Manaus, 1 de dezembro de 2023

As Náiades e mãe d’água (V)

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Cinco poetas e seu tempo

Neste capítulo vou examinar a presença dos poetas Tenreira Aranha, Álvaro Maia, Américo Antony, Vio leta Branca e Luiz Bacellar, como exemplo da reincidência dos motivos na poética praticada no Amazonas, desde, metaforicamente, as Náiades greco-romanas à Mãe d’água amazônica. Tenreiro Aranha viveu no século XVIII, período de afirmação do domínio português relativamente ao espaço geográfico e à organização do estado amazônico, momento em que se consolidou o processo civilizatório da região. Os demais viveram no século XX, período de definição política e de transformação socioeconômica, que se estrema entre o declínio da produção da borracha e do processo de industrialização proporcionado pela política de incentivos fiscais da Zona Franca. Mas todos eles viveram o seu próprio tempo, considerado o comportamento estético de cada um. Álvaro Maia, por sua ação política, deles foi o que mais se expôs nos debates e nas controvérsias geradas pelo processo de mudanças verificado no período.

Ele celebra o homem e a paisagem amazonenses como realidade vital. Américo Antony sublima-a por meio de uma linguagem transcendental e simbólica. Violeta Branca adota-a no sangue e no eu poético fundado na lenda, por meio da linguagem corrente do cotidiano. A poética amazonense enfim enraíza-se num helenismo de fundo, mais explicitado no trabalho do poeta inaugural Tenreiro Aranha, e do contemporâneo Luiz Bacellar, homem do século XX, período experimentado pelos outros três, com pequenos intervalos entre uns e outros.

Passemos então a examinar a matéria.

A expressão poética primitiva da Amazônia revela-se por uma atividade de autoria incógnita e não individualizada, exercida pelos povos da floresta. Ficaram as obras, mas não lhes sobreviveram os autores. Talvez nem eles, os autores, tivessem consciência disso ou ambicionassem um dia ser lembrados. Essas narrativas foram confirmadas na memória das gerações seguintes e mantidas vivas. Nunes Pereira, na introdução ao seu clássico Moronguetá, só se contenta em revelar os nomes dos narradores das histórias reunidas no livro, constituídos de tuxauas contemporâneos e seus parentes próximos. In forma, ainda, que recorreu a intérpretes na transposição do texto para o português, visto serem insuficientes os seus conhecimentos do Nheengatu ou língua geral em que eram lançadas as narrativas.

Voltando à questão da autoria original das narrativas, verifica-se que a intensão concentrada nos textos era orientar e preparar o povo para a vida. Um procedimento tão natural e simples, que o seu modo de conceber a vida e o mundo então habitado, fluía como as águas de um rio. A conjectura é de que, em determinado momento, acendeu-se uma luz na interpretação dos fenômenos da natureza em contato com a sensibilidade humana, ainda que as imagens não se tivessem fixado com a palavra escrita, impraticada entre esses povos. Deu-se como que a explosão da centelha do espírito, da luz de forças arquetípicas no entendimento junguiano da questão. As sementes foram lançadas e cultivadas pelas sucessivas gerações, até se virem em árvore frondosa, de galhos pejados de flores e de frutos. As sementeiras permaneceram como as imagens armazenadas no inconsciente coletivo25 dos amazônidas.

Nesse processo a manifestação oral assimilou visões novas desse mundo descoberto e redescoberto, até ganhar o timbre da existência anônima. A verdade é que esses textos, indiscutivelmente, possuíram autoria em algum tempo e foram guardados, em sua oralidade, em princípio sob o domínio dos pajés e tuxauas, conforme observa Nunes Pereira ao citar a fonte das narrativas reunidas no seu livro, acrescidos de novos elementos observados ao longo do tempo, na medida em que iam recebendo nova interpretação, expressos por meio dos inúmeros idiomas praticados por esses povos, idiomas finalmente sistematizados no Nheengatu, reunidos e consolidados pelos jesuítas em sua ação missionária. O Nheengatu ou língua geral já possuía signos escritos, usado numa literatura escrita nascente.

Mas a oralidade em literatura é um fenômeno observado na origem de todas as línguas civilizadas. Na história da literatura há os casos de três poemas fundamentais na formação da arte literária europeia. Todos eles se mantiveram vivos por meio da oralidade, não se lhes conhecendo os respectivos autores. A Chanson de Roland, contando a epopeia dos francos, foi redigida, segundo a definição de várias teses sobre o assunto, nos anos de 1098 e 1100, ou em torno de 1120. Esses originais estão assinados por “Turoldus”, que não é o seu autor, mas o copista que realizou o manuscrito catalogado na Biblioteca de Oxford. Outro é o Poema del Cid, dedicado a contar as lendas sobre a formação do povo castelhano, redigido pelo copista “Per Abbat”, em 1207. E o último dos três, intitulado Nibelungenlied foi redigido provavelmente na Áustria, em alemão medieval, entre os anos de 1190 e 1200, e subsistiu por meio de três redações diferentes, numa síntese dos ensinamentos de Carpeaux.26

Há, ainda, a informar de que a mitologia nórdica, fixa da nesse poema, foi popularizada por Wagner, no ciclo in titulado O anel do Nibelungo, constituído de quatro óperas.

As sagas amazônicas por sua vez foram registradas por etnógrafos a partir do século XIX, correntes por meio das línguas faladas pelas nações nativas da região. Há, nesse conjunto de lendas, personagens como o Jurupari, entidade concebida por índoles até certo ponto conflitantes de legislador e demônio.

Mas o colonizador impôs um novo comportamento em relação ao mundo. Trouxe o uso de idiomas escritos e eruditos. A poesia, então, ganhou na Amazônia a roupagem conferida pelo mundo civilizado, dos autores dotados do tirocínio adquirido nos bancos escolares, nos domínios do Latim, da língua portuguesa e do espanhol, resultando daí uma poética dominada pela tradição greco-romana assimilada pela Cultura Ocidental, do humanismo clássico em pleno Renascimento, trazida pelo colonizador e, agora, sincretizada no encontro com um novo humanismo, o humanismo dos povos da floresta e dos rios da Amazônia.

A poesia conservou a substância sustentada pela velha mitologia helênica, mas renovada pelos mitos amazônicos, revelados nas nuvens enigmáticas do pino do Olimpo, na Grécia antiga, e nas tradições geradas, ou no seio dos sertões da floresta úmida, ou no perau dos encantados, região situada na parte mais profunda e fria do rio Ama zonas. Ganhou, ainda, novas dimensões com o diálogo do paganismo greco-romano e a crença num Deus único, herdada do judaísmo e abraçada pelo cristianismo.

No contexto dessa conciliação cultural revelou-se a visão encantatória da Iara e da Boiuna, entre tantas outras figuras da mitologia ameríndia, entidades produzidas no universo amazônico, e do contato das Náiades e Nereidas, do ancestral universo europeu transladado pelo coloniza dor. Aproximam-se até na conformação física. As Náiades e a Iara ou Mãe-d’água, preservam semelhança com as Sereias homéricas, na manifestação maravilhosa do canto e no desenho da imagem. A Iara é formada de parte mulher e parte peixe, igual às Sereias, com a diferença de ser esta uma figura ilusória do mar e, aquela, um ente mítico dos rios da Amazônia. Curioso é que também as Náiades possuem na figura a metade mulher e a metade peixe.

Do ponto de vista antropológico, deu-se aí o encontro das duas águas na instauração de um rio único, forma que se corporifica na translação do encontro das águas do rio Negro e o Solimões, de onde nasce o rio Amazonas.

Tenreiro Aranha

Verifica-se o acontecimento do encontro dessas águas em Tenreiro Aranha. O poeta construiu uma obra já em português castiço, mas retendo, na maioria dos seus versos, a paisagem dos rios, igarapés e igapós, como legítimos jardins paradisíacos onde se divertem entes da mitologia greco-romana. Ainda aí ele pode ser considerado o primeiro poeta amazonense, além do ponto de vista simplesmente cronológico, porque não se recusou a adotar os motivos da Amazônia em seus versos.

Sua poética, enfim, assumiu as duas grandes linhas assimiladas pelo processo cultural identificado na poesia primitiva, praticada pelos primeiros amazônidas, e da herança greco-romana deixada pelo colonizador. No poema “Idílio” esse aspecto da questão é bem visível.

A biografia do poeta conhece eventos marcantes como a perda dos pais ainda criança e a tutela de um senhor tido por amigo da família que o constrangeu na infância ao trabalho braçal e forçado no campo. Na adolescência buscou apoio de um sacerdote seu padrinho e conseguiu realizar cursos regulares no Convento de Santo Antônio, em Belém do Pará, onde, por fim, foi promovi do às aulas dos alunos maiores ministradas pelos Padres Mercedários. Aos 19 anos, preparava-se para completar os estudos na Universidade de Coimbra, quando sofre o sequestro dos bens herdados dos avós, fato obscuro nos acontecimentos de sua vida, ficando assim sem recursos para concretizar o seu projeto de formação superior. Casa-se nesse mesmo ano e morre aos 42. Exerce funções públicas como a de diretor de aldeias indígenas e titular da Mesa Grande da Alfândega do Grão-Pará.

Tenreiro Aranha permanece nome de destaque na história não só por ter nascido na cidade de Barcelos, antiga Mariuá, então cidade-sede da Capitania de São José do Rio Negro, origem do Estado do Amazonas, nem por sua condição de administrador público e poeta, mas, também por ter sido pai de João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1790-1861), político de prestígio e primeiro Presidente da Província do Amazonas.

Olhemos atentamente no poema “Idílio”. É, enfim, uma loa dedicada ao então governador da capitania do Grão-Pará entre 1783 a 1790, de nome Martinho de Sousa Albuquerque. O objeto do poema parece ser a entrega do poeta a uma situação laudatória ao ilustre mandatário público, à caça de prebendas. Mas, sinceramente, não me prende aqui identificar as intenções vulgares do poeta, se não o valor e a autenticidade do texto como obra literária.

O personagem, elemento do poema, recolhe-se à praia após um mergulho n’água e ouve um murmurinho que chama sua atenção:

É um bando de ninfas, que o vizinho Igarapé descendo,

Com pressa ao largo rio vem rompendo.

O estilo do poeta conserva traços do que se poderia definir como um arcadismo amazônico, marcado, sem dúvida pelo movimento árcade mineiro, contemporâneo que é de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), para citar apenas dois dos seus maiores expoentes. É tocado por elementos da tradição do humanismo clássico revelado pelo neoclassicismo árcade. A diferença em Tenreiro Aranha está na adoção dos motivos da Amazônia em sua lírica.

Ao celebrar a presença dessa autoridade governa mental no interior da floresta, Tenreiro Aranha flagra o episódio da intimidade do referido governante em um banho de rio. O ambiente é selvagem e o aludido grão-senhor está cauteloso ante a possibilidade de um ataque de onças, expectativa criada pelo poeta para acentuar ainda mais a agressividade da paisagem.

O mandatário público, após um mergulho no rio, sobe à praia e ouve a conversa daqueles seres sobrenaturais, por entre os labirintos das árvores aquáticas, sem dúvida um igapó e o sereno reflexo do sol peneirado pelas frestas dos galhos, batendo naquelas águas misteriosas e solenes, tão fantásticas que podem muito bem produzir a ilusão da presença de ninfas. Desde aí os igapós tem sido objeto de reflexão e matéria de poesia, como se verá às páginas tantas no exame da presença de Américo Antony e de tantos outros poetas referidos neste livro.

O homem detém-se a observar o movimento nas águas do igapó. Vê o bando de ninfas descendo o rio, dispostas a ajudá-lo na recuperação da enfermidade que sofre e que o tivera detido por algum tempo recolhido em casa.

Fica a ouvir as coisas que as ninfas entoam, ali convocadas pelo poeta para homenagear o maioral da terra. Ele acredita que aquelas águas possuem o sortilégio de lhe conservar o bem-estar. As ninfas cumprem a sua missão de divas tutelares das águas e, quem sabe, aparecem naquele momento para beneficiar o nobre cidadão com os seus poderes miraculosos na recuperação da saúde.

Tenreiro Aranha demonstra maturidade formal, ao transladar das águas do mar Egeu para as águas da Amazônia, as figuras dessas semideias pagas. Em nenhum momento os versos revelam atitude exótica de quem força a mão, ao trazer para a paisagem dos rios e igapós, sem artificialismos caricatos e banais, as Náiades, ninfas protetoras das águas doces.

O canto das ninfas possui diversos alvos, visa agradar o bom Martinho, o maioral celebrado, e louvar os trabalhos do administrador público da Amazônia provincial, louvação também acolhida no poema, como anuncia uma estrofe do “Idílio” para celebrar o fato:

Já uma entoa, como

Havia o bom Martinho navegado

O Amazonas, e como

0 Guamá, Tocantins há visitado,

E a mil rios distantes

Por ver e dar auxílio aos habitantes!

A visão do poeta abre a grande angular sobre a região, referindo-se ao Guamá, rio importante da Amazônia Oriental também por abastecer de água a cidade de Belém do Pará, e o Tocantins que tem como característica original o raro fato de nascer e desembocar em terras brasileiras, concorrendo assim com o carismático rio São Francisco.

O poeta precisa saber se as ninfas terão sucesso com o Deus da Medicina para curar o seu homenageado. Senão há necessidade de que se erga uma capela construída de umiri, madeira nativa da floresta amazônica, preferida na construção de casas. Deseja, ainda, que a capela seja enlaçada com os ramos da alva sumaumeira, árvore nacional da Amazônia, nesse momento vista pelo poeta no tempo em que faz explodir os seus frutos, liberando sementes envoltas em plumas alvas levadas pelo vento. Mas aí as ninfas se assustam e encerram o diálogo na loa “Idílio”:

Todas ao seu destino se apressaram.

Um dia, “quando sofria vexações”, Tenreiro Aranha escreve soneto dedicado a um passarinho, com reflexões sobre a condição humana. São versos que poderiam ser escritos por qualquer poeta e em qualquer idioma, a revelar as emoções do homem em qualquer paragem do plane ta. Bem diferentes, no entanto, dos versos do “Idílio”, que não seriam escritos em outro mundo senão o universo das águas amazônicas e dos labirintos dos seus igapós de águas solenes, trêmulas e translúcidos.

O soneto encerra com um terceto que revela as in quietações do poeta em relação aos semelhantes:

Dos homens me rodeia a iniquidade,

A calúnia me oprime; e, ao fim tremendo,

Me assusta uma espantosa eternidade.

Muito dos poemas de Tenreiro Aranha se perdeu nas andanças do poeta e na invasão de sua casa, pelos caboclos mobilizados na guerra da Cabanagem27. O raro que sobrou teve publicação póstuma, em 1850.

As inserções da paisagem amazônica em sua concepção poética são notáveis. A qualidade técnica de sua lírica reserva-lhe um lugar de destaque nos quadros da literatura amazonense. Possui poemas recolhidos em antologias da poesia brasileira.

Álvaro Maia

Já Álvaro Maia viveu um novo tempo. A militância política a que se dedicou desde muito jovem conferiu-lhe atribuições administrativas e parlamentares ao longo da vida, a serviço do Amazonas. Em tudo assumiu compro misso com a paisagem e o homem amazonenses. Não era, portanto, só um visitante extasiado com esse universo. E assim, a poesia nele se revela. Álvaro Maia tornou-se uma figura de projeção entre os poetas amazonenses da gema, em todos os períodos. Sua mensagem funda-se na valorização do amazônida na poesia e na política, tanto que, no exercício brilhante de sua militância na divulgação de ideias e na doutrinação de princípios, criou a palavra caboclitude, expressão por ele próprio definida, na introdução ao Banco de canoa:28

(…) para imitar negritude29, qualidade comum às atitudes,

e às condutas dos caboclos do interior.

Álvaro Maia, igualmente estadista e poeta, retoma a grande voz da poesia marcada pelos motivos da Amazônia. Desde os primórdios da história brasileira, os povos da Amazônia defenderam o seu território de todo tipo de invasão, até a Coroa Portuguesa consolidar sua posse no século XVIII, tempo de Tenreiro Aranha. Depois veio a luta pela autonomia política e, em seguida, por seu desenvolvimento econômico, tempo de Álvaro Maia. Isso dois séculos após a consolidação da posse, notabilizando-se por estimular gesto alimentado pela valorização do homem e da terra, instigando o entendimento das origens tradicionais funda das pelo segmento ameríndio da cultura amazônica. Exalta Ajuricaba como um herói. Aclara a controvérsia levantada por determinados setores do pensamento brasileiro de que esse notável chefe índio teria defendido posições de interesses não nacionais.

A história política do Amazonas, marcada pela presença de lideranças externas nem sempre comprometidas com a sua realidade, desde a capitania até os primeiros movimentos da República, ressentia-se de programas que atendessem às reais aspirações da sociedade e do povo. Sua ação política, portanto, iniciou-se num momento de crise valorativa do amazonense, esgotado que estava com aquela situação, enraizada na tradição e nos costumes do povo.

Álvaro Maia aglutinou as lideranças jovens do Ama zonas em torno de um ideal e venceu, tomando por mote o fato histórico da adesão do Amazonas à Independência, comemorado em 1923.

Para celebrar a data, Álvaro Maia escreve a Canção de fé e esperança, conferência pronunciada no Teatro Amazonas, em sessão de casa cheia, numa atmosfera de comoção e entusiasmo, testemunhada pelo Professor Arthur Reis, um dos então jovens mobilizados pelo movimento e que relata o fato em sua obra de historiador. Nesse pronunciamento ele aprecia o ideário político do glebarismo, que é a valo rização do homem e da paisagem amazonenses. Fórmula, também, uma verdadeira carta de princípios orientadora das elites no processo de tomada de consciência desses valores. A partir desse ponto, seus contemporâneos o levaram a assumir o comando político do Estado em 1930. Era também uma tomada de posição no universo da poesia. O texto da Canção é composto sob a atmosfera dos motivos da Amazônia, como se desenha no seguinte passo:

Na formação da árvore frondosa, que resume a força de nosso berço natal, devemos ter a abnegação das raízes, trabalhando no seio do solo, para que os galhos arracimados reverdeçam e se dobrem ao peso de flores e folhas. Cantem, em cima, os ventos; esplenda o sol, e espalhe o seu pendão de ouro; rujam os temporais renovadores e passem as primaveras; a árvore encante os olhos, e dê alimento, e dê poesia, que a raiz, como um braço sem descanso, persistirá em sua faina religiosa, sem perguntar porque se martiriza na escuridão e na obscuridade, sem a menor revolta pelo destino humilde.

Com o distanciamento do fato histórico podemos confirmar essa verdade.

Ao glebarismo, como definição do ideário com que interpretava o processo político de avaliação da sociedade, associou a expressão caboclitude, palavra derivada de caboclo, no caso caboclo do Amazonas, que constitui a síntese das qualidades individuais e da orientação pessoal do povo amazonense.

Mas as relevantes funções públicas que exerceu como resultado dessa militância – duas vezes Interventor Federal, duas vezes Governador e três vezes Senador da República, tudo no Amazonas -, jamais lhe impediu de todo ano passar as férias no sítio Goiabal, às margens do rio Madeira, onde ainda vivia a sua mãe com idade avançada. Falecera em 1968, sob o anúncio glorioso do centenário, um ano antes de Álvaro Maia, desaparecido em 1969, aos setenta e seis.

Ao chegar ao sítio onde nasceu e passou a infância, Álvaro Maia livrava-se do paletó e da gravata, indumentárias o cerimonial de Chefe de Estado ou de parlamentar imposta aqueles idos, e adotava o vestuário dos seus irmãos do rio, blusão de brim e calça de mescla enrolada até o meio das pernas. Ia pescar e conversar com os ribeirinhos, conversa depois convertida em páginas de excelente prosa e bela poesia.

Aí nasceu o Banco de canoa, definido pelo próprio Dr. Álvaro como uma reunião de

narrativas e historietas, colhidas entre os seringueiros nos

bancos de latadas e canoas, (…) verídicas ou produto da

imaginativa popular.

Eram personagens anônimos, entre os quais está Manoel de Souza Rodrigues, chefe da estação do Departamento de Correios e Telégrafos de Humaitá, que se relembra aqui para sublinhar o valor que esse grande político e poeta reservava a seus companheiros. Devia também essas narrativas a moradores veteranos do Madeira, diz ele.

Os contemporâneos reconheceram o seu prestígio intelectual, ainda por sua contribuição aos estudos da geografia humana, nos ensaios recolhidos em Gente dos seringais e Defumadores e porongas, nas crônicas do Banco de canoa, e no romance Beiradão.

Embora se tenha manifestado poeta desde jovem, Álvaro Maia não publicou nenhum livro de poemas na mocidade. Só aos 65 anos reuniu volumosa coletânea de 324 páginas, com o título de Buzina dos paranás, lançada pelo editor Sérgio Cardoso de Manaus, em 1958, e reeditada pela Universidade Federal do Amazonas, em 1997.

Sempre foi reconhecido como poeta, pela publicação de alguns poucos poemas em revistas e jornais de Manaus. Era também reconhecido como artista da palavra por sua oratória primorosa, na maior parte proferida de improviso em suas maratonas políticas nas ruas das cidades e na beirada dos rios, paranás, lagos e igarapés por onde andou. Nesses discursos a poesia era generosamente distribuída com as imagens, o fraseado e o fascínio de sua sensibilidade e inteligência.

Pergunta-se porque não publicara mais cedo os seus poemas em livros de maior acesso dos leitores?

Há duas hipóteses que despontam como resposta a essa indagação. A primeira é a do fato de estar sempre envolvido nas ocupações político-administrativas e parla mentares a que dedicou a maior parte da vida, sem vagares para organizar um livro de poemas. Outra é a de os poetas possuírem na província a fama de boêmios e não serem levados a sério. Para comprovar a suspeita dessa maneira de ver o poeta, vai a seguir uma história corrente entre os próceres do Governador Álvaro Maia.

Um prefeito do interior, num despacho com ele, pleiteia a remoção do Promotor de Justiça para outra Comarca. Qual a razão? Simplesmente porque o indigitado defensor da lei estava criando problemas na cidade… Dizia o prefeito, ainda, em tom de escárnio, que o homem era até poeta… Ninguém menos que o grande Américo Antony. No entanto, o simplório mal suspeitava de que poeta era também o governador…

Álvaro Maia trabalhou uma poética de tonalidade romântica e condoreira. Parecia produzir o poema para ser falado, declamado. Seu verso e sua prosa trazem o conteúdo oriundo do permanente contato com a vida amazonense nos rios e na floresta, que plasmou o humanismo dessa figura notável em nossa história e em nossa vida.

É bem uma amostra de sua obra poética o poema “Sobre as águas barrentas”.

Fluente e límpido na linguagem, o poema é elaborado com a habilidade de um verdadeiro mestre, em largos e perfeitos alexandrinos, com cesura na sexta sílaba, obedecendo às normas da modalidade. É um poema longo, de rimas paralelas, ocupando 5 páginas do livro e lançado em 90 versos, dedicados a celebrar a animação do rio Madeira, que lhe faz transcender os limites de um simples acidente geográfico.

O poema é uma viagem pelo rio Madeira ao cair da noite, de volta para casa, onde a mulher do canoeiro espera o seu homem com um sorriso de brasa.

Demonstra logo na abertura do poema que a alma do poeta é a tarde prisioneira, libertada naquela hora sobre as águas do Madeira.

Prossegue com a exortação ao remador, para que leve a canoa, mas antes avisa que a noite se avizinha e é preciso ter cuidado. Mas a montaria vai como um peixe. A montaria que, no Amazonas, é uma canoa de menor porte, conduzia por um remador montado no banco da proa, no caso do poema com o poeta acomodado no banco do meio.

O poeta continua a contemplar a paisagem exterior. Divisa a janela de palha onde repousa o rosto da companheira daquele trabalhador da floresta. É bem uma referência ao formato das moradias do homem da beira do rio, ou as casas de taipa e chão de barro batido, com as janelas de palha, ou as construções de esteios de madeira e paredes e pisos extraídos de palmeiras paxiúba.

O canoeiro leva o poeta pelas águas. Agora num mergulho ao seu mundo interior. Abandona a paisagem de fora, das aparências geográficas que a pouco apreciava, sob o impulso do canoeiro no remo da canoa. O poeta se volta para dentro de si mesmo, porque as águas do Madeira libertaram a tarde prisioneira. O poeta recorda o ambiente da infância e compara a canoa que o leva a uma “áurea flor de bubuia”, isto é, uma flor de ouro que flutua.

Vem a infância que é o maior legado da vida, como uma flor de bubuia. Na próxima sequência é a maturidade, mas também pungida pelas marcas da infância.

Ali em frente, numa das passagens do rio, surge um batelão conduzido por vários remadores, tais “Hércules seminus”. No embate dos remos nas ondas do rio e em meio à espuma, o poeta alimenta a esperança de ir ali acontecendo o nascimento de uma nova geração de construtores do mundo.

E o poeta exalta esses homens, fraternalmente, na esperança de que abram caminho a um grande povo.

Agora chega a noite,

(…) O vago céu escorre

uma toalha de breu sobre a tarde que morre…

Prossegue na conversa com o canoeiro. Chega ao fim a viagem e o poeta afaga o coração do amigo, o canoeiro que o levou pelas águas de sua vida, ao longo do rio Madeira, onde a terra mãe e a sua própria mãe carnal constroem

a luz do amor, o bem do sonho, o pão da vida!.

Álvaro Maia jamais deixou de se identificar com a sua caboclitude. O instrumento a que se refere no título do seu livro, Buzina dos paranás,30 possui feição arraigada aos usos e costumes do ribeirinho do Amazonas. A buzina usa da pelos homens do rio é um utensílio construído de palha ou de taboca, soprado para prevenir os moradores ribeirinhos, entre tantos outros avisos, de que o pescador está se aproximando de casa.

Ao navegar nos seus poemas encontram-se invenções de raridade formal como no poema “Catalina”, com o que Ál varo Maia homenageia uma aeronave popular entre os ribeirinhos nos anos 50 do século passado. Projetada em 1935, para fins bélicos, o catalina tornou-se avião de passageiros a partir de 1945. As comunidades amazônicas não dispunham de um sistema de aeroportos e esses hidroaviões prestaram serviços inestimáveis nos transportes aéreos pousando n’água. A Panair do Brasil foi a única empresa a operar com os catalinas até os anos 60. Suas pistas de pouso preferidas eram os rios. Nos anos 1970, não mais funcionava a Panair do Brasil e os catalinas passaram a ser mantidos pela Aeronáutica e só usados em missões especiais.

Álvaro Maia que vivia atento a tudo o que se relacionava com a vida na Região, deve ter usado muitas vezes o velho Catalina, em suas expedições políticas, fixando em seus poemas a imagem desse hidroavião. Ele realizou um poema cuja conformação gráfica responde ao desenho da aeronave. É um poema figurado. Uma forma poética usa da desde a antiguidade clássica e frequente no Barroco. A partir do Romantismo poetas brasileiros dedicaram-se à sua prática. O velho Álvaro também estava ligado a esses procedimentos poéticos. “Catalina” possui múltiplo ritmo e a variedade de versos que abrange das redondilhas aos versos bárbaros, e momentos de excelente poema em prosa, sem jamais resvalar na prosa rasa, mas ao contrário sempre tocada por emoção estética.

Na abertura do poema, significando a cabine de comando do avião, Álvaro Maia usa redondilhas que, em seguida, se abrem nas asas já expostas em largos versos bárbaros.

Logo aí se percebem na estrutura do poema, uma rima interna, entre as palavras “mágoas”, no meio do penúltimo verso, com águas no final do último da sequência.

Desenha-se o espaço reservado aos passageiros, como se fosse o corpo da aeronave que se estende sob as asas. O poeta vê o avião de fora, nas sombras que produz sobre as águas e a floresta, antes do pouso e lhe oferece a imagem de uma cruz.

Na empenarem do catalina, parte traseira onde se encontram os timões, o poeta percebe a mensagem que aquela figura lhe desperta

para o infinito, a liberdade,

o amor.

que é o leme do catalina

Álvaro Maia não demonstrava simpatia ou antipatia pelas várias correntes da poesia moderna. Era um homem educado e calava ante a possibilidade de manifestação de qualquer conceito que desagradasse os seus ouvintes para o bem ou para o mal. Essa era a impressão que despertava em seus jovens interlocutores do Movimento Madrugada, com quem mantinha bom relacionamento. Não repudiava o verso livre. Há, no seu livro, pelo menos um poema em verso livre intitulado “Rio Lunar”, que revela real tendência talvez de adesão ao procedimento estético adotado pelos rapazes da madrugada. Recebia-os afavelmente no porão onde morava, numa residência de amigos na Praça de São Sebastião, na vida simples que escolheu para viver, inspirado pela espiritualidade que experimentou desde jovem.

Percebia-se ali a situação do escasso que era o seu dia a dia em termos materiais, sem embargo das funções públicas de destaque exercidas ao longo de toda a vida e, naquele momento, em pleno mandado de Senador da República. Numa dessas visitas dos jovens madrugadores, mostrou-lhes as primeiras estrofes de um poema que escrevia movido pelas pedrinhas da praça, cujo desenho é uma alegoria ao encontro das águas do rio Negro com o Solimões, fenômeno observado em frente a Manaus. A novidade é que o poema estava sendo escrito em versos livres e não consta de nenhuma das edições de Buzina dos paranás.

O poema, afinal, foi concluído quando o poeta contava por volta dos 67 anos, e publicado na revista da Academia Amazonense de Letras, número 10, de 1960. O texto é longo e vai por doze páginas da revista. Prende-se a uma crônica sobre aquele pedaço da cidade onde acontece um mundo de fatos relacionados com a sua vida juvenil e boêmia, a atmosfera gerada pelos ritos católicos e a luminosidade dos vitrais da Igreja de São Sebastião. Ritos de fantasmas fundo das noites silenciosas quando tudo cessa e as pessoas se recolhem às suas casas para repousar.

Mas os fantasmas permanecem rondando os bancos da praça:

(…)

apiás engasgando tontas cunhantãs,

sondando em jongos de fogo,

com as pernas cheirando a pimentas, queimadas de urtigas e jiquitaias…

As pedrinhas da praça viram muita coisa e contam o que viram:

Contam a vida do bom Frei Domingos

tão bom, que, de tão bom, se foi embora,

– pobre que ouro esparzia nas palavras

ouro foi esparzir no paraíso…

Frei Domingos morava na residência dos Capuchinhos Franciscanos, mantenedores da Igreja de São Sebastião, ali na praça. O pequeno frade era reconhecido como um sacerdote dedicado ao seu trabalho e santo. Há, na tradição das suas histórias, testemunho de devotos que o viram levitar nos momentos de oração e de meditação extrema. Passava a maior parte do dia sentado no confessionário à espera de alguém que viesse em busca de ajuda na orientação espiritual, momento em que distribuía o ouro de sua palavra e iluminava os caminhos do confessando. Num desses dias procurou-o para orientação um jovem sacerdote chamado Diomar Lopes, professor de teologia e perito no pensamento de São Tomás de Aquino. O jovem mestre tomista saiu de lá maravilhado pelo conselho que The iria marcar a missão religiosa por toda a vida. Após longo diálogo, o jovem sacerdote ficou surpreso com a sabedoria de Frei Domingos. Por fim recebera a lição que muito lhe serviu. Dissera-lhe Frei Domingos: o padre precisa ser sábio e santo, sábio para se impor perante os homens e santo, para se impor perante Deus.

Junto com a sabedoria e a santidade de Frei Domingos, celebradas pelo poeta movido por aquelas pedrinhas pretas e brancas, levado principalmente pela simplicidade, ali também está um objeto que as pedrinhas assistiram crescer:

Em meio à praça, está um brônzeo monumento,

mulher em continência à abertura dos portos,

cabelos soltos, coxas nuas,

oferta o seio duro a um Mercúrio prisioneiro

e parece entreabrir os olhos desnorteados

às seduções e às loucuras das ruas…

0 poeta vê, nesse momento, entre as pedrinhas da praça, as amazonas de braços fortes, o ressurgir dos festins da moça nova no tempo em que a praça era floresta e ali viviam as tribos dos homens nus, e os rituais contemporâneos da dança dos bumbás e os sons de uma interminável serenata.

O poeta desenha a imagem do violão, instrumento do cantor da serenata e da mulher motivo da emoção do seresteiro, na forma do número 8. A serenata avança pela madrugada e faz integrar-se ao grupo dos seresteiros a ilusão da mulher homenageada. No fervor com que harmoniza as cordas do violão o cantor acaricia a imagem em forma de 8 de sua amada. Na trama do poema a mulher assume a forma do violão, entra na melodia e interfere na apreciação da vida, na magia do intertexto movido pelas pedrinhas da praça.

0 cantor canta os versos à sua amada:

Tens um violão dentro do seio…

Teu corpo é um 8 morena,

modelado no violão,

com o centro no coração…

Tocada pelas cordas da serenata a moça ouve o canto com paixão, as modinhas lhe golpeiam o corpo em febre, revela que os seus olhos despem-lhe os vestidos e vestem os sentidos e fala ao cantor nos seguintes versos:

Exponho-me sem roupas, seminua,

toda embrulhada nos sendais da lua,

para apertar os teus lábios de verão,

meu Senhor

Amor,

meu Violão…

Mas o maior testemunho das pedrinhas da praça é ter visto aquele senhor poeta, mais do que sexagenário, assumir uma linguagem nova, mas sempre posta a serviço das emoções humanas e dos motivos da sua terra. O longo poema sobre as pedrinhas da praça é um verdadeiro de safio enfrentado e vencido pelo poeta, consagrado toda a vida ao exercício do verso bem medido e bem rimado, na tradição dos movimentos parnasianos e simbolistas dominantes desde o tempo de sua juventude. Tudo é novo nesse poema e nem de fundo guarda o tom solene das estéticas anteriores, nem o tom coloquial que é uma das características mais visíveis no verso livre, nem a distensão emotiva que poderia esvaziar o poema da substância do seu significado mítico, se não fosse conduzido por um ver dadeiro bardo.

Esse foi o seu último trabalho, sempre dedicado ao mundo maravilhoso de sua terra, das cunhantãs cheirando a pimenta, queimadas por folhas de urtiga e das formigas jiquitaias.

Álvaro Maia, embora tenha exercido por toda a vida funções públicas de administrador e parlamentar, professor apreciado por seus discípulos e admirado por seus liderados políticos, enfim um estadista, na essência foi mesmo um grande poeta, ao celebrar as águas barrentas do Madeira, ao desenhar no céu a imagem em cruz do catalina, e ao produzir um diálogo bruxo com as pedrinhas da Praça de São Sebastião.

Em todas as formas adotadas por Álvaro Maia, em sua poética, tomados como exemplo esses três poemas, o verso medido, o verso bárbaro, o verso livre e o poema em prosa, jamais perdem a unidade da emoção estética e o cuidado que tem em distribuir as palavras com bom gosto e precisão técnica.

Américo Antony

Embora tenha sido contemporâneo de Álvaro Maia, o tempo de Américo Antony constitui, historicamente, o mais forte traço de união do parnasiano-simbolismo com a poesia moderna, defendida pelos poetas do Clube da Madruga da, precursores das novas formas. Ainda que seguindo caminhos adversos, Américo Antony exerceu influência mais efetiva entre os novos poetas do Amazonas, do que Violeta Branca. Antony acompanhou pessoalmente e influiu no surgimento dos novos poetas amazonenses. Violeta contribuiu com o seu livro sem ter tido, num primeiro momento, empolgado os madrugadores. Os seus versos distendidos e claros, cheios de paixão e reveladores de sentimentos com prometidos com a terra, não persuadiam os madrugadores mais interessados, uns com a poesia de expressão social como Farias de Carvalho, outros com a vocação de ordem metafísica de Jorge Tufic dos seus primeiros livros. De um modo geral, cuidava-se de uma poesia de fatura hermética, nada ao modo, portanto, de Violeta Branca.

Bem mais tarde é que a poesia de Violeta recebeu o reconhecimento como precursora dos novos rumos. Antony, com o seu exemplo de vida e de conhecimento da poesia, principalmente da poesia de língua inglesa, foi mais efetivo desde a primeira hora. Conhecia e dizia de cor autores anglo-saxões antigos no original. Falava o inglês clássico. A poesia nele não era só um objeto de trabalho, como pode ser em todo poeta de vocação, mas o aprendizado de um poeta totalmente dominado pelos mistérios da elevada poesia, com o que se embriagava e atingia os altos momentos de concepção da existência. Possuía plena consciência da tradição de sua família que estava entre os fundadores de Manaus. Do ramo paterno sua família remonta às primeiras duas décadas do século XIX, inaugurada pelo toscano Henrique Antony, que veio para o lugar da Barra do Rio Negro, fugindo à dominação napoleônica na Europa de então. Do lado materno possui raízes plantadas nas populações nativas do espaço onde se construiu a cidade. Desde criança viajou muito em companhia dos pais.

Na Inglaterra fez o curso de humanidades no Saint Georger’s College, de orientação católica, na cidade de Waybridge, Surrey, região metropolitana de Londres³¹. De volta a Manaus graduou-se bacharel pela Faculdade de Direito do Amazonas. Membro do Ministério Público era censurado pelos jurisdicionados, por sua excentricidade no comportamento exigido pelo senso comum, a um representante da justiça.

O poeta nunca admitiu ser aquilo que em verdade não era, na essência do seu comportamento, despojado de qualquer tom de formalismo. Jamais perdeu o contato com a gente de sua origem, os índios e os caboclos, pois ele próprio gostava de lembrar sua ascendência nativa do lado materno, pertencente ao clã do chefe índio, tuxaua Manáui Camandry, da aldeia que originou o lugar da Barra de São José do Rio Negro, a Manaus de hoje. Era tanta a sua fascinação pela paisagem dos rios e da floresta que, por um largo período, residiu numa canoa que batizou de Ave Maristela, tal e qual os índios Mura, que faziam de casa as suas ubás.

O poeta era enlevado pela água. Entre os hábitos domésticos quando estava na cidade, seu lugar preferido era um camburão cheio de água até as bordas, onde ele se metia totalmente despido, compondo poemas sobre mesa improvisada, feita com uma tábua acomodada nas beiradas do camburão. De noite ele recitava os versos do dia aos seus jovens convidados. Eram maluquices consumidas com humor pelos jovens madrugadores, muitos deles marcados por sua influência na dicção, na inflexão, no gestual, enfim, com que se portava o poeta em suas performances.

Havia alguns pontos da cidade que o poeta gostava de frequentar. Um deles era um café que funcionava no Pavilhão Universal, então instalado na antiga estação de bondes vizinha à Catedral, que não existe mais, porque o aludido pavilhão fora transplantado para a Praça Adalberto Vale, em frente ao antigo e igualmente extinto Hotel Amazonas. Ali, também, entre admiradores, tinha o hábito de dizer, generosamente, os seus novos poemas, certo dia, no auge de um desses momentos de entusiasmo lírico, um dos convivas explodiu em aplausos. O poeta não gostou de ser interrompido. Fez uma pausa na recitação e perguntou àquele homem simples: “Você é poeta? Você entende de poesia?” E, ante o silêncio e o gesto de cabeça negativo daquele homem, o poeta conclui: “então se cale, porque comigo é muita poesia ou muita porrada”. Era uma valentia mais intelectual do que física, visto a sua com pleição corporal já àquela altura não lhe permitir desagravos a esse nível, embora na juventude tenha se dedica do à natação esportiva.

Nos momentos mais expressivos de sua atividade poética, escreveu “A ronda dos cisnes”, uma obra prima, que faria a glória de qualquer poeta em qualquer língua, ponto alto da criação lírica amazonense no período. São versos de sua primeira fase.

Mas já se observa nesse poema, a concentração de elementos de linguagem transformadores da paisagem exterior dos rios e florestas, a revelar o sensualismo profundamente envolvido pelo fascínio da natureza amazônica, expressão de um singular panteísmo.

Começa o poema:

O lago acorda. E a lua se insinua

Entre o palmar que aljôfares desata.

Há um silêncio de cisma na alva lua…

Passam os cisnes… são gôndolas de prata.

É uma cena do amanhecer sobre o lago onde passam os cisnes. A face da lua ainda brilha entre as gotículas de do sereno matinal muito comum na floresta amazônica em certas épocas do ano.

A imagem dos cisnes vai construindo o decurso do dia, o cisne rosa da aurora, o rubro do sol escaldante do meio dia, o cisne violeta quando se aproxima a noite. O lago dorme nas trevas, entre os relâmpagos de um temporal repentino e surpreendente que se anuncia nos céus da Amazônia. Rebenta a tempestade, as trevas se iluminam de relâmpagos, e

Os cisnes voltam negros como a noite,

Cantam na solidão da noite… e morrem.

Em seguida o poeta põe de lado o universo dos símbolos e se compromete com o meio físico de sua terra. Os motivos de sua poesia deixam de receber a metáfora de um cisne e se transformam em garças levantando o voo ao entardecer, à procura do infinito. Há momentos em que ele se aproxima ainda mais do seu mundo de árvores e água e dos seres que o habitam, como no soneto “Cigarras”, construído em perfeitos alexandrinos e iniciado com um verso pleno de musicalidade, que transcrevo, integralmente em seguida:

Cigarras que vibrais os tímpanos de prata

Das tardes tropicais, dos cálidos verões,

Vós trazeis o sonhar, vós trazeis as canções

Que mortas teve um dia, o coração da mata.

Renovai vossos sons, despertai a sonata!

Prendei de novo, ao ramo antigo, as ilusões

Onde floriu o amor nas quentes estações,

Onde o sol, resplendente, o seu calor desata!…

Precursora de um bem, da esperada alegria,

Ó cantoras de bronze a vibrar noite e dia,

Que morreis quando morre esta querida estância:

Filhas do som, da paz, cantai, núncias da Flora!…

Ah, quem me dera ouvir, mesmo de longe, agora

No inverno de minha alma as cigarras da infância.

Mas sua inspiração amazonense realiza-se em plenitude no soneto intitulado “Igapó”, que, na constituição hidrológica do Amazonas, é um charco, pântano coberto de mata, regularmente plantado às margens dos rios quando enchem. Mas para o poeta o igapó não é nada disso. Esse ambiente transporta o poeta a um lugar sossegado, onde as águas gemem e choram, mas em atitudes de paz, como se fossem divinas. Nesse lugar os rios do Amazonas escondem o cansaço, na flor da sombra do suave repouso, onde dorme o poeta e sonha com a eternidade sob o japá de sua amada canoa “Ave Maristela”, assistido por insetos de ouro. Aí o igapó oferece ao poeta uma infinidade de imagens, as águas a refletir trevas e luzes, aves de mil cores, a alma dos beijos, o pólen da luz, até encerrar com a condensação de todas essas imagens no seguinte decassílabo, em que ele define as águas como

Líquidos olhos de pajés boiando…

O igapó é um dos sítios mais belos da paisagem dos rios amazônicos, com justiça fixado nesse belo verso do velho Américo e usado por Tenreiro Aranha como agente de inspiração. Em qualquer hora do dia a atmosfera do igapó é solene e misteriosa. As águas oferecem o efeito de uma per manente vibração, domada pelas árvores cheias de folhas, de flores e de frutos. A luz é filtrada por tudo isso como se ali se estendesse, como a pele monumental de uma onça pintada, o líquido espelho dos olhos dos pajés boiando. O igapó é visto ainda por Antony como um lugar

Onde a água geme… e é quase divindade.

Os poetas amazonenses dos anos 1920 foram marcados pela estética do parnasianismo e do simbolismo. Mas Américo Antony não aceitava a classificação de simbolista. Sobre o assunto, registra-se a seguinte história envolvendo o seu nome.

Uma figura de prestígio, intelectual e político da cidade, escrevera texto para servir de prefácio a um projeto de coletânea de seus poemas, livro que afinal não vingou. O autor do prefácio classificava-o como poeta simbolista. Ele não gostou. Apressou-se em ir a um jornal e solicitar que The publicassem uma nota de esclarecimento, sem dúvida malcriadamente. Dizia a nota:

a quem interessar possa

– eu não sou poeta simbolista.

Essa mínima nota gerou um mal estar tão grande, que o impediu de tomar posse na Academia Amazonense de Letras, mesmo já tendo sido eleito para uma das cadeiras da casa, então presidida por Adriano Jorge (1879-1948). O autor do prefácio era ninguém menos que o mestre Péricles Moraes (1882-1956).

O tempo que é o remédio mais eficaz para curar as feridas e repor as coisas no lugar, conferiu novo rumo a esse acontecimento e o poeta, de sua parte, também já havia superado os arroubos da juventude. Os dirigentes da Academia, então, tiraram por menos o desentendimento desse episódio e lhe deram posse de uma das cadeiras do Silogeu amazonense aos 65 anos de idade.

A partir desse momento passou a reservar especial atenção à Academia. Assumiu o hábito de frequentar as sessões ordinárias da Diretoria do sodalício, na época, aos sábados de tarde. Ia sempre enfarpelado no traje a rigor com que tomara posse, só exigido no protocolo das sessões solenes especiais e de posse de novos acadêmicos. Após as reuniões ele saia a pé e chamava a atenção das pessoas ao vê-lo vestido em trajes tão solenes naqueles finais de tarde.

Mas, apesar de sua opinião em contrário, o seu trabalho com a poesia possui – sem desdouro dele próprio e do legado construído pelos simbolistas de todos os tempos e de todas as línguas – as características da estética simbolista, na musicalidade extrema dos versos, demonstrada na habilidosa prática das aliterações e assonâncias, e na visão idealista do mundo:

Cigarras que vibrais os tímpanos de prata.

A personalidade cativante e o saber do poeta dos cisnes, das garças e das cigarras, dos igapós, dos olhos dos pajés, aglutinaram em seu convívio os jovens poetas de Manaus, com destaque para os madrugadores Luiz Bacellar e Alencar e Silva (1930-2011).

Os madrugadores mantinham por Américo Antony grande admiração e muito carinho. Mesmo sem o desejar o poeta exercia forte liderança intelectual entre eles. Tudo por seu jeito de ver o mundo e por sua relação com as pessoas. Vivia cerca do dos jovens poetas do Movimento Madrugada, atraídos por sua cultura e a excentricidade visceral de um visionário.

Luiz Bacellar era um dos mais assíduos frequentadores da casa do poeta. Invariavelmente recebia-os à noite quando atingia os seus melhores momentos de bom humor e fantasia. Venerado pelos jovens, Alencar e Silva, em um dos poemas de Painéis,32 seu livro de estreia, celebra-o com um soneto encabeçado pela seguinte nota:

Este soneto é para ser lido por aqueles que têm uma ideia

nítida do que seja o ascetismo miraculoso do grande cantor

do Amazonas, em toda a extensão do significado triunfal

de sua poesia.

Grande parte da produção do poeta ficou inédita. Em vida publicou um livro apenas, em 1959, intitulado Os sonetos das flores. Alencar e Silva e Jorge Tufic tomaram a iniciativa de levantar os inéditos e, num trabalho minucioso de restauração de poemas que ainda estavam manuscritos, conseguiram enfim recuperar toda a obra poética do Américo Antony, trabalho que afinal ainda permanece manuscrito e inédito nos arquivos da Academia.

L. Ruas, um dos destaques do Movimento Madrugada, escreveu em registro pela morte do poeta:

Não me convém entrar, nesta simples crônica, em comentários

sobre a poesia e a presença de Américo Antony. Poeta,

simbolista, irmão a quem muito todos nós devemos e a

quem sempre estive ligado muito espiritualmente.

Américo Antony foi, portanto, um mestre dos jovens madrugadores. Mestre na acepção dos anciãos indígenas que se postam embaixo das árvores e, com sua simpatia e a habilidade em lidar com as mãos e construir cestos de palha e adereços de arte plumária, vão ensinando as crianças e os jovens a lidar com a vida.

Américo Antony tecia palavras, em um tempo estético anterior ao de Violeta Branca.

Mas o tempo de Violeta Branca em Manaus ainda não era assim tão propício à realização da poesia que ela realizou. Sua estreia com Ritmos de inquieta alegria,33 em 1935, um dos títulos mais sugestivos para um livro de poemas, foi um acontecimento de surpresa. O livro permaneceu, por algum tempo, um dos instrumentos mais representativos da nova poesia nas letras amazonenses, pelo significado de renovação formal e pela força de seu conteúdo nativista. Esse livro permaneceu sendo a única obra de Violeta, até 40 anos após, quando publicou Reencontro, composto por versos dotados da mesma exuberância e da mesma liberdade formal do primeiro. Mas vamos examinar neste espaço algumas linhas dos seus Ritmos.

Um dia, na cidade amazonense de Parintins, baixo-Amazonas, nos primeiros anos de minha descoberta dos trabalhos da poesia, fiz uma visita à biblioteca da cidade que funcionava no prédio da Prefeitura. Fiquei algum tempo naquela sala amplamente iluminada por uma bela manhã de sol muito comum na Amazônia, cercada de estantes cheias de livros. Confesso o meu conhecimento àquela altura de grande parte dos poetas românticos brasileiros de suas três gerações e dos parnasianos e simbolistas, presentes ali, em volumes que ia olhando até sem muito interesse, pois o meu convívio diário com eles me supriam da surpresa da repentina curiosidade.

Só não conhecia nada é de poesia moderna. Aí me dei de frente com um exemplar do livro de Violeta Branca, num agradável trabalho gráfico realizado por uma editora de Manaus. O livro me fascinou em todos os aspectos, o acaba mento editorial e a novidade que era aquela coisa maravilhosa agindo como a reverberação da luz iluminando a sala daquela pequena biblioteca municipal. Eu estava até a ponta dos cabelos afogado no espírito do romantismo, nos versos empolgantes de Castro Alves e sua história de vida, enfim investido da mensagem dos poetas das fases anteriores, de pronto chamado à leitura dos versos livres dessa ilustre figura de nossas letras.

Reconheci, depois, que Violeta Branca é mais do que uma das grandes vozes femininas da lírica amazonense. É também inovadora. Exerceu uma poesia manifestada em versos livres e linguagem direta, ousando trazer despojado à luz do dia o ardor dos seus anseios, isso numa sociedade, segundo o sempre muito lúcido Jefferson Péres – um dos mais atilados representantes do Movimento Madrugada na análise da sociedade amazonense do tempo de Violeta -, ainda marcada com as influências de

(…) padrões de comportamento rigidamente vitorianos.

Afirma ainda Jefferson Péres, sobre o tempo em que viveu Violeta Branca em Manaus:

Na mente de todos havia clara noção do bem e do mal, do

certo e do errado. Os valores estabelecidos nunca eram

desafiados abertamente. Quando violados, as aparências

deviam ser mantidas a todo custo, sob pena de sanções

sociais, às vezes ostensivas, às vezes dissimuladas, mas

sempre eficientes.

Nessa sociedade viveu a poeta dos ritmos de inquieta alegria, até migrar para o Rio de Janeiro e constituir família, de onde jamais voltou a Manaus, senão para breves viagens a passeio na terceira idade. É de se indagar se o amplo silêncio da poeta não se dera por se ter afastado da terra e

os seus mistérios, sem se ter integrado, em termos literários, com o novo mundo que passara a habitar, eminente mente urbano e comprometido com outros mitos.

Era visceral o seu vínculo com a Amazônia, fato verifica do na concepção e realização do seu livro, como vemos a seguir.

Duas lendas amazônicas marcaram o destino literário de Violeta Branca, uma expressa por coincidência em seu próprio nome na origem da vitória-régia e outra na maravilhosa aparição da Iara. O eu poético em Violeta Branca é, enfim, originado no fluxo do universo lendário da região, com destaque para as lendas da vitória-régia e da Iara.

Sobre a vitória-régia diz a lenda: Há muito tempo, Jaci que é a lua dos índios era uma deusa. Ao aparecer de noite no céu, iluminava o rosto das cunhantãs-moças que eram as mais belas índias da aldeia. Quando Jaci se escondia por detrás da floresta, levava as moças de sua preferência e as transformava em estrelas pregadas no firmamento. Naiá, virgem guerreira da tribo, vivia sonhando, desejosa em ser chamada por Jaci e levada para o outro lado da floresta. Os anciãos da tribo disseram a Naiá que as cunhantãs-moças, levadas por jaci, perdiam o sangue e a carne e se transformavam em luz das estrelas espalhadas no céu. Naiá não ou via ninguém, perambulava pela floresta, ansiosa de se ver levada por Jaci.

Todas as noites ela fazia a mesma coisa e a lua não a escolhia. A jovem índia definhava de tanto andar atrás da lua, não comia nem bebia nada. Adoeceu e não havia pajé que a curasse dessa doença, até que numa bela noite, Naiá à parou para descansar na beira do rio e viu, no espelho d’água, a imagem da sua deusa amada. Era a lua refletida no lago. Lançou-se nas águas cega de sonhos e se afogou. A lua compadecida decidiu premiar a bela jovem índia, transformando-a numa estrela diferente daquelas que brilham no céu. E a cunhatã-moça boiou no lago na forma de uma es trela-d’água chamada vitória-régia, cujas flores brancas se abrem à noite e desde a manhã, no percurso do dia, ganham tonalidades de violeta em contato com o sol.

A outra lenda revela que a lara originou-se da deso bediência de um jovem índio que, pela consciência de sua beleza, se insurgiu contra a orientação da tribo que seu pai comandava. Por isso foi julgado e sentenciado pelo conse lho de anciãos, condenado à pena de afogamento de noite no meio do rio Negro. Mas por estar ali um homem belo, os peixes não deixaram que isso acontecesse e em cardu me protegeram o jovem a flor d’água. A metade do corpo. afundada no rio transformou-se em peixe e a outra metade iluminada de lua foi se transformando em mulher, cheia de feitiço, dotando-a de um canto fascinante que arrebata os pescadores e os leva para o perau dos encantados.

Essas lendas enfim marcaram o destino da jovem poeta amazonense, uma referida em seu próprio nome, vi tória-régia, e a outra em seu destino, a Iara. São as lendas assumidas pela poeta e metaforizadas na unidade dos poemas reunidas em Ritmos de inquieta alegria, ao revelar o novo na forma do verso livre e na relação com a paisagem de sua terra.

Tenho ciência das consequências críticas ao usar aqui a palavra metaforizada, reconhecendo a complexidade da interpretação e definição da metáfora, das teorias mais discutidas pelos cientistas literários desde a origem da poesia. Aqui uso o sentido de metáfora no modo mais simples do meu entendimento. Uso-o como a transposição de uma realidade em outra realidade, da realidade física

em realidade interior e, em seguida, realidade literária. Para ser mais preciso é ver a metáfora como uma assimilação da realidade histórica pelo tempo psicológico e o tempo cíclico do mito.

O poema inicial inaugura o livro no universo e na abertura da identificação entre o eu poético e a visão mí tica desse universo consagrado na lenda, induzida, ainda, pelo canto do uirapuru e a magia da pedra Muiraquită.

Vamos ler integralmente o poema inaugural dos Rit mos, “Minha Lenda”:

À sombra de um igapó escuro e parado,

branca como as areias e as espumas,

e mais triste que um gesto de adeus,

com a forma de uma vitória-régia imensa,

desmaiada de indiferença

eu florescia…

Tupã, uma noite,

olhou-me com os olhos de luar

e se enamorou de mim.

E, numa fala que lembrava a suavidade

do riso das águas, correndo sobre pedras, disse:

“És triste e bela. E por isso

terás a glória suprema,

que é maior que o triunfal poema

que canta o uirapuru em voz tão clara.

Toma a pedra muiraquită,

desce ao fundo dos rios:

vais ser Iara.”

Depois…

Numa hora de encantamento e beleza,

com os cabelos enfeitados de aguapés

e no corpo o fascínio dos mistérios,

prendi a alma ingênua de um marujo incauto.

E o deus lendário da Amazônia,

sentindo o amor palpitar no meu canto

voltou a me falar.

Nesse dia os seus olhos

tinham lampejos de sol

e a voz o ressoar da pororoca:

“- Não mereces mais a glória de ser Iara,

Não ficarás aqui nem um dia sequer.

Vais receber o teu castigo…”

… e transformou-me em mulher.

Aí nasce a poeta e o seu livro e vai à sedução do castigo de ser mulher. Vai marcada pelo fascínio da Iara. Vai revelando os seus sentimentos e a sua emoção ao encontro do mundo e da paisagem da sua terra. Vai à sua inquieta alegria, a conversar com os ventos, com as formas agrestes da paisagem, a sonhar e a cada vez mais aperfeiçoando e definindo o seu ritmo:

O ritmo, que luminosamente

a minha arte embala,

é claro e alegre.

(…)

É simples como a fala de uma colegial,

(…)

O ritmo livre dos meus poemas

é igual às asas

que não se prendem em algemas.

(…)

É o ritmo simplicidade de arte nova –

Arte nova! Esplendor!

que se faz mais vivo e mais forte

dentro da música dos meus poemas

que se abrem em arco-íris de luz

e perfumes de flor…

Vai na exaltação às fibras da sua mocidade feminina:

Sinto-me bem, sinto-me embriagar

de claridade, quando o sol me envolve toda.

Retorna à exaltação do seu ritmo como um brinquedo de criança e diz no número II de “Dois tankas de minha terra”:

Eu quisera ter os braços muito longos,

mais longos que as palmeiras esguias destas zonas,

maiores que as cobras grandes,

maiores, até, que os rios

que retalham o Amazonas…

E assim abraçar e apertar

contra o meu peito,

toda inteira, a minha terra,

e guardar para mim, só para mim,

a poesia das lendas que ela encerra…

No percurso imagístico da vitória-régia, durante o dia, antes que chegue a noite, Violeta revela o sentido de sua iniciação:

Eu não sei quem foi que veio

jogar pedras de alegria

na água dormente da minha quietação….

Eu não sei quem foi…

Mas logo sente tremer os cipós dos seus nervos, numa volúpia aflorada, com arrepios de ondas leves e a vida se tornando uma constante alvorada.

Logo desponta um acontecimento em sua vida e ela confessa o encontro do eu poético numa nova experiência e canta em “Motivo”:

(…)

Por isso, hoje, eu sou uma onda

desfeita, na canção dolente

que só tu, marujo, sabes cantar,

porque trago no sonho a paisagem esquecida

e no sentimento

o mistério do mar…

E vai à aventura com aquele homem do mar. Vai revelando-se consciente das novas formas descobertas em seu corpo, em permanente alegria, inquieta alegria. Celebra com lucidez a mocidade, sem frustrações ou receios, sem medida.

Violeta Branca estava por volta dos 19 anos quando escreveu esse livro. Livro maduro em verdade convertido num autêntico poema sob a ordem de um planejamento prévio, visto a unidade com que foi concebido e escrito, fecundado pelas águas da lenda e alinhado nos suportes da alegria de viver. Por sua forma em verso livre, com a expressão de liberdade da natureza feminina (uma festa inédita), deve ter escandalizado os poetas seus contemporâneos mais velhos, homens todos eles, acomodados aos domínios de expressão e de um comportamento senão ainda romântico, com certeza parnasiano-simbolista, retraído ou dissimulado.

Violeta Branca abria uma nova janela.

E os cardeais das letras amazonenses tiveram a sensibilidade e a visão de assimilá-la, vendo ali, com o seu livro de bela poesia, um momento de renovação das nossas letras. Levaram-na para a Academia, tornando-se ela a primeira mulher a ter assento numa Academia de Letras, desde a criação do modelo de todas elas, a Academia Francesa, em 1635.

Embora por vias transversas, os imortais amazonenses aceitaram em seu convívio a jovem poeta, caldeada pelo

sumo dos frutos silvestres.

Seus versos, como vimos, são simples e sem disfarces, acessíveis a leitor de todos os níveis. Não são cartas enigmáticas destinadas ao enlevo de confrarias presunçosas, mas o retrato de sua presença pessoal na Manaus da época, no Amazonas de sempre, conforme o testemunho de Djalma Batista (1916-1979) que vislumbra em Violeta Branca a configuração de

(…) um espírito dominador de mulher bonita, cuja presença

enche de encantamento a hora elegante do sorvete na lei

teria “Amazonas”,34

Foi bem um exemplo de mulher na poesia amazonense, mas, embora tenha sido bela como confirma Djalma Batista, não foi consagrada como um motivo de inspiração, tampouco uma simples musa dos poetas do seu tempo. Foi sim a presença pioneira da mulher como agente do processo criador.

Após as peripécias líricas experimentadas na viagem com o marujo encantado por sua beleza, encerra a jornada o idílio marinheiro:

Amanhã voltarás para o mar….

enquanto eu ficarei numa tristeza longa, dolorosa,

tu, que trazes na alma altaneira

o orgulho e a boêmia do marinheiro,

partirás sorrindo.

E não terás para mim um pensamento de amor.

Tua alegria será jovial e franca.

Mas sentirás que te acompanha sempre,

sempre

um perfume sutil de violeta branca.

Encerra-se o ciclo do tempo mítico inaugurado com o poema de abertura do livro, a absorção do eu poético na Iara e na sua condenação à espécie de mulher, porém cantar com os feitiços do amor um marujo desavisado. Mas a deusa lua Jaci, tocada pela formosura das cunhantãs-moças, transforma Naiá numa estrela d’água chamada vitória-régia. Tupã, com o mesmo gesto de magia que lhe atribuiu enlevo lendário, enamorado retira-lhe a imagem da Iara e a expulsa do universo da lenda. Transforma-a em mulher. É de indagar: por que o deus amazônico tentou expulsar Iara do mundo da lenda? Antes era dócil e a olhava com “olhos de luar e sorriso de água”, e, em seguida, ao vê-la “com os cabelos enfeitados de aguapés/ e no corpo o fascínio do mistério”, seduzindo um marujo incauto, muda de ideia e passa a olhá-la tendo nos olhos “lampejos de sol?” Estaria enciumado?

E a poeta florescia “com a forma de uma vitória-régia imensa”, quando o deus lendário amazônico “Tupã, numa noite/olhou-me com olhos de luar/ e se enamorou de mim”. A vitória-régia, que à noite nasce branca e a partir do ama nhecer ganha tonalidades violetas durante o dia todo, em contato com o sol, assumiu também a sua forma de mulher, tocado na essência pelo narcisismo feminino:

Vitórias-régias

As minhas mãos são vitórias-régias diminutas,

onde o sol vem dormir

quando o céu se enche de estrelas.

E é por isso que sou branca,

mais branca do que as praias e que a lua…

E tenho esse desejo insaciável de luz,

sempre luz

de tanta luz, que me obrigue a cerrar

os olhos curiosos

que têm os mesmos fulgores das manhãs claras

sobre as águas espelhantes dos igapós

na pátria verde das iaras…

Olhada a questão do ponto de vista da criação lírica, observa-se que é Violeta Branca uma poeta realmente livre de tudo o que é regra e contenção emotiva. O verso terço e requintado não está com ela. A sua técnica está mais próxima à técnica da magia, mais do que a técnica da poesia construída pelo verso e suas contingências formais, essencial, no entanto, em parte, à retenção da beleza, levando em conta ainda o fator do poema em prosa, mais distendido e livre. Com a sua atitude estética, Violeta comprova que a poesia, enfim, está em toda parte e se expressa com todas as formas de emoção, basta que estejamos atentos para percebê-la.

Mas voltemos às lições do velho Thomson, para entender melhor essa figura importante da poesia amazonense. Diz ele que “a poesia se desenvolveu a partir da magia”.

E foi o arcano da magia que entronou a poeta no mundo encantado da lenda, da vitória-régia, da lara, do uirapuru, da Muiraquită e do orgulhoso marujo desavisado, ante o triunfo da poesia de Violeta Branca e o ciúme do deus lendário amazônico Tupã.

Luiz Bacellar

O tempo de Luiz Bacellar é mais estável. O tempo de Violeta Branca tinha ficado para trás. As novas linhas da poesia estavam consagradas entre os leitores e os estudiosos dos Cursos de Letras. Predomina no texto de Bacellar, sem que se lhe acusassem de passadista, o verso medido característico da geração de 45 na poesia brasileira. São raros os seus poemas em verso livre, alguns vindos à luz no grupo dos inéditos em seus poemas reunidos, mas a poesia praticada por ele traz a mensagem do original, numa atitude projetada nos rumos de um novo tempo. O reconheci mento do seu trabalho veio, ainda, da circunstância de ser ele o representante mais expressivo do Clube da Madrugada, referido tantas vezes neste livro, fenômeno sucedido em Manaus a partir dos anos 50 do século passado, resultante da inquietação por algo novo que viesse modificar a paisagem intelectual da cidade na época.

Os motivos da Amazônia em sua poética surgem em Frauta de barro, na parte em que ele se refere à paisagem e à vida dos bairros de Manaus e, mais assiduamente, em Sol de feira. Bacellar celebra as frutas e a natureza amazônica, a poesia dos ares, da luz, dos perfumes, dos sabores. Em estilo terso e rigoroso ele se irmana a esses elementos, aproximando-os e jamais abandonando as entidades da mitologia grega.

É mais um exemplo da poesia contagiada por ele mentos culturais submetidos a um processo sincrético de herança primitiva indígena com a greco-romana, forma de autêntico panteísmo tão praticada no Amazonas, tão presente desde Tenreiro Aranha, definindo a poesia praticada no Amazonas desde o seu início.

Dedico-me em um livro exclusivo sobre o poeta Luiz Bacellar, onde espero examinar a sua poética e a sua vida mais atentamente.

Em verdade, nos poetas aqui examinados, o tempo foi o mesmo, todos eles marcados pelo século XX, com breves sucessões de um para outro. Tenreiro Aranha é o mais distante, com raízes no século XVIII e assinalado pelo neoclassicismo. No século XIX deram-se as grandes revoluções no mundo da estética, do romantismo ao surrealismo e de tantas outras correntes assumidas por escritores, poetas e artistas de todas as formas de linguagem e gêneros até à idade contemporânea. O tempo de cada um foi definido por sua posição perante o mundo e o modo de como esses poetas viram as coisas e expressaram a sua emoção.

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25 Jung (1875-1951), psiquiatra e psicoterapeuta formulador da psicologia analítica, que definiu o inconsciente coletivo como um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. A pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, porém, herda uma predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam.

26 CARPEAUX, Otto Maria (1900-1978). In: História da literatura ocidental. Primeira edição em 8 volumes. Volume 1, p. 247 a 256 Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1959.

28 Maia, Álvaro. Banco de canoa. Manaus: Editora Sergio Cardoso, 1963.

29 Movimento agitado nas primeiras décadas do século passado na França, com o objetivo de valorizar a expressão artística das etnias africanas, depois retomado, no alvorecer da atualidade, pelo poeta e estadista senegalês Léopold Sédar Senghor (1906-2001), que é também poeta e político vitorioso, considerado um dos maiores estadistas africanos atuais, elevado à função de primeiro presidente do seu país, o Senegal, e guindado por sua atividade literária a uma cadeira na Academia Francesa.

30 Maia, Álvaro, Buzina dos paranás. 2. ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas e Editora da Universidade Federal do Amazonas, 1997.

31 Dados recolhidos do Blog do Coronel Roberto Mendonça: http://catadordepapeis.blogspot.com

32 Painéis [poesia). Manaus: Edição do autor, 1952.

33 Branca, Violeta. Ritmos de inquieta alegria. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 1997.

34 Batista Djalma Amazonia, cultura e sociedade. 3. ed. Manaus: Editora Valer, 2006, p. 56.

Quinto Capítulo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do auto

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