Restauro da Vila
Simultaneamente à instalação da Província do Amazonas e à posse do presidente João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (17981891), ocorridas em 1º de janeiro de 1852, é introduzida a navegação a vapor na região, uma iniciativa da Companhia de Comércio e Navegação, criada pelo industrial e banqueiro gaúcho Irineu Evangelista de Souza, barão e depois visconde de Mauá (1813-1889), e, assim, ampliavam-se as possibilidades econômicas da nova unidade federativa do Império brasileiro.
Anteriormente à entrada dos navios dessa empresa, os barcos a remo e à vela gastavam mais de um mês no trecho Belém-Manaus. O navio “Marajó”, que inaugurou o novo sistema de transporte, aportando em Serpa em janeiro de 1853, fazia o mesmo percurso gastando dez dias de subida e seis de baixada através do rio Amazonas. O trecho Serpa-Manaus era feito em 12 horas, aproximadamente.
Durante cerca de 20 anos, os navios da empresa de Mauá e da inglesa The Amazon Steam Navigation operaram na Amazônia tanto nos serviços de embarque e desembarque de cargas e passageiros, quanto na atividade de permutar mercadorias estrangeiras com produtos extrativos em Manaus, Serpa e demais povoações ribeirinhas, e para tomar lenha que servia de combustível para os vapores.
A representação política do Amazonas, à época, constava de uma Assembleia Legislativa, com 20 membros, e da bancada com um senador e um deputado designados para atuar na capital imperial. O quadro demográfico registrava 29.798 habitantes, dos quais 750 escravos. Duas décadas depois, devido à valorização do produto da borracha e à introdução da navegação a vapor estimulando a imigração de nacionais e estrangeiros, a população amazonense subiria para 53.012 pessoas. Em 1852, a Província formava uma única Comarca dividida em dois termos: o da capital compreendendo os municípios de Manaus, Tefé, Barcelos e Silves, e o de Maués, abrangendo esse município e o de Parintins.
À exceção de seu de Diretor, Serpa não possuía representação política. Em 21 de outubro de 1852, a dependência da freguesia fora deslocada de Manaus para Silves. Somente após a edição da Lei provincial nº 26, de 7 de dezembro de 1853, Serpa voltaria a integrar o termo judiciário da capital, oportunizando a que o juiz de paz Luiz Fernandes do Nascimento assumisse o posto em 17 de fevereiro do ano seguinte.
Nos logradouros públicos de Serpa não havia nomenclatura oficial nem placas de numeração de casas. Além da Praça da Glória (mais tarde 13 de Maio e hoje Praça da Catedral), eram nove logradouros identificados por nomes tradicionais: rua das Gaivotas (atual Waldemar Pedrosa); rua Nova (hoje Desembargador Meninéa); rua Formosa (atual Saldanha Marinho/Barão do Rio Branco); rua da Glória (atualmente Quintino Bocaiúva); travessa do Oriente (atual Avenida Sete de Setembro); travessa dos Empregados (depois travessa da Fraternidade e atualmente rua Monsenhor Joaquim Pereira); travessa Mítica (à esquerda da Matriz colonial e mais tarde travessa da Igualdade, a qual seria extinta em 1930); travessa da Marta ou Romana (atualmente Avenida Conselheiro Ruy Barbosa); e travessa Barroca ou dos Martins (atual travessa da Rampa, ao lado do Casarão dos Ramos).
A Força Pública estacionada na freguesia constava de 28 praças e um oficial, e a Educação de apenas uma escola primária do sexo masculino, criada em outubro de 1852. Isto não quer dizer que em Serpa já não houvessem professores. Havia, naturalmente, desde 1845, o padre-mestre, o vigário. O problema da falta de professores vinha de longe, e não era exclusivo de Serpa. Carente desses profissionais leigos, a Província do Amazonas preenchia os claros com sacerdotes.
Idos de 1853: a Matriz de Nossa Senhora do Rosário de Serpa estava por concluir e seus ornamentos “se encontravam em péssimo estado”. Provavelmente começado em 1840 e, embora parecesse normal para os padrões locais, o prédio era pequeno, media exatamente onze metros de frente por oito e meio de fundos. Parecia mais largo devido às varandas laterais, e era em parte coberto de telhas e em parte coberto de palha. As banquetas de madeira prateadas, doadas por um paroquiano para servir aos dois altares laterais, estavam se depreciando. Em face das ausências do vigário colado, a Igreja recorria ao trabalho dos interinos, que nem sempre eram habituais. Substituindo ao padre Manoel Inácio Raposo, em agosto de 1854 assumiu, por pouco tempo, o vigário de Silves padre Daniel Pedro Marques de Oliveira.
Os fiéis lutavam com extrema dificuldade para consertar sua Igreja. Sensível aos apelos públicos, o presidente da Província Herculano Ferreira Pena (1811-1867) mandou repassar à comissão encarregada das reformas 1.050 telhas de barro e a quantia de 200 mil réis. O adjutório oficial e os quase 300 mil réis de donativos arrecadados entre os paroquianos proporcionariam um considerável avanço nas obras da Matriz. Parte das telhas tipo marselha e todo o madeirame utilizado na armação da cobertura, portas, janelas e outras obras de arremate eram provenientes da olaria e da serraria da Colônia Agroindustrial.
Por decreto de 27 de novembro de 1854, o padre Luiz Martinho de Azevedo Couto foi nomeado vigário colado de Serpa, exercendo a função cumulativamente com a de vigário-geral da Província. Porém, tendo que se retirar para tratamento de saúde em Belém, por um largo período esteve ausente da Província. Nos três anos seguintes, a Paróquia foi sucessivamente encomendada aos padres frei João de Santa Cruz, José Bernard Pinto e Roza e Francisco de Paula Cavalcante Albuquerque. Além das funções sacerdotais, o primeiro (em 1855-1856) e o terceiro (em 1857) acumularam a função de professor de primeiras letras em Serpa.
Como visto, o mundo profano e o mundo sagrado cumulavamse de vitórias em Serpa – conjuntamente ou de per si. Certamente, os segmentos civil e religioso locais seguiam a máxima: “O sagrado é necessário ao homem como o ar que ele respira. O sagrado funda o próprio sentido do profano e revela o fundamento da vida”.
Resultante das deliberações tomadas em Roma, na metade do século XIX, os católicos de Serpa davam grande ênfase ao Culto a Nossa Senhora. Adotado desde o início da colonização, o Culto Mariano influenciou enormemente a catequese dos índios. Ele se desenvolveu em toda a Província do Amazonas favorecido pelo tipo de sociedade patriarcal em que predominava a figura materna na afetividade, projetando-se facilmente na piedade.
De acordo com o poeta Elson Farias,
“[…] A devoção à Nossa Senhora era uma atitude pedagógica que tornava mais factível a aproximação dos nativos da religião cristã-católica. Os ensinamentos baseados na devoção à figura da Mulher-Mãe Divina fortaleciam a comunicação entre catequistas e catequizados. Esse sentimento impulsionava a ação dos missionários e marcava definitivamente sua atuação pastoral na região.
Generalizado por toda a Igreja latina, o Marianismo consagrouse a partir da proclamação da Imaculada Conceição da Virgem Maria, solenemente definida, em 1854, como dogma pelo Papa Pio IX (17921878). Como é próprio da doutrina católica, a grandeza da imagem de Maria está na Maternidade Divina. Porém, dois outros atributos aparecem constantes na definição da fé: a Virgindade e a Plena Santidade como consequência da sua prerrogativa de Mãe de Jesus Cristo.
O Bispado do Pará, objetivando a descentralização das atividades religiosas na Amazônia, em 13 de abril de 1855 criou a Comarca Eclesiástica do Amazonas, sediada em Manaus, cuja direção foi entregue ao cônego e vigário-geral Joaquim Gonçalves de Azevedo (1814-1879), e a nova Pastoral Litúrgica foi dividida em 6 distritos sendo a Paróquia de Serpa incluída na primeira categoria, cujo vigário colado, padre Luiz Martinho de Azevedo Couto, vencia a côngrua anual de quatrocentos mil réis.
Em 1855, Serpa é atacada pela cólera-morbus que contaminou sessenta e quatro pessoas e matou outras quatorze. Recrudescida a epidemia no ano seguinte, outro flagelo grave, o da febre amarela, atingiu a freguesia fazendo dezenas de vítimas. A Paróquia contribuiu decisivamente na superação desses problemas, além de haver atuado em defesa dos índios atingidos pelo mal da bexiga – nome popular da varíola, que matou muitas pessoas no correr daquele ano; era tratada com medicamentos homeopáticos, em quarentena.
O grupo Mauá, sediado no Rio de Janeiro e subsidiado pelo governo imperial, fundara no ano anterior a Colônia Agroindustrial Itacoatiara, num terreno de 40 mil braças quadradas (cerca de sete mil hectares), a oeste da freguesia fazendo frente para o rio Amazonas e estendendo-se ao lago de Serpa, onde foram instalados olaria, serraria, estaleiro, oficinas mecânica e de serralheria, e a maior parte da área destinava-se ao cultivo agrícola.
O primeiro diretor do empreendimento foi o engenheiro francês Le Gendre Decluy, mais tarde substituído pelo ex-oficial alemão Moritz Becker. Os colonos – 23 chineses e 21 portugueses – três anos depois ganhariam a companhia de 38 africanos livres procedentes de São Mateus/ES e Sirinharem/PE. O corpo técnico auxiliar da diretoria da Colônia consistia de dois administradores, um escrivão, um médico e um engenheiro.
Em 1857, maltratados e mal remunerados, alguns colonos se rebelaram contra o diretor da Colônia, obrigando a que o chefe de Polícia Sebastião José da Silva Braga viesse de Manaus para apurar a ocorrência, e vários deles foram presos e processados. O empreendimento foi extinto, em 1860, e arrendado a um morador de Serpa; o cafezal abandonado, mais tarde seria vendido em hasta pública ao Seminário Episcopal de Manaus. A maior parte dos africanos estacionada no lago de Serpa abriu roçados e se envolveu na produção e comércio de farinha e no abastecimento de lenha para os barcos da navegação a vapor.
Só depois de decorridos 155 anos da extinção da Colônia Agroindustrial, seria feita justiça aos descendentes dos trabalhadores que atuaram no referido empreendimento – os denominados “Africanos livres da Colônia Itacoatiara”. Os esforços do professor doutor Claudemilson Oliveira e do documentarista Thyrso Munhoz, pautados em pesquisas de campo e em farta documentação técnico-bibliográfica, resultaram na criação do Quilombo do lago de Serpa. Conforme noticiado em 2015, no jornal ‘A Crítica’, de Manaus, ambos
“[…] foram responsáveis pela produção e envio do dossiê sobre esta comunidade à Fundação Palmares, que concedeu aos moradores o título de remanescentes de quilombos. […] Os afrodescendentes da Colônia Agroindustrial Itacoatiara vivem hoje no Quilombo Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa (Diário Oficial da União nº 239, de 10 de dezembro de 2014)’”.
Ano de 1856. Ainda ressentidos com o injustificável rebaixamento da vila, os moradores do distrito de Serpa lutavam com todas as forças para recuperar o seu antigo predicamento e, assim, reconstruir o município. Pelo mapa estatístico da época, sua população correspondia a 2.477 habitantes, sendo 2.425 livres (1.794 adultos e 631 menores) e 52 escravos (38 adultos e 14 menores). Entre os libertos, 1.339 eram homens e 1.086 mulheres. E os escravos, 29 pertenciam ao sexo masculino e 23 ao feminino. Os residentes estrangeiros somavam 110.
No mesmo ano de 1856, o empresário inglês Robert MacCullock, subsidiado pelo governo da Província, instala no paraná da Eva uma fábrica de aguardente de cana. Seu projeto pretendia avançar para a instalação de uma serraria com máquina a vapor de força de vinte cavalos, mas não foi avante. Quanto ao engenho, avaliado em dez contos de réis, a maior safra de cana-de-açúcar, em 1858, lhe propiciaria produzir cerca de 40 pipas de cachaça. Os trabalhos de colheita e moagem eram realizados por índios da nação Mura.
O quadro econômico da freguesia melhorava sempre. Crescia o número de comerciantes e de empresários da indústria extrativa. Segundo os registros da Coletoria de Rendas, em 1855 foram exportados para o Estado do Pará tabaco de corda, café em grãos, cacau, estopa, banha de peixe-boi, breu, castanha, óleos e drogas medicinais, borracha, manteiga de ovos de tartaruga, farinha de tapioca, mixira de tartaruga e pirarucu seco. No exercício seguinte, além dos itens citados, Serpa exportou couros secos e salgados, madeira em tábua e em toras, tijolos, telhas, tartaruga, peles de animais, etc.
Entretanto, a freguesia ralava-se de preocupações para superar o rebaixamento sofrido. No segundo semestre de 1857, eis que os reclamos cívicos de Serpa finalmente chegam à Assembleia Legislativa. Depois de vários desencontros, projeto de lei do deputado provincial José Coelho de Miranda Leão propondo a recuperação do foral de vila vai a plenário, é debatido, votado, aprovado e transformado na Lei nº 74 de 10 de dezembro, sancionada pelo presidente da Província Francisco José Furtado (1818-1870), conforme a anotação abaixo:
Lei nº 74, de 10 de dezembro de 1857.
Eleva a Freguesia de Serpa à categoria de Vila com a mesma denominação, que ora tem.
Francisco José Furtado, Presidente da Província do Amazonas, &.
Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembleia Legislativa Provincial decretou, e eu sanciono a Lei seguinte:
Art. 1º. Fica elevada à categoria de Vila, com a denominação que ora tem, a Freguesia de Serpa, e autorizado o Governo a marcar os limites.
Art. 2º. Ficam revogadas as disposições em contrário.
Mando, portanto, a todas as Autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer que a cumpram e façam cumprir tão inteiramente como nela se contém. O Secretário da Província a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Governo da Província do Amazonas, aos dez dias do mês de dezembro de 1857, 36º da Independência e do Império.
Francisco José Furtado.
Sebastião de Melo Bacuri, a fez.
Noventa dias depois, realizam-se eleições municipais sendo eleitos vereadores: Manuel Joaquim da Costa Pinheiro, Antônio José Serudo Martins, Damaso de Souza Barriga, Manoel Porfírio Delgado, João da Cruz Pinheiro, Raymundo Cândido Ferraz e Agostinho Domingues de Carvalho. Dois deles foram designados para servir como juízes de paz.
O exercício do juiz de paz, conforme a lei correspondente, envolvia a justiça conciliatória e o julgamento de causas cujo valor e/ ou pena não ultrapassasse certos limites, a imposição do termo de bom viver, a manutenção da ordem pública e emprego da força pública, vigiar o cumprimento das posturas municipais, a condução das eleições, enfim, funções administrativas, judiciais e policiais as mais amplas.
Na primeira metade do século XIX, conforme observado pelo pintor e naturalista francês François-Auguste Biard (1798-1882), após visitar Serpa, a bacia do rio Madeira foi intensamente percorrida por negociantes estrangeiros, sobretudo portugueses.
Na manhã de 24 de junho daquele ano deu-se solenemente a (re)instalação da Vila de Serpa – embora sem o prenome Nossa Senhora do Rosário. Ali renascia a sua Câmara Municipal. A cerimônia ocorreu no prédio da Guarda Nacional, à rua Nova, onde, até fins de 1833, funcionou a antiga Câmara/Cadeia Pública. Seguindo as instruções da Lei provincial de 26 de fevereiro de 1858, combinadas com as normas do Código de Vereadores (Lei imperial de 1º de outubro de 1828), o vereador Salustiano de Oliveira, presidente da Câmara de Silves, deu por inaugurada a nova vila empossando os recém-eleitos e proclamou presidente ao vereador Manuel Joaquim da Costa Pinheiro. Este, após congratular com o povo e conclamar seus pares a ajudá-lo na grave tarefa que ali se iniciava, convidou os presentes a assistirem à Missa em Ação de Graças celebrada pelo pároco padre Francisco Benedito da Fonseca Coutinho (1817-1877) e encerrou a sessão.
Competia à nova Câmara o duplo papel de dirigir a administração e encaminhar o processo legislativo municipal. Os edis não eram remunerados, porém, todos exerciam alguma atividade profissional. As sessões eram diárias, à exceção dos finais de semana, feriados e dias santos de guarda. Estranhamente, desde 7 de julho de 1858, a Câmara passou a funcionar na residência do vereador Damaso Barriga, à esquina da Praça da Glória com a rua Formosa, cedida gratuitamente por um ano e, findo esse prazo, o móvel seria alugado por vinte e cinco mil réis mensais.
Com a morte, em dezembro, do presidente Manuel Joaquim, a presidência passou ao vereador Antônio Serudo Martins, efetivado em janeiro do ano seguinte. Na legislatura iniciada em janeiro de 1859 e encerrada em janeiro de 1861, foram promulgadas as Posturas Municipais (texto de quinze artigos pendente de homologação pelo governo provincial); fundada a Companhia dos Pescadores, destinada a abastecer a população desse gênero alimentício; publicada a tabela de preços do Mercado Público; definidas as normas de limpeza pública; e autorizada a confecção da planta topográfica da vila, encomendada ao engenheiro alemão Moritz Becker, mais tarde naturalizado brasileiro com o prenome Maurício; e designada uma comissão para oficializar a denominação dos logradouros públicos.
O restabelecimento da vila justificava os esforços da administração que corria célere para recuperar o tempo perdido. A melhoria dos aspectos urbano e social de Serpa animava a todos. O número de casas no nascente bairro da Colônia aumentara para 36, aí incluídas as oficinas da Agroindustrial encerrado em 1860, e onde o fabrico de telhas e tijolos e a serragem de madeira para exportação continuavam. Disso nos dá conta o médico alemão Robert AvéLallemant (1812-1884) que passou por Serpa em 25 de junho de 1859 e, que, retornando, ficou na vila de 7 a 12 de agosto daquele ano. Aqui trechos do depoimento do renomado cientista:
“[…] Serpa é porto de escala de vapores, o entreposto natural para o grande rio Madeira e até para além das últimas cachoeiras, até onde o comércio pode penetrar. A vila apresenta, inegavelmente, os indícios de uma vida que desperta cada vez mais. Uma fila de casas bonitas, caiadas, cobertas de telhas novas, ostenta muitos armazéns bem arranjados e lojas, não se podendo compreender como podem existir tantos comerciantes ao lado uns dos outros, sem que se vejam fregueses. Esse comércio compõe-se quase todo de portugueses e brasileiros brancos, a maioria dos quais vive com uma índia, de maneira que as crianças mestiças pululam por toda parte. […] Numa grande praça coberta de mato alto, ergue-se uma igreja caiada e coberta com telhas bastante grande para Serpa, que pelo menos tem um aspecto decente e podia servir de modelo às que estão sendo construídas em Tefé e São Paulo de Olivença. Mostraram-me também uma Câmara Municipal com uma Cadeia, uma casa de segunda classe. Fiquei conhecendo igualmente um padre; não pude, porém, descobrir um médico na vila de Serpa, nem na Colônia próxima. Todos os habitantes são homeopatas e conhecem toda a espécie de meios e modos de se curar. Mas centenas de pessoas necessitam dum bom médico, dum cirurgião e dum parteiro, embora este só raramente seja necessário”.
Assim, os melhoramentos em Serpa foram gradualmente aparecendo. Em 1860 fez-se a rampa do porto para desembarque. Tratou-se de construir o novo Cemitério, murado e guarnecido de grades de ferro, denominado São Miguel e implantado na área atualmente ocupada pela Igreja de São Francisco; substituía ao antigo Cemitério dos Índios, nos fundos da velha Matriz, e ligado ao centro da vila através da “Estrada do Cemitério”, um caminho estreito e tortuoso a atual rua Cassiano Secundo.
Cercada de rocinhas, pequenos lotes de agricultura de subsistência, Serpa avançava para os fundos e para os lados, e se beneficiava do movimento comercial impulsionado pela entrada de regatões procedentes do Pará, que iam aos Autazes e ao Madeira negociar com os extratores de borracha. Esse tipo de comércio foi se consolidando ao longo do século XIX e início do século XX. Tal foi a importância da migração portuguesa para a região que, na década de 1860, o Madeira era o único rio do Amazonas a ter um agente procurador do consulado português.
Consoante a historiadora paraense Paula de Souza Rosa,
“[…] Na contramão da historiografia, os imigrantes portugueses da bacia do rio Madeira passaram por diversos processos de mobilidade e interiorização. Chegados a Belém eram enviados para as povoações do interior, como Óbidos, Serpa, Maués, Santarém e outras. Com o tempo, se dirigiam para as áreas de expansão da fronteira extrativista. […] A linha de navegação fazia o trajeto Belém-Manaus, com paradas em várias localidades, até mesmo Itacoatiara (Serpa), ponto de transbordo das mercadorias que seguiam para o Madeira. As mercadorias chegadas ao porto de Serpa eram transportadas das ubás ou igarités […] para os vapores e seguiam para Belém ou Manaus e viceversa”.
Em julho de 1861, o diretor de Obras da Província, João Martins da Silva Coutinho (1830-1889), a mando do presidente provincial Manuel Clementino Carneiro da Cunha (1825-1890), inspecionou a Igreja de Serpa que estava carecendo de reparos. Desde um ano atrás, era vigário interino o padre Fidélis Honório Rodrigues Guedes. A 8 de agosto de 1862, o décimo bispo do Pará dom Antônio de Macedo Costa (1830-1891) realiza sua primeira visita a Serpa. Uma década depois ganharia fama face à sua participação na luta contra a Maçonaria – a célebre Questão Religiosa – desagradando a dom Pedro II que mandou prendê-lo em Belém.
A prática de iluminar ruas em Serpa começou lá pelos idos de 1863. O Acendedor de Lampiões, servidor municipal incumbido de acender as lanternas movidas a óleo de tartaruga, penduradas em postes de madeira plantadas nas esquinas da vila, fazia esse serviço diariamente. Os lampiões só não eram acesos nas noites de luar.
Entre 1862 e 1871, os vereadores Antônio Serudo Martins, Raymundo Ferraz e Damaso Barriga, além do procurador municipal Agostinho Domingues de Carvalho, colaboraram no jornal político e literário “O Catequista”, editado em Manaus. Provavelmente, seus textos referiam temas locais aludindo especialmente sobre a elevação de Serpa à categoria de cidade. Serudo Martins presidiu a Câmara de janeiro de 1859 a janeiro de 1861, de novembro de 1864 a janeiro de 1865 e durante a legislatura de 1865-1869. Por sua dedicação à causa pública, em 1865 foi condecorado por dom Pedro II com a Medalha Imperial de Cavaleiro da Ordem da Rosa.
Em 1864, para trabalhar na agricultura, instalaram-se em Serpa várias famílias bolivianas. Procedentes do Madeira, onde ganharam muito dinheiro no comércio da goma elástica, dividiam-se em grupos: uns montaram propriedades na Costa da Conceição e outros nas proximidades da vila, provavelmente em terras da ex-Colônia Agroindustrial, onde realizaram plantação de algodão e criação de galinhas, porcos e outros pequenos animais lucrativos.
Como ocorria em toda a Província, a economia de Serpa estava fundamentada no serviço de extração e venda de produtos naturais. Assim, estando seus habitantes absorvidos no serviço de coleta, a agricultura era muito decadente, levando à escassez de mantimentos. Os gêneros de primeira necessidade, entre os quais a carne e a farinha, eram adquiridos do Pará. Não havendo progredido a Companhia dos Pescadores, o peixe utilizado no consumo público continuava sendo coletado por nativos cedidos pela Diretoria dos Índios. Não fazia muito tempo a olaria e a serraria da Colônia Itacoatiara haviam sido fechadas.
Face ao Ato da Câmara, de 13 de outubro de 1865, autorizando a contratação de mulheres no Serviço Público, repetia-se em Serpa a rotina criada com a ascensão, na metade do século XIX, do regime Capitalista, em que os empregadores preferiam substituir a mãode-obra masculina pela feminina, “mais dócil e mais barata”. Destarte, algumas mulheres serpenses da época foram admitidas no Setor da Limpeza Pública com o salário diário de quatrocentos réis, abaixo do valor percebido pelos diaristas masculinos, de quinhentos réis diários.
Apesar das dificuldades de comunicação, a Câmara procurava se ligar aos fatos externos mantendo estreita correspondência com as autoridades do Império e da Província. Segundo as atas das sessões de 16 e 18 de janeiro de 1866, o presidente-vereador Raymundo Cândido Ferraz mandou abrir inscrição pública com o intento de arrecadar recursos para conceder uma espada de honra a dom Pedro II, por ter “Sua Majestade marchado para o campo de batalha na Guerra do Paraguai”. A campanha, denominada por seus mentores de “um negócio de tanto patriotismo”, resultou na apuração de 20.500 réis – importância enviada ao Rio de Janeiro, via Manaus, porém, não se teve notícia se chegou ao seu destino. Conforme as atas de 27 e 28 de abril do mesmo ano, a Câmara mandou celebrar Missa em regozijo ao nascimento, ocorrido em 19 de março, do primeiro filho da princesa Leopoldina Bragança (1847-1871), neto e príncipe herdeiro de dom Pedro II. Também o dia 7 de setembro foi solenemente comemorado em Serpa. Nesse dia, somente na iluminação do Paço Municipal foram gastos, com azeite e fio para pavios das lamparinas, 5.598 réis.
* Capítulo Decimo Sétimo do livro As Pedras do Rosario do Autor.
Obs. Este artigo teve suprimidas suas notas. A quem interessar a leitura do texto original, completo, pode acessar o link a seguir. https://www.franciscogomesdasilva.com.br/obras-literarias/