O Brasil é, já foi dito milhares de vezes, o país do futebol, das belezas naturais e do carnaval. Alguns preferem dizê-lo o país do samba, mas penso, com o perdão necessário, que isso ameaçaria desconsiderar o carimbó, o axé, o frevo e o maracatu, que no Pará e no nordeste brasileiro fascinam centenas de milhares de residentes e de visitantes. É também o lugar de fortes manifestações folclóricas, como o derramar de bençãos e de encantos que Garantido e Caprichoso entregam ao mundo no último final de semana de junho, mês em que Pastorinhas, Bumba-meu-boi e Cirandas fazem alegria e beleza e distribuem crenças e resgate de tradições.
Oficialmente, há 3 dias reservados ao Carnaval – os que antecedem a quarta-feira de cinzas, quando a igreja católica inicia o tempo da quaresma que conduzirá à semana devotada à lembrança do sacrifício e da vitória de Jesus ressuscitado, no domingo de páscoa – mas tão logo começa o ano o Brasil passa a viver o clima da alegria do chamado tríduo de Momo, que na Bahia, como em Pernambuco, por exemplo, estende-se por toda uma semana, para premiar com beleza inigualável o tempo dedicado aos ensaios, às formulações, à produção de fantasias, de abadás, de carros alegóricos, de grandes bonecos, de trios elétricos e de muita, muita entrega e disposição para a festa. Bem por isso há até quem diga, em reconhecimento, por certo, à importância cultural desse tempo, que no Brasil o ano só começa depois do Carnaval.
Não é coisa de agora. Em Manaus, ainda na segunda metade do século XIX, anos 1850, já se realizavam festas de carnaval, tipo a da Sociedade Recreativa Amazoniense na residência do Capitão Gabriel Guimarães, como as que passaram a fazer os barões da época áurea da borracha, em seus próprios casarões e em clubes locais, naturalmente que restritos à elite de então, mas há registros históricos de diversão dos que ali não chegavam e que brincavam nas ruas ou nos becos no que terminou ficando conhecido como blocos de sujo. Depois vieram os corsos, como o da Cervejaria Miranda Corrêa, fabricante da XPTO, cerveja amazonense que ainda foi degustada por muito tempo aqui. E era ali que os barões desfilavam fantasias normalmente importadas da Europa em carros cuidadosamente enfeitados e de lá distribuíam confete, serpentina e perfume que jogavam no público que os ia assistir. Os corsos foram desaparecendo com a debaque econômica, mas o povo continuou brincando nos três dias nas ruas, nos becos e, principalmente, na Avenida Eduardo Ribeiro, com bandas militares animando a festa, enquanto a Praça 14 de Janeiro fazia tradição de danças e músicas afro-brasileiras, em ritmo que hoje encanta o mundo. Por essa época, o então jovem Lourenço, meu pai, criou, com muitos amigos, o Brigue Independência, que mostrava na Avenida evoluções próprias da vida dos marinheiros, em torno de uma miniatura de navio cuidadosamente construída e conservada como as relíquias de hoje.
Em 1938, o ex-diretor do Olímpico Clube Cândido Cumaru criou a Kamélia com uma pequena boneca negra, comprada nas lojas “4 e 400”, depois LOBRÁS, na esquina das avenidas Eduardo Ribeiro e Sete de Setembro, trajada de baiana e que desfilava pela cidade presa a um galho de árvore levando atrás de si enormes cordões de alegres brincantes. Depois, a Kamélia fez-se uma boneca enorme, de mais de dois metros de altura, mas continuou vestida de baiana e até hoje é símbolo de nosso carnaval de rua.
A festa da Kamélia, depois de longo desfile pelas ruas do centro da cidade, ocorria na segunda-feira gorda nos salões do velho Olímpico Clube, na esquina da rua Leonardo Malcher com a avenida Epaminondas, e os foliões, depois de dançarem marchas e sambas, dali saíam, ainda em festa, com a banda em animação contagiante, até chegar à Praça da Polícia, em frente ao Colégio Estadual, onde se juntavam aos que haviam encantado a noite no baile de gala do Rio Negro Clube, ainda existente na avenida Epaminondas, em frente à Praça da Saudade. Muitos eram os que preferiam curtir a ressaca e o cansaço no Mercado Adolpho Lisboa, tomando mingau de milho ou de banana, ou dos dois misturados com tapioca, ou ainda saboreando caldo verde quentinho e forte, “para repor as energias”, como se dizia então.
O Olímpico mudou sua sede para a esquina da Constantino Nery com a Kako Caminha, mas a Kamélia continuou encantando com suas festas e com sua capacidade de enternecer corações e aproximar paixões, muitas que permaneciam, outras que se resumiam à quadra momesca. Na 3ª feira, para encerrar o Carnaval, a festa era no Ideal Clube, que os barões da borracha construíram na avenida Eduardo Ribeiro, próximo ao Teatro Amazonas, e que se manteve recebendo a elite local; no Nacional, ali na Saldanha Marinho, perto do Cine Odeon; no Cheik Clube que, antes de passar para a esquina da Ramos Ferreira com a Getúlio Vargas, ficava nos altos de prédio situado nos fundos do hotel Amazonas, na rua Teodoreto Souto, fazendo esquina com rua Marcílio Dias; no Clube dos Barés, na Miranda Leão, próximo da Faculdade de Direito, nos altos de um prédio cuja escada às vezes ficava difícil para alguns brincantes que exageravam na “cuba libre” do “rum Bacardi” que se misturava à coca cola ou ao guaraná, assim como aos que se davam ao perigoso prazer de inalar lança-perfume, substância tóxica posta em embalagem que permitia jatos usados para incomodar os olhos em que eram lançados e que faziam ardência como pimenta. E também havia o Bancrévea, na Getúlio Vargas, e a Associação Atlética do Banco do Brasil, AABB, na Marechal Deodoro, depois transferidos ambos para a hoje denominada avenida Torquato Tapajós, ali por perto do Clube Municipal.
Nos bairros a alegria não era menor, fosse no clube de Educandos, próximo ao Gonçalo, no Ypiranga, na Cachoeirinha, perto do que hoje é o prédio da Escola de Saúde de nossa UEA, onde também ficava o Madureira, ali pras bandas da Ipixuna, no Fast Clube, do Boulevard, hoje avenida Álvaro Maia, em cujo futebol pontificaram por longo tempo os irmãos Piola, no CASSAM, em frente ao aeroporto de Ponta Pelada que hoje é administrado pela Aeronáutica, ou no São Raimundo e no Sul América, cujos salões eram pequenos para receber em festa tantos foliões da localidade ou dos bairros da Glória, de Santo Antônio e até de Aparecida, muitos dos quais, como fiz algumas vezes, usavam a catraia (canoa a remo servindo como transporte coletivo) para fazer a travessia do rio que ainda não havia sido facilitada com a ponte afinal construída bem próximo do prédio da Cervejaria, ligando as duas comunidades. E também havia o mingau da mãe da Nonata, do Ricardo e da Etelvina no mercadinho que ficava logo depois das sedes dos dois clubes, já chegando no “porto” das catraias.
Os blocos de sujo continuaram desfilando na Eduardo Ribeiro, até que Robério, no governo de Paulo Nery, meu professor de Direito Penal na primeira faculdade de Direito do Brasil, presidindo a Empresa de Turismo transferiu a festa para a avenida Djalma Batista, organizando e profissionalizando o desfile de blocos e de escolas de samba, feição nova do carnaval de rua, incentivando a organização que se fez crescente, como a do Bloco das Piranhas, que ainda hoje atrai milhares de brincantes, tal como se dá com a Banda do Boulevard – criada por mestre Cleomenes Chaves e seus filhos professor Maneca e doutor Cláudio – ou a Banda da Difusora – concebida por Fezinha, irmã querida de Josué Filho e de Carminha, mãe dos radialistas Daniel e André – também já incorporadas solenemente a nosso carnaval.
Nos idos de 1990, Vivaldo Frota, que assumiu o governo do Estado substituindo Amazonino, então candidato ao Senado, construiu o Sambódromo, patrimônio do samba de nossas Escolas, ao lado do qual Eduardo Braga plantou, organizadamente, os barracões onde os artistas fazem brotar de suas almas privilegiadas o encanto do desfile do sábado gordo. Depois, em dois dias, a pista dali se faz sede de festa folclórica com o Carnaboi, inventado pelo Omar Aziz em governo do Amazonino e executado por Robério, Secretário de Cultura, como forma do que parece preparar a beleza de junho no Bumbódromo de Parintins.
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