Predomínio da Vila de Serpa
O século XIX foi um período repleto de ocorrências históricas e políticas relevantes. Uma época de guerras e descobertas importantes para a história mundial. Um momento de grandes transformações para a população do Brasil, que, logo no início do período (1808), se depara com o episódio inédito de receber o monarca de sua metrópole, dom João VI (1792-1816). Também é estabelecida na cidade do Rio de Janeiro a capital política e econômica do Império Português. Ressalte-se que, até 1815, o Brasil foi tão-somente uma Colônia de Portugal. Daquele ano em diante, quando seria proclamada a nossa Independência, passamos a carregar o título de Reino Unido a Portugal e Algarves.
Anteriormente, as relações políticas do Grão-Pará e Maranhão eram essencialmente com Portugal provocando um certo distanciamento em relação ao Estado do Brasil. No século XIX, o progresso, a urbanização e a vinda de algumas missões científicas iriam subtrair a Amazônia de seu isolamento. Em relação à Capitania do Rio Negro, o contraste é que os primeiros governadores nomeados após a morte de Lobo d’Almada ou duraram pouco tempo no cargo ou não estiveram à altura dele.
Em outubro de 1800, o coronel José Antônio Salgado assumiu o governo em Barcelos e não deixou sinal de sua passagem. Seria substituído pelo coronel José Simões de Carvalho, o qual nem chegou a tomar posse falecendo em outubro de 1805. O capitão José Joaquim Vitório da Costa assumiu em 1806 e seu mandato duraria 12 anos. Homem de negócios e explorador do trabalho indígena, ocupou-se de seus próprios interesses. A única providência de monta de seu governo foi transferir, a 29 de março de 1818, a capital para o Lugar da Barra.
Aqui um parêntese para informar que, em 1803, chega à Vila de Serpa o bispo diocesano do Pará dom Manoel de Almeida de Carvalho (1748-1818). Cumprindo o roteiro de uma viagem pastoral aos rios Amazonas e Negro, dom Manoel foi recebido com a maior pompa. O caráter das desobrigas triunfalistas de então e a ostentação de riqueza dos bispos, expressa principalmente em suas vestes talares, distanciavam muito da pobreza da população e da humildade das igrejas locais. Porém, tais eventos eram rotineiros e serviam tanto para animar a vida religiosa, através da ministração dos sacramentos e divulgação das normas evangélicas, quanto para avaliar e propor a melhoria das condições físicas das igrejas ribeirinhas. A Matriz de Serpa melhorava sempre e nada lembrava do seu decadente aspecto anterior.
O governador José Joaquim Vitório da Costa governou até 1818. Despachando no Lugar da Barra, realizou ali alguns melhoramentos urbanos e, com o auxílio das câmaras de Silves, Parintins e Barcelos, postulou a criação de um governo autônomo para o rio Negro. Contrário à Constituição Portuguesa de 1820, negou-se a jurá-la sendo por isso deposto. Em seu lugar assumiu o coronel Antônio Luiz Pires Borralho, nomeado em 1821, que não chegou a embarcar em Belém. Por esse motivo, a partir de 29 de setembro daquele mesmo ano, governou uma Junta que, por não se enquadrar em dispositivos legais, foi dissolvida.
Nesse agitado período da política amazonense, a Vila de Serpa aparece referida e toma verdadeiramente o seu lugar na evolução da Capitania. Sua Câmara Municipal, então presidida pelo vereador João da Silva e Cunha, demonstrava-se combativa e correta no trato de suas obrigações e, assim, o povoado da Barra do rio Negro passou a depender de Serpa. A respeito, o historiador Mário Ypiranga Monteiro, ratificando a escrita de seus confrades Arthur Reis e Bertino de Miranda (1864-1919), disserta:
“’[…] A situação de capital da Província, em determinado período de agitações políticas, é, entretanto, a mesma no que contende com a autonomia. Ainda mesmo como capital, é considerada para todos os efeitos um simples subúrbio de Serpa, que, agora decadente o predomínio de Barcelos, passa a florescer à custa da Barra. De fato, era ali em Serpa que iam os moradores da capital ‘requerer licença para abrir casas de negócios, para pescar nas praias, para colher as drogas e os frutos, para legalizar, enfim, a posse de suas terras’. Como sucedia antes, fica na Barra um representante da Câmara de Serpa, o Juiz de Julgados, cuja alçada se resume em dar conhecimento das ocorrências e ‘exercer a política urbana e suburbana’. Apenas o ouvidor da Comarca e o comandante militar, além de alguns funcionários subalternos, residiam na capital. E tudo isso por quê? Porque a Barra não possuía ainda a predicação de vila, que só obteria mais tarde. A condição humilhante de distrito tornava-a completamente inútil diante do assessoramento das outras vilas. […] Esse estado de coisas perdurou, nada obstante o sacrifício do povo, obrigado a deslocar-se, em canoas, a fim de legalizar seus negócios em Serpa. Era uma situação realmente incrível’”.
Por outro lado, a Capitania do Rio Negro permanecia na mesma condição de subalterna ao Grão-Pará. A decadência continuou no rio Negro, mas no Solimões e no Baixo Amazonas era um pouco melhor a situação. Segundo Arthur Reis, o povoamento alargou-se sensivelmente. Cuidou-se com mais carinho da agricultura e fundaram-se fazendas de gado pelas várzeas do Amazonas. No ínterim, explodia em Belém o movimento que inauguraria a série de perturbações pugnando pela separação do Brasil de Portugal, um sentimento que se espraiaria por toda a região.
A 11 de outubro de 1820, o zoólogo Johann Baptist von Spix (1781-1826) e o botânico Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) chegam a Serpa. Apesar de integrarem a missão científica austríaca, eram alemães, e estavam empenhados em descobrir e reproduzir em seus estudos e obras a biodiversidade brasileira. De fato, a viagem dos dois pesquisadores europeus propiciou a mais completa exploração da fauna e da flora brasileiras até os dias de hoje, dando origem a uma série de produções responsáveis por revelar detalhes fascinantes e profundos do Brasil ao Velho Mundo. Em apenas 3 anos – de 1817 a 1820 – percorreram mais de 10 mil km, passando por diversos estados, entre os quais São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.
Chegaram à meia noite e permaneceram quatro dias pesquisando em Serpa e nos arredores. Descrevem a vila como se estivesse instalada em “[…] uma ilha entre o rio Amazonas e as bifurcações do lago do Saracá”. Definem-na como um local “tão pobre de indústria, como de população, […] e tudo aqui indicava a máxima decadência, observação que mais significativo tem visto Serpa ser um dos mais antigos povoados de toda a Província do Rio Negro e, mesmo na ocasião de nossa estada, era ainda a sede municipal da Fortaleza da Barra, situada a oeste, e que não possuía então o seu Senado da Câmara. Os poucos moradores índios tinham perdido todo o vestígio de suas diferentes origens, e falavam a língua geral. Era gente desleixada e apática”.
Spix e Martius deixaram Serpa a 17 de outubro seguindo em direção ao Lugar da Barra. A caminho, no paraná do Arauató, mataram alguns mutuns e, após discorrerem sobre a beleza desses galináceos silvestres, levaram alguns exemplares deles para a Europa.
Continuando as condições subalternas do Lugar da Barra, o comprometimento da Câmara de Serpa extrapola para além do território municipal. Transportando-se à Barra, lá realiza as sessões ordinárias de 7 a 17 de março de 1821. Regressa a Serpa em 4 de abril e no dia 22 desse mês recebe o juramento à Constituição Portuguesa de 1820, seguido da obediência ao rei dom João VI. No Lugar da Barra, as juntas governativas se sucedem. À que se formou em 30 de setembro seguiu-se outra composta do ouvidor Domingos Nunes Ramos Ferreira, do coronel Joaquim José Gusmão e do vereador mais velho da Câmara de Serpa, e seu presidente, João da Silva e Cunha.
A 1º de julho de 1822, volta à Barra a Câmara de Serpa e, reunida extraordinariamente, no dia seguinte na Igreja Matriz, jura a Constituição Portuguesa, desta feita em nome da Capitania. No dia 12, vemos a Câmara em sessão plena em Serpa, onde, na mesma oportunidade, o ouvidor Ramos Ferreira realiza uma audiência geral de correição.
Ramos Ferreira ouve a todos e registra as queixas e exigências dos moradores. Os prédios do Paço e da Cadeia Pública reclamavam consertos, “o Pelourinho fora retirado da Praça contra o voto de todos. Devia, portanto, voltar para o lugar primitivo”. Havia uma pendência entre o pároco e a Câmara sobre os direitos de domínio da casa que o primeiro ocupava. “O ouvidor determina que a casa seja entregue à Câmara e que o Pelourinho volte para a frente da igreja”.
A 3 de junho de 1822 a Junta Governativa da Capitania foi ampliada, dela constando, além do presidente Antônio da Silva Carneiro, os membros Bonifácio João de Azevedo, Manoel Joaquim da Silva Pinheiro, Vicente José Fernandes e João Lucas da Cruz. Por esse tempo já circulavam notícias do que se passava no sul do País; conhecia-se a marcha dos acontecimentos em favor da Independência.
Consumado, no dia 7 de setembro, o grito de Independência do Brasil, só a 9 de novembro a Barra tomou conhecimento do acontecido. E a 22 do mesmo mês reunida a Câmara de Serpa, especialmente convocada, realizou-se o juramento de obediência, fidelidade e adesão a dom Pedro I (1798-1834). A Junta Governativa, mais uma vez, foi reformulada, excluindo-se o elemento português. Como presidente ficou Bonifácio João de Azevedo e os demais membros: Raimundo Barroso de Bastos, Plácido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva e Cunha, eleitos a 23 e empossados a 24 de novembro.
Na sequência, é promulgada no Rio de Janeiro a Constituição Imperial de 25 de março de 1824, a qual, dentre outras relevantes medidas, instituiu o Catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro.
Durante todo o período imperial, a união entre o Estado e a Igreja Católica seria determinante para a legitimidade do Regime Monárquico, repercutindo diretamente na cidadania e na vida cotidiana dos brasileiros. Todavia, os anseios de autonomia do Amazonas não foram atendidos. Esperava-se que a Capitania do Rio Negro fosse transformada numa Província do Império, mas a Carta Magna silenciou e, assim, ela permaneceu como Comarca anexa à Província do Pará.
Segundo o historiador Arthur Reis, apesar da “[…] injustiça clamorosa”, os amazonenses “não procederam violentamente. Juraram a Constituição Imperial, com toda a solenidade, no Lugar da Barra, em presença da Câmara de Serpa e da Junta Governativa. […] O ato teve lugar a 6 de fevereiro de 1825, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição”. Entretanto, o ouvidor Ramos Ferreira e a Junta Governativa entraram em aberto conflito, disputando a supremacia do governo, o que justificou a pronta intervenção do Pará: em julho o presidente José Félix Pereira de Burgos aboliu a Junta, “fazendo conservar a autoridade judiciária no ouvidor e a municipal na Câmara de Barcelos”, e removeu esta “daquela vila para o Lugar da Barra”. Tais atos, lavrados em Belém, mereceram a pronta aprovação do governo imperial, colocando em risco a preponderância política de Serpa sobre a futura Manaus. Mas, a disputa entre ambas pelo gerenciamento político e administrativo da Capitania (e depois Comarca) do Rio Negro, durou mais de uma década (18191833)!. É o que veremos no Capítulo seguinte.
* Capítulo Decimo Quarto do livro As Pedras do Rosario do Autor.
Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/