Manaus, 22 de novembro de 2024

Coquetel de formicida

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*J.R.Guzzo

“O problema é que a contribuição legal é feita basicamente com dinheiro ilegal. Dinheiro que vem da corrupção. A flor do mal está na origem contaminada das doações – se elas são fruto do crime, a coisa toda vai para o diabo. ”

Este país, a cada dia que passa, vai se tornando um competidor favorito na disputa do Campeonato Mundial das Discussões sem Pé nem Cabeça. A contribuição mais recente das nossas altas autoridades para esse novo título nacional é o palavrório enfezado, tolo e pretensioso que se armou em torno da seguinte questão: a campanha pela reeleição da presidente Dilma Rousseff foi feita dentro ou fora da lei? A resposta, pelo jeito que tomaram as coisas até agora, é que não pode haver resposta, pois não vale fazer a pergunta. Segundo o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, o homem que deveria procurar saber se aconteceu ou não aconteceu algo de errado na história, “não interessa à sociedade” discutir essas “controvérsias”; é inconveniente, a seu ver, que a Justiça se meta nisso, pois a eleição já foi, os vencedores devem “usufruir as prerrogativas de seus cargos” e os derrotados devem se preparar para a próxima. Não será possível, assim, saber se houve ou não houve algum crime – pela vontade da Procuradoria, não deve haver investigação, sem investigação não há prova e, sem prova, ninguém pode dizer que houve crime. O passado passou. Ficam arquivadas as dúvidas. É melhor não fazer perguntas, pois há o risco de se encontrar respostas.

A campanha para a reeleição de Dilma Rousseff e do seu entorno é uma viagem completa no trem fantasma da política brasileira. Apareceram a empregada doméstica que, pela contabilidade oficial, recebeu 1,6 milhão, mas não sabe que recebeu, o motorista que é sócio de empresa prestadora de serviços à candidatura oficial, o pobre diabo que é promovido a empresário para passar notas fiscais com temperatura de 10 graus abaixo de zero. Há uma indústria gráfica que recebe mais de 20 milhões de reais da campanha, mas não tem máquinas gráficas, nem funcionários, nem sede social. Há de tudo – e ao mesmo tempo não há nada, pois, sem uma decisão judicial, os fatos que ocorreram não produzem efeito algum. Por via de consequência, como diria o doutor Aureliano Chaves, não se pode dizer que a presidente é culpada e não se pode dizer que é inocente; ficamos apenas com uma discussão de hospício. Já seria bem ruim se a questão ficasse só nesse porre mental, mas é pior. Antes e além da rixa entre a PGR e a Justiça Eleitoral, o que existe aqui é um caso para a vara de falências do mundo moral.

É bem simples. Todos falam, falam e falam, e ninguém toca no ponto de onde realmente vem o curto-circuito: como pode haver limpeza numa campanha presidencial que recebe contribuições oficiais, contabilizadas e pagas em moeda corrente, de empreite iras de obras públicas, fornecedores do governo e toda a tropa de empresas que dependem de licenças, autorizações ou favores governamentais para sobreviver? Dá para levar a sério, sinceramente, o argumento mais sagrado de todos os candidatos a algum cargo eleitoral quando lhes perguntam quem financiou sua campanha? ”Ah, bom, a doação que recebemos foi perfeitamente legal”, dizem eles. “Está tudo declarado, direitinho. A lei permite. Qual é o problema?” O problema é que a contribuição legal é feita basicamente com dinheiro ilegal. Em português claro: dinheiro que vem da corrupção. Esqueçam-se a empregada, o motorista, a gráfica etc. A flor do mal está na origem contaminada das doações – se elas são fruto do crime, a coisa toda vai para o diabo. Eis aí o verdadeiro coquetel de formicida que envenena as eleições brasileiras.

No caso da eleição presidencial de 2014, a campanha de Dilma Rousseff recebeu dinheiro de empresas dirigidas por criminosos processados e condenados por corrupção ativa na 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. Não há mais nada a provar quanto a isso: o processo tem 28 réus confessos, a maioria deles ligada a empreiteiras de obras públicas que declararam ter feito doações à candidata oficial. Só uma delas, a Camargo Corrêa, vai devolver 700 milhões de reais ao Erário, após reconhecer que ganhou ilicitamente essa importância, pelo menos, em seus contratos com o governo. Será que Dilma não sabia nada sobre a origem dos 350 milhões de reais que gastou para se reeleger? Levou um susto quando soube? Nunca ouviu falar em empresas que roubam do governo e fazem contribuições de campanha? Naturalmente, não é só o PT que age assim – todos os seus adversários se servem dessa mesma rapadura. Mas os adversários não foram eleitos para a Presidência da República em 2014 – o problema concreto é de quem está sentado, hoje, num cargo ganho com a ajuda de dinheiro que veio do crime.

*Jornalista. Colunista da Revista Veja. Artigo na Edição nº 2442 de 9/09/2015.

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