A Travessia. Vila de Serpa
O sítio Itaquatiara, que em 1758 Mendonça Furtado indicara à transferência da missão de Abacaxis, era cercado por uma imensa área coberta de vegetação, nas categorias matas de terra firme, matas de várzea e matas de igapós, além de vários igarapés e lagos piscosos. Este espaço geográfico é no Médio Amazonas uma das áreas de maior e melhor ventilação. A sua privilegiada posição, sem muitos obstáculos topográficos, faz com que a influência da circulação dos ventos tenha uma predominância maciça quase durante todo o ano.
O lugar, sem dúvida, oferecia melhores condições de habitabilidade pública e comunicação com outros centros regionais, trazendo as condições de progresso e bem-estar buscadas há muitas décadas pelos primeiros habitantes de Itacoatiara. Demais disso, a localização estratégica do sítio atendia aos interesses da Coroa portuguesa possibilitando um maior controle sobre as aldeias vizinhas. O próprio Mendonça Furtado comemoraria a instalação do burgo naquele espaço:
“[…] O rio naquele sítio é abundantíssimo e sobretudo está na estrada real destes sertões, e com esta vila acharão os passageiros socorro e os índios […] civilizarse-ão”.
Milenarmente conhecido dos índios Aroaqui que, procedentes das fronteiras de Venezuela e Colômbia, residiram nas imediações circuitando pelo Baixo rio Urubu, os quais, perseguidos pelas tropas de guerra portuguesas, dali se retiraram em meados do século XVII – desde lá o sítio tornou-se um local tranquilo, parada dos viajantes ou estação de repouso de muitas personalidades que subiam e desciam o Amazonas em missão oficial, de estudo e/ou de pesquisa.
O Sítio Itaquatiara foi decantado pelos padres-historiadores João Daniel e José Monteiro de Noronha e inserido como sítio histórico na Planta do Rio Amazonas, elaborada em 1756 pelo engenheiro alemão João André Schwebel (1718-1759), cujo manuscrito original guarda-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Entre as altas figuras que ali pernoitaram destacamos: em 1744, o sertanista português Francisco Xavier de Moraes (1700-c.1788) e em 1754, o astrônomo húngaro Inácio Samartone (1718-1793) e o governador Mendonça Furtado.
A transferência da missão de Abacaxis para a margem esquerda do Amazonas iniciou-se em 18 de abril de 1758 e foi realizada por grupos de índios Abacaxis, Arara, Iruri, Mundurucu e Torá. Vieram centenas deles. Descendo o rio, suas canoas foram impulsionadas com cautela possibilitando uma viagem sem atropelo. Demonstravam assim não serem tão ingênuos: era tempo de cheia e desde o Madeira vinham beirando o rio até à sua foz. De lá atravessaram para o Amatari e continuaram remando rente à margem ‘driblando’ correntezas até findar a viagem.
A área escolhida para a futura sede municipal, ao largo do Sítio
Itaquatiara, ficava uns 400 metros a montante do Igarapé do Jauari. Mas os primeiros dias foram utilizados para agasalhar as famílias que chegavam e, para tanto, foram levantadas ao longo da beira do rio várias tendas de palha, material colhido nas matas próximas. Antes de partir para Lisboa via Belém, retornando do rio Negro, Mendonça Furtado providenciara a contratação de capatazes brancos para dirigir os trabalhos de desmate e limpeza da área, a liberação de recursos destinados ao pagamento de mão-de-obra e à aquisição de mantimentos, tudo em consonância com a Lei do Diretório.
Conforme referi à página 144 do livro “Fundação de Itacoatiara”, edição de 2017,
“[…] Em nove meses de trabalho árduo, e às vezes descontinuado, aquele pedaço de mata densa transformou-se numa imensa clareira onde se colocavam dispersamente dezenas de construções simples em madeira e palha. Dali a pouco, o povoado alcançaria os foros de vila, ajustando-se à forma municipalista primária. Paulatinamente, àqueles pioneiros vieram se juntar remanescentes dos povos Aaná, Anicoré, Aponariá, Baniba, Bary, Cumaxiá, Curuaxiá, Juma, Juqui, Juri, Maué, Mura, Pariqui, Passé, Sará, Tururi e Urupá”.
Segundo opinei na mesma obra, “[…] As ferramentas usadas na cansativa faina consistiam de machados de pedra e, de permeio, alguns ‘modernos’ de ferro” (5). Entretanto, face à evolução das minhas pesquisas, optei por dar outro sentido ao trabalho de desflorestamento da área em foco: na realidade, o emprego dos machados de ferro não foi “de permeio”, foi massivo, total. Demais disso, creio que agi coerentemente ao afirmar que a operacionalização, em 1758, do desmate da área demarcando os fundamentos de nossa cidade, deu ensejo a que o Município de Itacoatiara se incorporasse aos pioneiros no uso da tecnologia dos machados de ferro, desde o século XVIII.
É preciso que se diga: a mata virgem tinha que ser abatida para que a civilização penetrasse no lugar dela. Há que se reconhecer, por outro lado, a total impossibilidade de serem derrubados, através de machados de pedra, em oito meses, várias centenas de gigantescos e grossos pés de árvore que dominavam um quadrilátero de mais de dois hectares que corresponde, atualmente, à Praça da Catedral e inclusa toda a área edificada até à beira do rio.
A difusão do uso dos machados de ferro em substituição aos de pedra fez aumentar sobremaneira a produtividade do trabalho reduzindo o tempo para a derrubada das árvores. Para não alongarmos este assunto, leiamos o cientista suíço Emilio Augusto Goeldi (1859-1917):
“[…] Tive a oportunidade de assistir a uma palestra no Rio de Janeiro, […] me impressionou a descrição que o palestrante traçou de um índio Baikiri, […] no momento em que vibra o machado de pedra préhistórico para, de maneira penosa, pôr a seus pés a enorme árvore da floresta nativa necessária para suas atividades. […] O autóctone, que, nas cabeceiras do Xingu permaneceu alheio a qualquer contato com a cultura, passa a manhã inteira junto à árvore escolhida, iniciando com sua ferramenta grosseira um trabalho durante o qual o encontra o sol do meio-dia e, em tom de despedida, o da tardinha. […] Os dias se passam, semanas depois o Baikiri ainda golpeia o tronco da árvore da mesma maneira – um milagre da perseverança – gastando luas num trabalho que para um machado de aço norte-americano seria coisa de algumas horas”.
Graças à Companhia Geral de Comércio foi possível adquirir muitos machados de ferro, que Mendonça Furtado mandou empregar na abertura da clareira disposta às primeiras edificações de Serpa e na feitura de muitos roçados nas circunvizinhanças. A partida de Mendonça Furtado da Amazônia, prejudicou enormemente seus planos em relação à Vila. De acordo com o filósofo e escritor amazonense Alfredo Lopes,
“[…] Itacoatiara é, dos biomas amazônicos, o mais adequado para a bioprospecção de negócios, pela variedade e generosidade genética que deixou atarantado o irmão do Marquês de Pombal, Mendonça Furtado. Ele descortinou a bonança da (geo)biodiversidade monumental. […] Instalou governança especial no Baixo Amazonas, olhando miríades de riquezas nas cercanias da vila de Serpa, pelas evidências estratégicas de navegação e oportunidades, evidências que expedições europeias já haviam notado”.
Concluído o desmatamento e feita a limpeza do terreno designado à instalação da Vila, a povoação se definiu em torno de uma grande praça quadrangular, de frente para o rio Amazonas, em cujo centro foi construída a igrejinha e à sua frente fincada uma grande cruz. À direita da capela, quase rente à orla, foi erguida a Casa da Câmara e um pouco atrás as casas dos agentes públicos. Nos fundos da igreja ficava o Cemitério e, no lado oposto, a escola, as oficinas, um pomar e a horta. Além do Cemitério, espraiando-se para os lados, ficavam as moradias dos índios. Todas as construções eram em madeira e palha. A população do burgo, estimada em mais de 400 pessoas, era em sua maior parte de índios aculturados; havia uns 55 residentes brancos e dois ou três escravos negros.
O ato de criação da comuna decorria das instruções deixadas por Mendonça Furtado ao governador Joaquim de Mello e Póvoas. Procedente de Borba, Mello e Póvoas chegou no dia 31 de dezembro de 1758, véspera do evento, à frente de uma comitiva composta do vigário-geral da Capitania José Monteiro de Noronha; do comandante militar Gabriel de Souza Filgueiras; do juiz João Nobre da Silva; do procurador da Câmara de Barcelos Agostinho Cabral de Souza; do tabelião e escrivão da mesma Câmara sargento-mor Francisco Xavier de Andrade; do engenheiro alemão Felipe Sturm; e de alguns oficiais da força militar e ajudantes de ordem.
Na manhã de 1º de janeiro de 1759, em obediência ao Código Filipino e à legislação acessória que regulavam o regime municipal português, deu-se o ato solene de instalação da Vila de Nossa Senhora do Rosário de Serpa, nome oficial da nova circunscrição administrativa. O título “Serpa” reportava-se a uma das comunidades da Real Casa de Bragança e, principalmente, atendia ao que fora determinado por Mendonça Furtado antes de deixar a Amazônia: os nomes gentílicos das aldeias, quando elevadas a vila, deveriam ser substituídos por topônimos portugueses.
A cerimônia revestiu-se das formalidades de praxe. Levantado o Pelourinho, símbolo das franquias municipais, à feição de coluna, o governador Mello e Póvoas, cercado de seus auxiliares e convidados, declarou criado o povoado mandando ler o nome dos que nomeara para diretor da Vila e para integrar a Câmara Municipal. Na sequência, os vereadores prestaram o Juramento dos Santos Evangelhos e a sessão foi encerrada com a Missa em ação de graças rezada pelo vigário-geral padre José Monteiro de Noronha.
A Câmara foi composta de cinco membros, inclusive o presidente e o procurador, que seriam eleitos anualmente. O diretor não tinha mandato fixo; era um cargo de confiança do governo. Respondia pela administração do burgo, pela arrecadação dos dízimos e o controle da mão-de-obra indígena. Entre seus encargos estavam: o de estimular o uso da língua portuguesa entre os nativos; animá-los para o desenvolvimento do trabalho agrícola e a prática do comércio; estimular uma relação amistosa entre índios e brancos, assim como o casamento entre os mesmos.
De acordo com Arthur Reis, “[…] escolhidos entre os nativos, os vereadores em sua quase totalidade não sabiam ler nem escrever, donde as atas serem assinadas de cruz. […] Aquele mais ilustrado, capaz de redigir uma ata, na realidade estava com o poder nas mãos”. Infelizmente, não conseguimos descobrir esses primeiros escolhidos. Os elementos documentais referentes a esse período perderam-se durante a guerra da Cabanagem (1835-1840). Nessa mesma cerimônia de instalação da Vila foi instalada a Paróquia de Serpa, segmento da Igreja Católica que, em nível local, substituía à Ordem dos jesuítas – um assunto que será tratado no Capítulo seguinte.
O governador Joaquim de Mello e Póvoas, após presidir a instalação de Serpa, dirigiu-se à missão de Saracá, no Baixo rio Urubu, e a erigiu em Vila com o nome português de Silves. De volta a Barcelos encomendou ao engenheiro militar Felipe Sturm a confecção das plantas de Borba, Serpa e Silves. Nos desenhos que realizou para as vilas de Serpa e Silves é visível a base de planejamento militar. Para Serpa, o engenheiro propôs um hexágono regular, fazendo a Vila literalmente na forma de uma fortaleza. Para Silves, o plano apresentado prevê uma Vila com duas grandes praças retangulares. Os originais de ambas se encontram em perfeitas condições na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Mas adiante, à página 153, será inserida uma cópia da planta de Serpa.
De Barcelos, Joaquim de Mello e Póvoas, em carta-relatório de 16 de janeiro de 1760, deu conhecimento às autoridades portuguesas das providências tomadas e, no final do ano, viajou para São Luís onde foi assumir o governo do novo Estado do Maranhão e Piauí.
* Capítulo Decimo do livro As Pedras do Rosario do Autor.
Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/