Manaus, 1 de dezembro de 2023

As Náiades e mãe d’água (II)

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O primeiro amazônida

Na sua origem o homem chegou à Amazônia em grupos de caçadores. Parecia estar de passagem, no parado, bebendo e comendo como um animal qualquer. Estabeleceu diálogo e interpretou esse mundo, conheceu os espaços habitados e gerou ideias que os etnógrafos da modernidade fizeram chegar através das narrativas ao domínio público de hoje. Geraram, também, a poesia quando foi preciso revelar os sentimentos expressos em relação aos fenômenos da natureza, os movimentos da floresta, da terra e dos rios, do cosmos, enfim, dos mistérios do amor. A revelação desses documentos foi levantada durante longa vivência, observada entre esses povos e resgatada ao nosso conhecimento hoje. Permaneceu na oralidade verdadeira, identificada em forma de expressão artística nos seus princípios.

Dados certos levantados pelos antropólogos do Mu seu Emilio Goeldi10, confirmam que os registros encontrados sobre a ocupação da Amazônia são lacônicos. Eles identificam sinais da presença do homem na região só nos séculos VIII ao XII, à margem esquerda do rio Amazonas. no local ocupado hoje pela cidade amazonense de Itacoatiara. Mas o homem talvez tenha chegado à região bem antes, hipoteticamente desde 3000 e 1500 anos a.C. Isso, ainda, considerando-se como um marco apontado para demarcar a finitude do tempo em que esses povos, ocupando a região, procederam no desenvolvimento da língua e na invenção da mitologia com que interpretaram o seu mundo de águas e florestas e viram germinar os motivos da Amazônia na poesia. Em verdade há a hipótese de que o homem chegou à Amazônia num tempo infinitamente mais recuado.

Estudos existentes sobre a formação da alma brasileira informam que, no século XVI, quando os primeiros europeus chegaram, os povos indígenas das Américas ainda viviam a primeira revolução agrícola, logo após a Era Paleolítica, enquanto os colonizadores, oriundos do Velho Mundo, já haviam saído a dez mil anos desse período da história¹¹.

O homem prosseguiu na sua tarefa de conhecimento do mundo. João Barbosa Rodrigues (1842-1909) mostra um legítimo poema, recolhido por ele nesse universo. Cuida o texto do nascimento do rio Amazonas. Em nota de pê de página ele comenta que o referido texto

(-) alude ao cataclismo que originou o vale do Amazonas e o levantamento dos Andes.

Na leitura do texto percebe-se a emoção revelada, a beleza das imagens e o maravilhoso da concepção.

A literatura inicial dos povos da Amazônia foi restaurada pelos etnógrafos como Barbosa Rodrigues, considerado um dos mais notáveis reveladores desses fenómenos. Num livro legendário¹² ele reuniu excelente acervo sobre a forma de sentir e pensar do primeiro amazônida.

É desse livro o pequeno texto, revestido de grandeza poética, intitulado “A origem do rio Solimões”, nome do rio Amazonas na entrada em território brasileiro, até receber o Rio Negro em frente à cidade de Manaus, no célebre encontro das águas.

Barbosa Rodrigues classifica o texto de conto, formato da prosa de ficção, mas um conto invadido pelo senti mento da poesia. Isso bem antes do entendimento de que o poema deixou de ser somente aquela peça construída em versos. Já se apreciava o poema em prosa, no século XIX, o mesmo século de Barbosa Rodrigues, mas sem dúvida um fato ainda desconhecido do etnógrafo e não do cientista literário que ele não era. O autor original desse texto deixou nas palavras a sua emoção ao observar o volume das águas do rio Amazonas e os seus movimentos de cheia e vazante. Ele conta o que imaginou na experiência do fato relatado. Fala movido pelos estímulos da emoção, mais do que do raciocínio, na pura invenção.

Refere-se o texto ao episódio da lua e o sol que desejavam se casar, mas não podiam porque o amor ardente do sol queimaria o mundo. A lua, então, choraria muito por não poder se casar com o sol. Seriam lágrimas intensas difíceis de evitar e que inundariam a terra e a destruiriam se não parassem. A lua choraria por ter de se separar do sol. Choraria durante um dia e uma noite. Além do drama de inundação do mundo, havia ainda o perigo de ao apagar o fogo a lua evaporar a água. A ameaça dessa confusão toda impedia de a lua se casar com o sol. Por isso resolveram se separar, para proteger a terra da destruição. Acontece que ocorreu um novo tumulto. A lua sofreu tanto com a separação que não conseguiu conter as lágrimas. E, desta vez, as lágrimas da lua aumentaram, cresceram mais e inundaram a terra e invadiram o mar. O mar não gostou das lágrimas da lua e as devolveu transformadas em água doce, provocando assim o fenômeno das enchentes e das vazantes de seis em seis meses, como acontece ainda hoje nos rios da Amazônia.

Penso que ao faltar ao autor original do texto o conhecimento racional, com que pudesse elucidar o fenômeno do movimento das águas e o surgimento dos rios, ele, em contato com a realidade, intuiu esse esclareci mento, na consumação de um autêntico texto literário, de poema em prosa.

São fragmentos do que restou protegido pelas sucessivas gerações dos habitantes da região e resistiu à fúria avassaladora do etnocentrismo europeu no diálogo com as culturas nativas. Uma postura nem sempre livre de desconhecimento, no processo de colonização imposto pela conquista. Os povos da Amazônia eram chamados pelo colonizador de índios, gentios, selvagens e outras expressões menos acolhedoras, numa atitude infectada pela falta do mais elementar exercício crítico. Não popularizaram para designá-los, os gentílicos mais tarde adotados de americanos ou ameríndios, como deveriam ser chamados os naturais das Américas desde o início. A religião e o modo de pensar e agir desses povos se aproximava, no modo de ver do colonizador, de um comportamento pagão que se precisava extirpar, como se encontra em uma das recomendações de Caminha (1450-1500)13 sobre os nativos da nova terra, embora já se anunciasse ao colonizador, a crença em Tupã ou Tupá ou Tupau, como está recolhido no Nheengatu rupi, vocabulário miri elaborado pelo Bispo católico e etnólogo Dom Frederico Costa (1875-1948). Tupã era um deus único e sumário quanto a qualquer visualização de imagem, ao modo, também, do Deus cristão. Sua morada é o sol e se manifesta por meio do trovão e do relâmpago. Constitui o som e a luz. Foi preciso que os jesuítas se envolvessem com os nativos, aprendessem a sua língua e confirmassem que eles se sentiam também filhos de Deus…

A poética primitiva dos povos da Amazônia, no entanto, venceu em seu conjunto mais significativo e se deu a conhecer por meio do poema em prosa. Os textos levantados pelos etnógrafos trouxeram até o nosso conhecimento essa forma de expressão, como se vê no texto citado de Barbosa Rodrigues, comprovador, também, de que os primeiros habitantes da Amazônia viviam a poesia no seu sentido mais amplo e intenso, implantada na perpetuidade dos tempos. A poesia era a lei. Por meio da linguagem poética, a mais alta forma de procedimento ficcional, eles definiam e explicavam tudo, de tal modo que se tentou impingir a eles a pecha de mentirosos, pelas coisas que inventavam para se comunicar.

O prelado católico e etnólogo Dom Frederico Costa, em contato com os povos do alto Rio Negro, onde o Nheengatu permanece falado significativamente na primeira de cada dos anos de 1900, identificou versos escritos nessa língua, mas em poemas elaborados pelos missionários para melhor comunicar-se com aquelas etnias, à maneira do que já haviam feito os jesuítas nos começos da civilização brasileira no século XVI. Dom Frederico Costa recolheu um hino intitulado Catú Rete Rosario.

Louvando-me do vocabulário Nheengatu Rupi, publicado na Carta Pastoral desse prelado católico sobre a matéria, ousei traduzir esse hino, como vai a seguir:

CATU RETE ROSARIO

I

Catú reté rosario

Virgem Mar’lára;

luáca ra-pé

Iané raçuçára!

MUITO BELO ROSARIO

Meu belo rosário

a Virgem Maria,

caminho do céu

do Nosso Senhor!

II

Padre Nosso – imbuéçaua

Christu Iané Iára,

Rupi çaiçuçaua,

lané umbué.

Reza o Padre Nosso

Cristo nosso dono,

um amor maior

Ele nos ensina.

III

Rosario Manha,

luáca lára,

Xa-servire putari

Catuçaua nelára.

Mãezinha do céu,

oh, mãe do Rosário,

quero te servir

com toda bondade

IV

Xa-putare, Ce Iára,

Ce manuçaua ramé,

No rosario curi

Ce Piriruçaua reté.

Eu sirvo meu dono

até minha morte,

rosário futuro

do meu salvador.

V

I-Paia Gloria,

Tahira iuiri

Espírito Santo iuiri

Upain ara. Iaué

Dou glória ao paizinho,

seu filho também,

Espírito Santo

todo dia, amém.

Duas palavras, pelo menos, usadas nesse texto, foram incorporadas à língua portuguesa falada no Amazonas, “catú” e “reté”. Catú significa na definição de Dom Frederico Costa, bom, feliz, virtuoso, grato. É uma palavra e expressa o bem em todas as suas formas. Ele dá como exemplo a expressão “Mira catú” que quer dizer homem de bem. Traz como exemplo, ainda, a frase “Catú cerá ne piá?”, e quer dizer “estás contente”? O meu tio Luiz, quando era urpreendido por algum fato que lhe exigia reação súbita força, exclamava: “aré catú”, que quer dizer “me ajuda migo”; aré é um neologismo amazônico criado no senti o de espanto, admiração. Quanto à palavra reté, que quer dizer muito, demais, nesse sentido foi assimilada pela fala o homem da região. Um dia, uma cunhantã a quem foi oferecida uma rede que não era a sua para dormir, dissera, insatisfeita: “eu não quero essa rede, eu quero a minha rede”, isto é, a rede verdadeira, aquela rede que é demais e muito boa para dormir. Ela usava a palavra com acento forte na última sílaba, pronunciada com o som de acento circunflexo: reté. A curiosidade é que a palavra catú já está no dicionário de Houaiss, sem o acento, e registrada como para definir o bonito, o belo, o bom.

Esses versos, entretanto, constituem os tradicionais instrumentos didáticos com que os missionários implantavam o cristianismo na língua daqueles povos. Nada tem a ver com a poesia nativa como expressão da vida e dos sentimentos dos amazônidas. O entendimento do mundo por fim, era comandado pelos anseios e o poder criador de uma rica e espantosa mitologia.

Cada vez mais se reconhece que entre os povos da era pré-colombiana amazônica, a concepção de mundo era poética, tal como sucedeu a todos os povos do planeta em suas origens. Thomson,14 citado tantas vezes neste livro, em seus estudos conclui que o homem nasceu e se desenvolveu com e por meio da linguagem. Não seria da poesia?

Peço licença aos evolucionistas para lembrar a coincidência dessa assertiva com a visão do Evangelista João.15

Diz São João na abertura do seu Evangelho:

No princípio era o Verbo,

e o Verbo estava com Deus,

e o Verbo era Deus.16

Mas vamos pular esta parte, pois não se cuida aqui de Teologia.

Ainda hoje, do que sobrou dos primeiros povos da região, os fenômenos da natureza e o diálogo do homem com esses acontecimentos são expressos por meio de linguagem poética. Nesse caso não há prosa no sentido de manifestação do raciocínio, a prosa é só poesia, emoção, poema em prosa, isso que se conhece a partir dos textos bem mais tarde revelados pelos cientistas sociais dedicados a essas pesquisas.

Os dois exemplos citados linhas a frene do próximo capítulo, de Mário de Andrade e Raul Bopp, somam-se aos amazônidas que mais se aproximaram das raízes da for mação cultural da região, significativos modelos nacionais de escritores que se abeberaram de tais motivos na realização de suas obras, mesmo sendo oriundos de outras regiões do país.

Da categoria dos maiores reveladores da literatura primitiva amazonense é o mestre Nunes Pereira (1893 1985). Ele reuniu o resultado de sua pesquisa numa obra monumental intitulada Moronguêtá – um de cameron indígena (1967), composta de 840 páginas, distribuídas em dois alentados volumes na primeira edição. É o produto da experiência de mais de 40 anos passados entre esses povos, na coleta de mitos, lendas, histórias e tradições, nas áreas culturais do Amazonas e Roraima, vales do rio Negro, Solimões, Madeira, Tapajós-Madeira, Andirá e Maués.

É uma literatura que se realizou como expressão das muitas línguas faladas pelas nações indígenas da Amazônia, mais tarde codificadas pelos jesuítas no Nheengatu, língua derivada do tupi e falada em toda a região antes da língua portuguesa, por isso também denominada de língua geral. Era tanta a influência dos jesuítas na consolidação do Nheengatu, como língua regular usada pelos amazônidas, que, ao serem aqueles educadores banidos do Brasil, o governo de Portugal proibiu o uso da língua até na denominação das cidades. Atinava o governo português que o Nheengatu era, também, um instrumento de dominação política dos jesuítas, essencial na unidade dos povos da Amazônia e útil na consolidação do projeto de criação de um novo mundo, sonhado pelos jesuítas e abjurado pela coroa portuguesa, na sua ambição de dominar as novas terras, fato sobre o qual – isto é, a prática do Nheengatu – não estava de todo equivocada…

O texto que se vai examinar em seguida é a de como nasceram os tajás, plantas mágicas que se comunicam com os homens e, em determinadas ocasiões, choram no jardim. O ato suscita a ideia de como foi plantada a floresta, com as suas mais diversificadas espécies de plantas e árvores.

É uma história dos índios Macuxi, da área cultural de Roraima, recolhida pelo mestre Nunes Pereira, numa visão da poesia primitiva, com as características de um poema, embora possua a mancha gráfica de um texto em prosa.

O texto registra as dificuldades com que vivia esse povo. Seus inimigos não o deixavam em paz e, periodicamente, vinham e destruíam todos os seus bens. As doenças os dizimavam. Não havia amor entre um índio e uma índia Macuxi.

Vamos a uma síntese do texto.

Certo dia, quando já vinha a noite, um jovem índio, mais tarde convertido em grande pajé, encontrou a mãe do mato, que era uma velha cheia de sabedoria. Ao vê-la o jovem índio pediu-lhe proteção à sua gente. Ela vivia plantando árvores para enriquecer a floresta. Ao ouvir a história dos Macuxi, contada pelo jovem, ensinou-o de como devia agir para salvar o seu povo de todos esses males.

Naquela mesma noite, com a lua brilhando no céu, o jovem saiu caminhando na aventura atrás do bem para a sua gente, como lhe ensinara a mãe do mato. Levava nas mãos duas pedras de fogo presenteadas por aquela mulher sábia. Em seguida encontrou um bando de corujas rasga -mortalha ou corujas-brancas, fazendo barulho sobre sua cabeça, em voos dirigidos à lua.

O jovem tomou de uma flecha e acertou numa daquelas aves agourentas. Em seguida queimou-a com as pedras de fogo presenteadas pela mãe do mato. Depois se deitou e adormeceu junto à fogueira. Só acordou de manhã, cercado por todos os lados pelos tajás que hoje os Macuxi apreciam, brotados com folhas de várias formas e belas cores, fonte de muitos poderes.

O jovem Macuxi colheu os tajás e os levou como uma forma de salvação do seu povo. Levou o tajá que torna o índio bom caçador e bom pescador; outro que torna o índio invisível aos olhos mesmo de um espírito mau; um tajá que protege o índio das fadigas da guerra, da pesca, da caça e das viagens; outro que faz o índio ganhar nas provas e nas lutas tradicionais entre as tribos, e o tajá mais forte, que torna os homens queridos das mulheres e as mulheres que ridas dos homens.

A forma da parte final do texto que apresenta as virtudes do tajá, sem dúvida, mostra o desenho original da enumeração ou ampliação usada na prosa ou no poema em verso. No verso o mais usual no alargamento de uma figura é o paralelismo expresso em dísticos, como deve ter sido na origem, esse texto.

Sobre o assunto ensina o Professor Segismundo Spina (1921-2012):

O paralelismo, na sua forma indígena – diríamos -, é a sucessão de dísticos em que o pensamento é repetido com variações vocabulares ou inversão das palavras no verso, seguido de refrão ou não.17

As virtudes e o poder dos tajás de influir na vida são ampliados e desdobrados sempre na linha do bem, o bem que salvou do mal o povo Macuxi.

Nascia também o primeiro amazônida.

______________

10 Ocupação humana, de Adélia Engrácia de Oliveira. Chefe do Departamento de Ciências Humanas do Museu Emilio Goeldi, Belém, Pará. Estudo publicado no Capítulo IV de Amazônia, desenvolvimento, integração e ecologia. São Paulo: CNPq/Editora Brasiliense, 1983, p. 144/327.

11 Desvelando a alma brasileira, psicologia junguiana e raízes culturais. Org. Humberto Oliveira, de Janeiro: Editora Vozes, 2018.

12 Porandubo Amazonemse Rio de Janeiro: Tip: De G. Leuzinger & Filhos 1890. Manaus Editora

Valer 2017

13 Da Carta sobre a descoberta do Brasil: “Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente de Vossa Alteza que em ela deve lançar.

14 Thomson, George Paget. (Cambridge 1892-1975), Marxismo e poesia, Portugal: Lisboa. Lobo Mau, Editorial Teorema, 1977.

15 São João Evangelista, ou Apóstolo João, um dos doze Apóstolos de Jesus, reconhecido autor de um dos 4 Evangelhos e de outros textos bíblicos do Novo Testamento, como 3 Epistolas e o Apocalipse

16 Tradução de António Pereira de Figueiredo (1725-1797), padre português, latinista, historiador, canonista e teólogo. Traduziu a Bíblia da Vulgata Latina para a língua portuguesa.

17 Spina Segismundo. Na madrugada das formas poéticas São Paulo Ateliê Editorial, 1982.

(Capítulo Segundo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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