Manaus, 16 de setembro de 2024

As Pedras do Rosário (VI)

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O Santo Rosário sempre se revelou forte no mundo inteiro, é tradicional na Amazônia e sobressai muito no Município de Itacoatiara. É uma oração mariana muito recomendada pela Igreja Católica ao longo dos séculos. Segundo a tradição, o Rosário surgiu no ano 800 à sombra dos mosteiros e conventos, como ‘Saltério’ dos leigos, e foi desenvolvido em 1214 pelo frade Domingos de Gusmão (1170-1221). Sua prática foi-se codificando e regulamentando, aos poucos, chegando à sua forma atual no século XVI sob o Papa Pio V (1504-1572).

O referido pontífice atribuiu a eficácia dessa prece à vitória naval de Lepanto que, aos 7 de outubro de 1571, salvou de grande perigo a Cristandade ocidental contra a invasão dos turcos muçulmanos, que pretendiam dominar a Europa e acabar com o Cristianismo. Durante a batalha de Lepanto os fiéis recitavam o Rosário enquanto seguravam seus terços. Por isso, Pio V em 1572 instituiu a Festa de Santa Maria da Vitória, em 7 de outubro. A devoção à Virgem Maria foi mais e mais favorecida pelos papas seguintes.

Em 1573, o Papa Gregório XIII (1502-1585) substituiu esta solene comemoração para Festa de Nossa Senhora do Rosário, a ser celebrada no primeiro domingo de outubro. Em 1716, o Papa Clemente XI (1649-1721) inscreveu a festa do Santíssimo Rosário estendendo-a para a Igreja em todo o mundo, mas a celebração ocorria em datas diferentes, conforme os costumes locais. Em 1913, o Papa Pio X (18351914) confirmou a festividade em 7 de outubro e estendeu-a para toda a humanidade. Em 1960, com a reforma do calendário litúrgico, o Papa João XXIII (1881-1963), proclamou o novo título mariano Festa de Nossa Senhora do Rosário, e dedicou o mês de outubro ao Santo Rosário.

O termo ‘Rosário’ quer dizer um tanto de rosas, ou um buquê de rosas, que se oferece à Mãe de Deus, com carinho e esperança. Originalmente, o Rosário dividia-se em três partes, com cinquenta contas cada, e, que, por corresponderem à terça parte, eram chamados de Terço. Cada Terço compreendia um conjunto especial de três Mistérios: Gozosos, Dolorosos e Gloriosos. O Papa João Paulo II (1920-2005), por meio da Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, de 16 de outubro de 2002, criou uma nova série de Mistérios, os chamados Mistérios Luminosos, alterando o formato do Rosário que passou a contar com 200 Ave-Marias.

De acordo com experientes mariólogos, remotamente o Santo Rosário nasceu no Mistério da Anunciação, com a saudação do arcanjo São Gabriel à Virgem de Nazaré: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1, 28). A oração tem sua continuidade nas palavras pronunciadas por Santa Isabel, sob inspiração do Espírito Santo: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,42).

A segunda parte da Ave-Maria foi definida no Concílio de Éfeso, na Ásia Menor, em 431 d.C, pelo Papa Celestino I, o qual promulgou o dogma da Maternidade Divina, ou seja, definiu como doutrina da Igreja Católica que “a Virgem Santíssima é verdadeiramente Mãe de Deus, por ser Mãe de Jesus, que é Deus”. Em memória desta solene definição, o Concílio juntou à Saudação Angélica estas palavras simples, mas muito expressivas: “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”.

O Vaticano II (1962-1965) foi seguramente um dos momentos mais marcantes na história do Cristianismo no segundo milênio e é o ponto de partida para vivermos a fé em Cristo no terceiro milênio. Foi o Concílio que mais espaço dedicou a Nossa Senhora e também aos exercícios de piedade para a Mãe da Igreja. Recomendou a todos os filhos da Igreja o fomento ao culto da Santíssima Virgem, sobretudo o culto litúrgico, que tivessem em grande estima as práticas e exercícios de piedade para com Ela, aprovados no decorrer dos séculos pelo magistério, e que mantivessem fielmente tudo aquilo que no passado foi decretado acerca do culto das imagens de Cristo, da Virgem e dos Santos”.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), define o Santo Rosário como uma devoção de cunho eminentemente popular, já que a recitação do Rosário é, na verdade, uma catequese chamada de Evangelho dos Pobres, pois contemplam-se os principais mistérios da fé que estão nas Escrituras e, normalmente, as pessoas sabem de cor já que no passado o analfabetismo impunha restrições aos textos escritos.

O Papa Francisco (1936), em cada uma de suas homilias sobre Nossa Senhora, nos garante que Maria vela por todos e cada um de nós, como mãe e com uma grande ternura, misericórdia e amor, e sempre nos incentiva a sentir seu olhar amável.

O Pontífice argentino, durante a Audiência Geral de 7 de outubro de 1920, nas tradicionais saudações que dirige aos fiéis de várias línguas, recordou que no dia 7 de outubro a Igreja celebra Nossa Senhora do Rosário e nos encoraja a rezar o Rosário em meio a este tempo de pandemia da COVID-19, porque “é uma arma que nos protege dos males e das tentações”, além de ser “a oração mais bela que podemos oferecer a Nossa Senhora”.

Serafim Leite (1890-1969), em sua monumental “História da Companhia de Jesus no Brasil”, Tomo V, lembra que a devoção à Cruz de Cristo foi sempre a mais espalhada entre os jesuítas, desde sua chegada à Amazônia no século XVII. As cerimônias da Quaresma, ou Semana Santa, celebravam-se com grande pompa na região. A Procissão da Penitência, que acompanha tais celebrações, levou-se a toda parte até às mais remotas aldeias. A devoção eucarística recebeu também extraordinário incremento e tornou-se comum a comunhão aos índios.

Dentre outras devoções promovidas com grande empenho, naqueles tempos, estavam a do Divino Espírito Santo e a do Sagrado Coração de Jesus, sem dúvida dos mais belos capítulos do apostolado na Amazônia. Entre os apóstolos, veneravam-se São Pedro e São Paulo. Era corrente a devoção aos santos anjos, em particular São Miguel e São Rafael. Porém, incentivados pelo padre Antônio Vieira, os jesuítas levaram sempre consigo, em todos os quadrantes da região, a devoção a Nossa Senhora. O Terço cantava-se a princípio pelos adultos. Continuou depois pelos meninos, filhos de índios. A prática do Rosário, cantada a coros, a moda de São Domingos, era feita cotidianamente.

O hábito de rezar o Rosário passou do Maranhão ao Pará e, desde a década de 1660, disseminaram-se por toda a região as congregações marianas consagrando-se a Nossa Senhora diversas aldeias, entre elas a que deu origem à cidade de Itacoatiara. Dizia o padre Vieira, em seus sermões: “A Virgem, como mãe comum, abraça com seu amor igualmente a pretos e brancos, a pobres e ricos. Compara-se à aurora, à lua, ao sol. Como sol aos brancos que são o dia, como lua aos pretos que são a noite, como aurora aos pardos que são os crepúsculos”. Desde a chegada de Vieira instituíram-se as práticas religiosas católicas, com ressalte para os sacramentos, os cantos do Terço e as pregações.

No início do século XVII, no Estado do Maranhão, a fé e a devoção a Nossa Senhora da Vitória chegaram por meio da Companhia de Jesus. Os primeiros jesuítas a desembarcarem em São Luís foram os padres Manuel Gomes e Diogo Nunes que se instalaram na região por um tempo considerável. Outros missionários, a partir de 1620, por ali passaram fortalecendo cada vez mais o culto à Rainha do Rosário.

Os jesuítas do Maranhão, à imitação do que já existia em Portugal desde o tempo de dom João I (1357-1433), invocavam Nossa Senhora da Vitória tanto que ergueram em 1690 igreja sob o padroado da milagrosa Santa, com ajuda de mão-de-obra indígena, que depois passou a Catedral dedicada à Nossa Senhora da Luz.

Outra lembrança daquele período áureo da ação jesuítica, no território maranhense, é a atual cidade do Rosário, originada do forte do mesmo nome implantado em 1620 na foz do rio Itapecuru, distante cerca de 50 quilômetros da capital. Sim, porque prioritariamente os primeiros missionários se impuseram a missão de catequizar os nativos e, para isso, usavam o exemplo de Nossa Senhora.

Do Maranhão, a cruzada civilizadora dos jesuítas, obediente a uma política de maior irradiação, passou ao Pará e em seguida ao Amazonas. Com bem o diz Arthur Reis, “[…] ao invés de apenas descer as tribos que iam sendo domesticadas e se entregavam aos cuidados dos homens de batina, […] ao invés de aldeamentos nas cercanias de Belém, aldeamentos foram semeados no Tocantins, no Xingu, no Tapajós e no Madeira”. A ofensiva para a expansão da fé iniciou-se no século XVII e se espraiaria pelo seguinte.

Nos anos seguintes, além do culto a Nossa Senhora, muitos eventos ocorreriam envolvendo o sagrado e o profano. No Maranhão, devido à segregação dos negros, estes acabaram criando irmandades próprias, separadas das irmandades de brancos, onde tinham maior liberdade de ação e, através delas, promoviam a alforria dos irmãos escravos e garantiam a sua sepultura em solo sagrado. O culto à Santa Virgem Maria foi introduzido na cultura dos escravos africanos pelos jesuítas, na catequese, para legitimar a religião católica, buscando homens e mulheres negras para a prática religiosa. Essa tendência se consolidou nos séculos XVII e XVIII até que, chegado o século XIX, as Irmandades do Rosário no Maranhão, em sua maioria eram formadas de negros.

Data de 1682 a construção em Belém da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Era apenas uma capela de oração dedicada ao culto dos devotos negros. Por ser humilde e as pessoas que viviam ao seu redor também, a igrejinha demorou muito a ser concluída. Sobre as dificuldades para esta construção, o naturalista inglês Henry Walter Bates (1825-1892), relata uma experiência quando de sua estada em Belém, em 1848: “[…] Encontrava frequentemente uma fila de negros, caminhando pelas ruas cantando em coro. Cada qual levava na cabeça certa quantidade de material de construção: pedras, tijolos, argamassa, tábuas. Vi que eram principalmente escravos que, depois de um dia pesado de trabalho, contribuíam um pouco para a construção de sua igreja”.

Tal qual ocorreu com semelhantes igrejas de São Paulo e Rio de Janeiro, as da capital paraense, também no século XVII, inicialmente pareciam ser devoção tanto de pretos como de brancos, mas a identificação maior dos primeiros com seu culto foi gradativamente afastando os outros, tornando-se as irmandades quase que exclusivamente de pretos libertos ou escravos, africanos ou crioulos. O modelo que, no final do século XVI, foi importado para o Brasil em quase nada se distinguia de suas congêneres portuguesas, pois as características apresentadas àquelas em Portugal são facilmente encontradas nas irmandades brasileiras, destacando-se sobretudo suas qualidades festivas e devocionais.

Em quase todas as freguesias brasileiras encontravam-se as irmandades do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário e das Almas, tendo sido também as primeiras a serem estimuladas na metrópole. Os negros normalmente se congregavam em torno de Nossa Senhora, mas existiam outros santos de sua predileção como São Benedito, Santa Ifigênia. Ocorrências do tipo também se dariam no século XIX em Manaus e na Vila de Serpa, a atual Itacoatiara.

O historiador Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), em um livro célebre sobre cultos de santos e festas profano-religiosas, registra fatos importantes do culto popular a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na capital amazonense. Nós próprios, mais adiante, discorreremos sobre o testemunho dos naturalistas ingleses Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace (1823-1913), quando estiveram na vila de Serpa em dezembro de 1849. Além de haverem acompanhado à procissão de Nossa Senhora do Rosário, onde os fiéis conduziam a imagem da Santa Padroeira ao lado do çairé e “[…] cantavam um hino monótono e plangente, na língua tupi”, foram à Festa de São Benedito, nos arredores da vila, onde os negros “[…] passaram a noite cantando e dançando ao compasso do gambá e do caracaxá”.

Finalizo o presente Capítulo lembrando que a devoção do povo itacoatiarense a Nossa Senhora do Rosário vem de 1683, ano em que foi fundado no rio Madeira o núcleo originário desta cidade, e disso trataremos logo em seguida.

* Capítulo Sexto do livro As Pedras do Rosario do Autor.

Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/

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