Manaus, 21 de novembro de 2024

As Pedras do Rosário (V)

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Catequese & Pajelança

Na dilatação do império português, a praxe era convencer os silvícolas a se tornarem cristãos. A ordem de Lisboa era: “Levar a luz da nossa Santa Fé aos sertões de muita gentilidade” espalhada por toda a América Portuguesa. Com a catequização os índios teriam que abandonar as antigas crenças em suas divindades e optar pelo Deus dos colonizadores. Seriam transformados em vassalos úteis e cristãos. Na Amazônia essa ‘clientela’ constituía-se de milhões de indivíduos espalhados por todas as calhas de rios.

O domínio da língua era o meio mais direto para a Catequese. Os europeus, ao chegarem ao Novo Mundo, depararam-se com uma enorme população falando muitas línguas. Desde logo, a comunicação entre padres e índios passaria a ser feita através do Nheengatu, ‘a língua boa’ ou brasílica, que se originou das vertentes civilizatórias da Amazônia, a partir da evolução da Língua Geral (tupi colonial ou tupinambá), sistematizada pelos jesuítas e falada a princípio no Maranhão, no século XVI, com empréstimos vocabulares da língua portuguesa. Aos poucos, o uso da língua brasílica intensificou-se e generalizou-se de tal forma que passou a ser falada por quase toda a população integrante do sistema colonial brasileiro-amazônico.

Comumente, os padres em missão de catequese, quando não versados em ‘língua boa’, faziam-se acompanhar de um irmão tradutor.

Havia também os ‘línguas’ – apelido dos índios treinados como intérpretes para dialogar com os missionários convertendo o significado da fala do idioma português para o Nheengatu, e vice-versa. Um dos primeiros tratados sistemáticos sobre a Língua Geral, “A arte da língua brasílica”, foi escrito pelo jesuíta português Luís Figueira, a maior autoridade da sua época nos estudos da matéria.

Na Amazônia, o diálogo entre padres e índios mediante o uso da Língua Geral antecipou à chegada no rio Tapajós do padre João Felipe Bettendorff, em junho de 1661. Pouco antes, os missionários Tomé Ribeiro e Gaspar Misch (1626-1697) alcançaram este rio e, embora por ali estivessem de passagem, batizaram vários índios. Em seguida, para desincumbir-se da tarefa de instalar a missão de Tapajós, Bettendorff chegou acompanhado do irmão coadjutor Sebastião Teixeira que, além de auxiliá-lo nas tarefas corriqueiras, deveria servir de tradutor e intérprete facilitando a comunicação com os grupos nativos.

A Companhia de Jesus recomendava que seus elementos permanecessem sempre acompanhados por outro missionário que os seguisse, auxiliasse e servisse de apoio nas dificuldades materiais ou espirituais. É significativo que a indicação do acompanhante do padre Bettendorff recaísse sobre o alferes João Corrêa, um experiente tradutor e intérprete da Língua Geral. Como bem-informado pela antropóloga gaúcha Dóris Cristina Cypriano,

“[…] Após o retorno à aldeia dos Tapajós, Bettendorff, auxiliado por Corrêa, tratou primeiramente de elaborar catecismos que permitissem a evangelização na língua nativa. Essa prioridade atribuída pelos jesuítas à preparação dos catecismos e gramáticas, conduz à reflexão não apenas sobre a facilidade gerada por uma comunicação fluente. Os jesuítas que missionavam junto aos indígenas reconheciam que evangelização somente seria possível através das línguas nativas.

A catequização dos índios foi uma tarefa que se mostrou extremamente complexa. Para os jesuítas, extinguir costumes como a nudez, a poligamia, a antropofagia, entre outros, seria de difícil execução, pois acreditavam que os silvícolas eram governados pelo demônio. No decorrer do processo houve uma série de resistências por parte dos nativos, pois relutavam em assimilar os gestos sociais dos portugueses como o trabalho braçal, adesão à doutrina católica, mudanças de costumes, situações alheias ao seu caráter, o que acabou forçando os religiosos a se adequarem àquela situação.

A respeito, comenta o historiador Ronaldo Vainfas:

“[…] No contexto da Catequese, não resta dúvida de que os nativos assimilaram mensagens e símbolos religiosos cristãos, sobretudo por meio das imagens, mas é também certo que os jesuítas foram forçados a moldar sua doutrina e sacramentos conforme as tradições tupis. […] No decorrer da catequização, houve uma série de resistências por parte dos índios, pois era difícil assimilar os diversos gestos sociais portugueses, como o trabalho braçal, adesão à doutrina católica, mudanças de costumes, um verdadeiro aportuguesamento forçado”.

As missões jesuíticas, também chamadas de reduções, eram grandes aldeamentos indígenas organizados pelos missionários europeus, e tiveram seu período áureo nos séculos XVII e XVIII. Eram organizadas com o objetivo de reunir indígenas e educá-los de acordo com os princípios da cultura cristã ocidental.

Reportando à lição da professora gaúcha Sandra Schmitt Soster (1981), geralmente esses aldeamentos integravam um conjunto formado pela igreja, tendo de um lado o Cemitério, do outro a Casa dos Padres e um segundo pátio com oficinas e depósitos. Defronte a esse conjunto ficava a praça principal, estruturada como elemento ordenador da povoação. Nas proximidades, localizavam-se as casas dos caciques. A rua principal dava acesso à igreja, que era sempre o prédio mais importante, e na praça eram realizadas procissões, os desfiles militares, as encenações religiosas e os jogos de bola. Na periferia da povoação ficavam as casas (malocas) dos índios e outros equipamentos como roçados, currais, a horta, o pomar, etc.

A vida nas missões era marcada pela religião e pelo trabalho. Os missionários ensinavam o Catecismo, rezavam missa, batizavam, casavam os indígenas, ouviam confissões, visitavam os doentes, realizavam procissões. Pela manhã havia missa na igreja onde os índios eram obrigados a participar, e depois iam para os trabalhos comunitários: caça, pesca, plantações, produção de farinha. Ao meio-dia era servido o almoço e, após, os adultos voltavam para o trabalho e as crianças iam às escolas e também aprendiam cantos e a tocar certos instrumentos. À noite, os adultos voltavam à igreja para fazer suas orações.

Para os jesuítas, o batismo significava a transformação dos costumes, a entrada para a sociedade portuguesa, mesmo esta ideia não sendo tão aceita pelos índios. De início os batizados eram feitos de modo individual ou em grupos. Com o decorrer do tempo e conforme o aldeamento – já que muitas tribos eram nômades – começaram a se batizar em massa, chegando às vezes a centenas de índios juntos. Além de inserido em uma nova religião, a pessoa batizada também ganhava um novo nome (em português), deixando para trás o anterior, indígena, incluindo-se assim os homens da selva em uma ‘nova sociedade’.

No interior das missões os indígenas tiveram papel fundamental e não apenas cumpriam o que os padres desejavam. Eles aprendiam diferente e do seu próprio jeito. Não abandonaram seus ritos e religiões, mas muitas vezes ‘misturavam’ o que assimilavam. Muitos fugiam preferindo viver fora, sem o controle dos missionários, permanecer nas aldeias mais isoladas.

Outros se revoltaram, recusaram a vida comunitária chegando até a matar sacerdotes. Uma ocorrência do tipo aconteceu no rio Urubu, no início do século XVIII, narrada pelo padre José Monteiro de Noronha (1723-1794), em que uma aldeia dos religiosos mercedários “se extinguiu fugindo os índios seus habitantes depois de tirarem a vida ao seu missionário frei João das Neves (c.1637-1714)”.

No período colonial, os padres que acompanhavam as expedições régias não raro pagavam com o sacrifício da própria vida o interesse espiritual. A penetração dos portugueses, segundo o grande historiador Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993):

“[…] roubou vidas preciosas. Nem sempre o silvícola aceitava o domínio que se impunha. Os próprios catequistas tiveram a lamentar perdas consideráveis que punham em perigo, pelo exemplo, toda a obra civilizadora em construção, obrigando o governo a movimentar forças para castigar os rebeldes e manter incólumes os direitos que Portugal se assistia sobre a terra e a gente amazônicas”.

Os jesuítas utilizavam as epidemias como estratégia religiosa. De acordo com o historiador Jean Baptista,

“[…] Os nativos interpretavam as doenças como a manifestação dos deuses decorrentes da insatisfação do comportamento humano. Mas como os índios não possuíam defesas biológicas para combater essas doenças contraídas do homem branco, os padres faziam por aproveitar para usar este mal como forma de mostrar a fragilidade dos deuses pagãos e, desse modo, incutir na cultura religiosa indígena a ideia de um único Deus, o Deus do Catolicismo. Diziam: ‘Os deuses ameríndios são mais fracos que o Deus verdadeiro’”.

O que muito se viu durante a colonização, em termos de religiosidade, foi uma certa disputa pela liderança espiritual dos nativos. Os pajés, segundo os índios, eram os representantes escolhidos pelos deuses para distribuir a profecia, sendo uma figura de extrema importância dentro das tribos, responsáveis por passar adiante a cultura, as tradições e a história de seu povo. Havia dois tipos de pajé: o catu, tido como bom; e o caraíba (ou aiba), considerado mau. Na expressão do padre João Daniel (1722-1776), “[…] O pajé catu não é tão ruim nem tão embusteiro, como o pajé aiba; é o mesmo que um alveitar, médico das dúzias […], curam estes as doenças, ou as espioram e agravam com seus remédios naturais ou fingidos”.

Os pajés exerciam também a função de curandeiros, pois conheciam muito bem o poder de cura de ervas e plantas. Encontraram nos jesuítas fortes oponentes no que diz respeito à soberania religiosa. Era proibido ter pajés nas missões e não era permitido aos indígenas irem à busca deles. Essa ordem dos padres era obedecida? Obviamente que não, pois para os nativos era algo normal pedir ajuda aos pajés e aos padres. Ambos eram bem vistos pelos nativos e não viam problema em rezar o Terço, ir à missa, fazer as orações e depois pedir bênçãos aos pajés. Com o tempo, os xamãs incorporaram elementos do Catolicismo em suas religiosidades, por exemplo, gestos, orações, e aconteceram casos em que pajés faziam “missas” semelhantes aos dos jesuítas, pois acreditavam que isso ajudava a combater o mal. Em razão disso, os missionários ficavam aborrecidos.

Os jesuítas semeavam a mística de que somente o Deus Católico seria capaz de curar e salvar almas. Procuravam diminuir o poder xamântico, demonizando os pajés e atribuindo-lhes muitas vezes as epidemias decorrentes de doenças trazidas pelos brancos europeus, aproveitando do seu pouco saber sobre essas doenças para delegar lhes a culpa e ao mesmo tempo mostrar que esses ‘feiticeiros’ não tinham poder algum para ser guia espiritual dos índios, pois os próprios eram passivos de contaminação.

Ainda, segundo Jean Baptista,

“[…] Os pajés foram descritos na documentação católica da época como diabólicos opositores do projeto missional. Não por acaso, os religiosos diziam que a mata habitada por xamãs era incubadora das epidemias”.

Como afirmei acima, a catequização foi uma tarefa muito difícil. Desde a passagem de Pedro Teixeira pelo Amazonas, em 1637-1639, os colonizadores corroboraram a ideia de que o grande rio possuía grandes proporções de terras a serem conquistadas e, principalmente, margens habitadas por um número enorme de grupos indígenas que, para uns poderia significar escravos e mão-de-obra e, para outros, almas a evangelizar.

Em 1661 o jesuíta João Felipe Bettendorff fundou a missão dos Tapajós (atual cidade de Santarém/PA) e, ao relatar o acontecido, afirmou que, para sua recepção, os nativos haviam preparado uma casa feita de palha com apenas dois cômodos tendo à ilharga “uma choupanazinha para dizer missa”, além de oferecerem presentes como frutas e tartarugas.

A Crônica de Bettendorff é recheada de citações a rituais e práticas religiosas dos índios Tapajós. A mais frequente diz respeito ao ‘Terreiro do Diabo’, chamado pelos brancos de Mofana. Seria um espaço reservado, localizado próximo da aldeia, para onde as mulheres levavam igaçabas com bebidas que seriam ingeridas durante as cerimônias. Segundo o padre alemão, a condução dos rituais era feita pelos xamãs e, aparentemente, apenas os homens participavam ativamente, pois as mulheres, apesar de terem produzido a bebida, iam até este sítio somente para permanecerem “de cócoras com as mãos postas diante dos olhos para não ver”.

Não somente no rio Tapajós estas tão combatidas ‘festas’ permaneceram sendo feitas dentro dos aldeamentos jesuíticos. Se repetiram nos rios Madeira, Negro, Urubu e vários outros. O padre João Daniel chegou a comentar que “em várias aldeias e missões não só se conservam as mesmas festas e beberronias, mas também rematam ordinariamente nos mesmos efeitos e desgraças”. As diversas tentativas para excluir estes rituais revelaram-se ineficazes. Não apenas os grupos indígenas, manipulados pelos pajés, mantiveram a realização deste costume como, também, transformaram as solenidades do calendário católico, como Natal, Páscoa, Festa da Ressurreição e outros dias santos, em festas resignificadas e articuladas com valores da pajelança.

Ainda no rio Madeira, João Bettendorff contatou com os Tupinambarana, na povoação do mesmo nome (que remonta às origens de Parintins), e também comprovou quanto eram influentes os pajés. Conforme referido por Dóris Cristina Cypriano, uma das populações privilegiadas por Bettendorff em sua “Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão” foi a nação dos Iruri, a principal tribo da missão que deu origem à Itacoatiara.

Ainda segundo Dóris Cypriano, repetindo Bettendorff,

“[…] Os Iruri estavam assentados no Madeira, em um local que ‘muitas jornadas para cima se reparte’, fazendo uma ilha grande em que moram os Iruri, os Maués e muitas outras nações. Nos funerais de seus mortos costumavam enterrá-los dentro de ‘uns paus furados e aí também enterram viva a sua manceba mais querida e o seu mais mimoso rapaz’, enquanto que para o restante da população o sepultamento consistia em envolver os corpos em caixões ou árvores ocas e enterrá-los dentro de suas casas’”.

Obviamente, este costume confrontava-se com a doutrina católica, assim como as festas anuais que os Iruri organizavam para ofertar, conforme a percepção dos jesuítas como Bettendorff, bebidas e alimentos aos demônios que os molestavam. Geralmente esses tipos de cerimônia eles realizavam em lugares afastados, no centro da mata: “iam beber e fazer suas danças que chamam poracés no Terreiro do Diabo”.

Ainda conforme a referida escritora gaúcha, no caso dos Tapajós, Tupinambarana e Iruri, “[…] os registros informam que havia somente um modesto contingente de jesuítas disponível para atender a área extensa e cumprir o trabalho nas missões, fazendas e colégios da Ordem dos jesuítas. […] Durante o processo de evangelização, estas três sociedades nativas não se furtaram do contato com os missionários, militares e civis. Muito antes pelo contrário, […] estes indígenas foram agentes ativos diante das crescentes demandas da sociedade colonial. Permaneceram nos aldeamentos jesuíticos, foram descritos como ‘cristãos fiéis’ e, ainda assim, manifestaram a capacidade de englobar, em seus esquemas culturais, os novos elementos que emergiam, traduzindo-os, adaptando-os e resignificando-os a partir de sua própria compreensão do mundo, dado que imprime às transformações uma evidente continuidade cultural’”.

O monopólio religioso sobre a Amazônia por meio das ordens religiosas, principalmente com os jesuítas, só terá fim com a administração pombalina de 1750. Os indígenas deveriam estar vinculados diretamente ao poder régio, sem precisar da intermediação das ordens religiosas. Nesse momento observa-se uma decadência da atividade missionária, sobretudo na segunda metade do século XVIII.

A partir da Proclamação da República, em 1889, visto que o número de paróquias havia crescido e que elas estavam espalhadas por todo o interior, as ‘desobrigas’ praticamente cessaram. As populações interioranas – índios, africanos e mestiços ficaram praticamente um século sem acompanhamento pastoral. Toda essa descontinuidade será crucial para o aparecimento de várias vivências de fé.

Por vocação compulsória, a pajelança indígena moldou a força imanente da pajelança cabocla. Esta, vai além do âmbito religioso e tem correlação com as medicinas populares, levando em conta a encantaria amazônica, que permeia o imaginário popular. No Baixo Amazonas, segundo definição de um grupo de trabalho da UFAM liderado pelo professor doutor Renan Rodrigues, desde algum tempo, há procedimentos de cura e adivinhação em comunidades não indígenas que encontram fundamentos em antigos pajés. Na região, a crença do pajé se assemelha em muitos aspectos à fé cabocla no terapeuta popular, num sincretismo que intermedeia confiança. Seres aquáticos e criaturas mitológicas, mescla de pessoa e bicho alimentam simbolismos.

* Quinto Capítulo do livro As Pedras do Rosario do Autor.

Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/

 

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