Manaus, 27 de julho de 2024

Cinquenta e seis anos depois…

Compartilhe nas redes:

Quando o sol de fim de tarde iluminava as rosas do meu pequeno jardim de varanda, caiu sobre mim uma saudade imensa, daquelas que revolvem o mais profundo do âmago e provocam lágrimas sentidas que vertem do coração. Não alagam os olhos pois escorrem pelo interior da memória. Na verdade, essa saudade vinha remoendo desde cedo e eu a desviar-me dela, dando-me a fazer coisas muitas e variadas o dia todo.

Cinquenta e seis anos se passaram daquela noite de intensas expectativas e emoções. Estávamos – meu pai, minha mãe, irmãos e eu aos 14 anos -, em um terreiro que havia quase à porta da sede do antigo Grupo Escolar “Plácido Serrano”, na qual funcionará o Grupo Escolar “Antônio Bittencourt”, em que se realizavam as provas do vestibular para a segunda turma de estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Amazonas.

Havia pouca luz na rua, como de resto em toda a cidade. O pequeno lugar era nosso conhecido, afinal, tratava-se da escola na qual minha mãe lecionara por muitos anos e os irmãos mais velhos haviam estudado. Nas proximidades, o campo da Coreia, no qual João e José haviam demostrado habilidades e paixão pelo futebol.

O pai e mestre dos mestres de nossa família – Lourenço da Silva Braga – mãos acomodadas na costa, como era de seu costume, caminhava em silêncio religioso de um lado para o outro. A professora e mãe – Sebastiana dos Santos Pereira Braga – que aprendera Física e Química, sozinha, unicamente para preparar a sua menina querida para essas provas e com ela invadira noites e madrugadas na sala de jantar da casa da Av. Epaminondas, n.º 736, para superar as dificuldades de quem não estudara essas disciplinas no curso Pedagógico do IEA, mantinha-se firme. Confiante, a mãe e mestra, balbuciava suas orações. Os irmãos – João, José, Lourenço, eu e Maria Justina, contávamos os segundos conforme as palpitações de nossos corações.

Era a prova decisiva. Naquela noite saberíamos se a nossa Ana Maria conseguiria realizar seu sonho de menina estudiosa e disciplinada: estudar Medicina e tornar-se médica. Por mais que conversássemos entre nós em voz trêmula e em quase sussurro e andássemos de um para outro lado, as horas pareciam não passar. O que pensávamos é que, lá dentro, a nossa Nina se debatia em responder questões formuladas por professores exigentes, criteriosos e justos.

Havia outros jovens na mesma luta. Era preciso formar médicos para atender a população amazonense, dizia o governo. Era preciso fortalecer a Universidade, anunciava o reitor. Era preciso confiar em Jesus, dizíamos uns aos outros, como a transmitir-nos força e fé ao tempo em que confiávamos na inteligência e estudos sempre elevados de nossa irmã.

Eis que, depois de longo tempo saíram os primeiros concorrentes. Jovens ainda nervosos. Outros esperançosos e falantes a contarem das perguntas e respostas. Se a saída de alguns deles deu-nos alívio e pareceu-nos que estivesse terminando a longa espera que os relógios não conseguiam assinalar, de outro lado a inquietação aumentava porque Ana Maria permanecia na sala de provas: a batalha da solidão entre o certo e o errado.

Envoltos em tensão crescente, inesperadamente ela apontou na porta dos fundos do prédio. Corremos em romaria para o abraço carinhoso e solidário, como fizéramos quando ingressara para iniciar a prova, mas, agora, um pouco aliviados. Seu semblante, embora ainda traduzindo nervosismo, era de confiança. Nossos pais vibravam de alegria. O fato é que, depois de horas quase intermináveis, diante de uma Ana Maria convicta das respostas formuladas, sentimos que estava começando a caminhada da médica que se dedicaria a cuidar e salvar crianças pobres e carentes. E assim foi por muitos anos.

Nestes cinquenta anos de sua formatura, do ponto de paz que lhe foi reservado para novos aprendizados, há de relembrar as modinhas e paródias que criava na Faculdade, enquanto cuida de crianças, entre anjos e arcanjos, como estrela reluzente a espargir e a auferir amor, confiando na evolução espiritual como as crianças confiam que a luz do sol alimenta as rosas de todos os jardins.

Visits: 83

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques