuvantes, e há os protagonistas. O “protagonista”, esse termo que constantemente está em nossas bocas quando nos referimos à História, parece ser uma espécie de sinônimo do herói: esse ser que é puro, pleno, sem contradições, sem furos, que tudo fará, que tudo resolverá, que tudo restaurará. Mais do que uma tradição inventada, é justamente o potencial de reinvenção da figura de Ajuricaba que permite que falemos dele até os dias de hoje.

*Hélio Dantas é professor de História na rede pública municipal de Manaus e historiador na Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. É autor do livro “Arthur Cézar Ferreira Reis: Trajetória Intelectual e Escrita da História” (Paco Editorial, 2014), e, atualmente, está escrevendo uma tese de doutorado sobre a história da historiografia amazonense.

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