Manaus, 18 de setembro de 2024

As Náiades e mãe d’água (VIII)

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Depois da madrugada

Abriram-se as janelas da moderna poesia no Amazonas. O Movimento Madrugada assumiu o papel de defensor de um novo modo de ver e de dizer como se vê a vida por meio da linguagem poética. Forma que se converteu na novidade de expressão das emoções e de emissão do pensamento. Escrevendo ensaios, prosa de ficção e compondo poemas, os madrugadores marcaram espaço e assumiram posições na Academia Amazonense de Letras, instituição que tinha sido o alvo preferencial dos jovens como reduto de resistência à modernidade.

De seu lado, os respeitáveis acadêmicos viam nos madrugadores uma horda de boêmios irresponsáveis. Ambiente que só poderia resultar numa atmosfera de in findáveis polêmicas literárias, ainda para responder ao hábito corrente na imprensa de então, no debate de ideias em Manaus. Feitas as pazes, enfim, estabeleceu-se o bom diálogo entre as duas tendências. Por meio de diversos instrumentos de comunicação, suplementos literários, programas de rádio e salões de arte, o movimento atingiu as gerações imediatamente seguintes. Manteve, durante dez anos, uma página literária em O jornal, de Manaus, no período de 1961-1972.

A linha editorial desse veículo visava divulgar os trabalhos dos madrugadores e o intercâmbio com outros centros culturais do país. A página mantinha também uma seção destinada a estimular a criação intelectual nessa linha. Funcionava com a revelação de textos de poetas e escrito res novos que lhe chegavam pelos correios. Muitos poetas de origem posterior aos animadores do Movimento Madrugada, e por eles absorvidos, vieram à luz por meio desse. instrumento de divulgação.

Max Carphentier (1945) faz parte desse grupo.

Max Carphentier

Max trabalha uma poesia de inspiração teologal e exaltação a elementos do mundo exterior, duas tendências observadas no canto IV do seu poema O sermão da selva. Lançado em versos livres, este canto do poema envolve uma exortação às bem-aventuranças proclamadas pelo Cristo no Sermão da montanha, agora sobre a natureza amazônica.

O poeta distribui as suas bem-aventuranças aos que protegem as árvores e a paz das cidades. A todos os que “antes da revelação eletrônica” já conversavam com as plantas e com elas conviviam, na luz da emoção, na comunidade da selva.

O poeta identifica-se com a biodiversidade regional, como está nos versos “Do uirapuru”. Conversa com a ave símbolo das florestas tropicais, irmanando-se, ao acordar pela manhã de todos os dias, ao destino desse pássaro mágico da floresta amazônica. O poeta e o uirapuru, ambos empenhados em dar voz às cinzas provocadas pela destruição, à sombra das árvores onde vive essa ave misteriosa, “sonham as orquídeas” e se postam onde se estremecem

as águas no igapó dos olhos.

Os corpos do poeta e do uirapuru, ficam presos, “sob folhas mortas”. Enfim, o canto dos dois, do poeta e do uirapuru, absorve o dom de reverdecer as folhas e reanimar a vida.

Embora tenha praticado a poesia como expressão de suas crenças religiosas, o poeta não se abstém de olhar, enlevado, a paisagem amazonense.

Por esse caminho foram chegando os mais novos.

Jacob Ohana

Jacob Ohana (1942-2008) veio do Pará, chegou a Manaus com um ano de idade e nela permaneceu até a madureza. Nasceu para as letras na página literária do Clube da Madrugada. Seu poema traz as marcas dessa geração, com uma autêntica vivência amazonense, já a revelar forte personalidade.

No poema “Amazona”, celebra o poeta a figura da mulher guerreira que, enfim, emprestou o nome ao Amazonas. Diz logo de entrada:

Teu viço é o mito, o arco, a guerra, a flecha.

Diz ele que as pedras do rio regeneram essa mulher no “cheiro do cardume”, vindo ao seu encontro. Relata sobre os elementos que a formam e alimentam, no mito e na verdade poética a habitar

a virgindade do seu pólen.

Ainda bem jovem Ohana conquistou maturidade artística e uma linguagem poética surpreendente.

Alcides Werk

Em seguida chega Alcides Werk (1934-2003), vem de Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, com uns sonetos bem elaborados, mas ainda escritos com a candência e o estilo tardio do parnasiano-simbolismo. Vez por outra publicava nos jornais de Manaus os seus poemas. Em contato com os madrugadores adotou o verso livre, converteu-se à realidade de sua vida na Amazônia e, desde aí, dedicou-se ao trabalho de construção de poemas envolvidos pela paisagem e a visão de mundo amazonense. Toda a sua obra traz esse timbre. Toda uma vivência dos lugares por onde andou nas grandes águas. Identificou-se com o homem, os rios, a floresta e o trabalho.

No poema “Roçado”, fala do tempo de plantar, preparar a terra e esperar pelos bons frutos. Examina o calendário das chuvas. Aspira pela boa safra. Cuida de tudo com muita prudência,

onde não queimar bem farei coivara,

para, em seguida lançar as sementes da maniva.

As sementes da maniva, da mandioca, são pequenas toras cortadas dos caules dessa planta que produz um dos acompanhamentos mais preferidos na dieta amazonense, a farinha d’água, também chamada amarela, a farinha branca e a farinha de tapioca. Esse poema possui um vocabulário rico e corrente nos falares do homem da beira do rio, nas várzeas. As imbaúbas e muricizeiros e os costumes como o da esperança das boas chuvas de finados, 2 de novembro, proliferam na expressão desse poeta notável.

Aldisio Filgueiras

Veio por amplos caminhos Aldisio Filgueiras (1947), fascinado pela vida urbana, dos habitantes da cidade, mas sem deixar de exercer a crítica por vezes mordaz dos acontecimentos. A cidade não é uma cidade qualquer, é Manaus, plantada no começo do rio Amazonas, no encontro das águas dos rios Negro e Solimões, e a expansão sem ordem dos seus bairros feitos de invasões e saques. Seu conheci mento da cidade origina-se do motivo de nela ter nascido e vivido, com as emoções de sua profissão de jornalista e homem de teatro.

Um dia ele ouviu “O grito do rio”, chamando-o a assumir a sua condição de manauara, com

a mistura de absurdas origens.

E aí se dá, enfim, o milagre de sua identidade, porque a cidade é feita do “grito do rio”, com as águas a subir pelos subúrbios e a amortizar o preço do seu destino.

A realidade amazonense é vista sob o andamento de ritmos imprevisíveis, as chuvas,

as ridículas palafitas,

que se expandem da noite pro dia

como grafites do asfalto.

O ofício irritado do poeta não o impede de escolher e realizar a beleza só possível num comportamento de arte. A realidade sem arte, qualquer que seja essa realidade, ou um amplo jardim fluvial de vitórias-régias, ou o desenho das “ridículas palafitas”, possuem os mesmos altos valores quando transpostos em palavras, no mundo da poesia.

A vida amazonense, a cabocla, a índia e a floresta despida em mato ou mata, floresce no ritmo do poeta.

No longo poema “o rio a rua o rio a rua o rio”, vai a crítica aguda, mas lavrada em belos versos com a emoção de quem vê a vida sob as estrelas da esperança, de quem de todo jamais deixou de acreditar no homem.

É um poeta senhor do seu ofício, dedicado à vida urbana de Manaus, mas sem se abstrair da influência do rio sobre a cidade.

Anibal Beça

Outro poeta da cidade é Anibal Beça (1946-2009). Diz ele em um dos seus poemas:

Toda cidade se habita
como lugar de viver.
Só Manaus é diferente
pois em vez de habitá-la
é ela quem me habita.

Mas o poeta invadiu as várzeas e descobriu uma nova poesia, a poesia de um menino que acaba de nascer. Num longo poema, intitulado Filhos da várzea, conta o episódio da vida desse menino e suas vivências, pois

Ele virá da luz e das águas,
das verdolengas águas de várzea.

É como se fosse um canto de Natal e o Cristo estivesse andando pela Amazônia.

E assim amanhecem novos dias.

Maria José Hosannah

Amanhecem com a força lírica de Maria José Hosannah (1943). Seu surgimento em 1978 com Cantaria verde, de tiragem reservada, único e inusitado livro, confirma a presença de uma poesia de raízes. As atividades desde os bancos da escola primária em Manaus, não a impediram de que lançasse um olhar para a paisagem e se comovesse com o que viu. De formação católica, fato revelado tantas vezes nos seus versos, a religiosidade lhe fez voltar os olhos de modo mais aguçado e perceber a crua realidade da vida nas barrancas do Amazonas.

Numa visão nova e mais verdadeira dessa realidade, Maria José isenta-se de se referir ao lugar comum daquela moça pobre do interior que se prostitui para vencer na cidade. Em “Nas barrancas I”, celebra a mulher e vê, na barra de sua saia, bordados de “barro e madeira”. A poeta se solidariza com a mulher vestida de branco, descalça, que veio da beira do rio, integrou-se à cidade e se adornou de brincos.

Ela traz no sangue o “barro que pisava”, berço onde nasceu. A mulher veio inteira das barrancas e permanece integra. Integra-se enfim sem deixar de ser aquela que veio das barrancas, realidade que não se destrói. Não se destrói no destino da irmã da beira do rio, que ela chama de maninha, mana pequena, bem pequenininha.

Não se podem relegar ao segundo plano as qualidades formais dos poemas de Maria José. Versos livres e curtos recebem tratamento técnico e estético bem cuidado, de quem conhece o seu ofício, numa visão austera.

Roberto Evangelista

Roberto Evangelista (1946-2019) aparece com as suas miniaturas. Artista plástico, ele adota, em suas instalações, parte substancial de elementos amazonenses e vê a paisagem com a argúcia do haicaista. Toda a sua poética se manifesta nessa complexa forma de expressão lírica, japonesa em sua origem, ultimamente muito praticada em Manaus.

Artemis Veiga

Em contraste com Artemis Veiga (1946-2015), bem na ironia de encarar a vida, mas consciente na prática amazonense de poesia. Professora dos cursos de letras da Universidade Federal do Amazonas, coisa que não esquece de referir em seus versos.

Em “Carta marinha aberta ao mestre Proença, capitão de mil roteiros”, a poeta expede uma série de recomendações e, lá pelas tantas, diz aos destinatários da mensagem que a boiuna, uma figura popular do imaginário amazônico, a famosa cobra-grande, é

muito nossa conhecida
com a cumplicidade de uma sórdida lua em cio.

Pede, ainda, que também comentem que ela avistou um certo freudiano escondido por de traz de um bigode nazista.

Flávio de Souza

Flávio de Souza celebra, em “Antemanha” um amanhecer sobre o rio Amazonas. Acolhe no poema a palavra poronga, uma lamparina ou candeia alimentada de quero sene, levada presa no alto da cabeça, usada em atividades noturnas, ou na coleta do leite de seringa, ou na pescaria nas águas dos igapós.

Zemaria Pinto

Zemaria Pinto (1957) desenha a síntese da paisagem com a miniatura do haicai, na celebração da natureza que é o tema clássico dessa forma de poesia japonesa. A ave celebrada é uma das mais populares do Amazonas. Está em toda parte, no mínimo voando nas alturas como pontos negros perto das nuvens, para purificar-se dos alimentos estragados de que se nutre:

urubus desenham
no teto cinza da tarde
lentas espirais

O primeiro sinal visível no Amazonas quando vem chuva, é dado pelos urubus que flecham na descida das alturas. Depois chegam outros sinais:

fim de tarde,
trovões ecoam ao longe
– prenúncio de temporal.

Na “Canção de amor de J. Sebastião”, o poeta que um dia declarou:

O meu poema não guarda
relação com a realidade

observa que

O poeta sussurra alguma coisa sobre
as moças assassinadas/da praia da Ponta Negra
e fala de espectros e histórias de amor
e eu mal consigo perceber o movimento de sua língua de
[chumbo.

E fala no mesmo poema:

Ah, Manaus, Manaus,
quanta poesia desperdiçada
nas flores que o rio insiste em devolver à areia
num invólucro de espuma.

Nesse texto o poeta fala em “maninha”, no sentido de irmã pequena, bem pequenininha e do açaí, frutas produzidas em cachos de esguias palmeiras, de que se extrai o sumo que os amazonenses chamam de vinho, vinho de açaí.

*Continua na próxima semana.

(Capítulo Sétimo do livro: As Náiades e a mãe-d’água, do autor).

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