Conta a memória jurídica que o rei Frederico II da Prússia implicou com um moleiro para que derrubasse um moinho que atrapalhava a sua visão da paisagem a partir de seu Palácio. Desafiando o poder do rei, o moleiro não aceitou, desafiou a ordem real e, ao mesmo tempo, afirmou a sua crença na justiça: “Vossa Alteza é que não entendeu: ainda há juízes em Berlim”. Estamos em uma Europa de 1745, nos primeiros floreios de um Iluminismo nascente em que se discutia o excesso do absolutismo monárquico e o surgimento de uma sociedade regulada por lei. Todo estudante ou bacharel em direito, mesmo aqueles que assistiram poucas aulas da disciplina Filosofia do Direito, sabem essa história de cor e propalam erudição ao contá-la nos convescotes sociais da categoria. E nós, depois de mais de doze horas ouvindo o Senhor Ministro Luiz Fux expor a seus pares e para o Brasil no julgamento dos réus na Ação Penal de Tentativa de Golpe de Estado e outros crimes, passamos até a duvidar que exista juízes em Brasília, sede de nossa Suprema Corte. Data vênia, eles existem, mas alguns estão acuados por razões que pouco ou muito conhecemos, enquanto outros, armados com os mais primorosos compromissos com a Constituição e a sagrada missão de fazer justiça, perseveram no bom caminho!
Os demolidores de moinhos continuam conspirando contra os direitos fundamentais dos que tem pouco ou nenhum poder, enquanto magistrados se acovardam sob a sombra da toga para passar pano sobre os malfeitos, que, bem julgados pelas Cortes, serviriam de exemplo para os que duvidam da justiça. Porém, o mundo não é assim! As mais de doze horas de leitura corrente do voto de um juiz do nosso STF são “água na fervura” e não sou eu que digo: é a internet com suas redes sociais, a mídia convencional e os portais de informação e de análise política que nos dizem. Todos foram condenados. No entanto, fica a mácula. Não da falta de unanimidade, pois que esta continuará burra, mas pelo “juridiquês encantador” de doutrinas que envelheceram mais que os moinhos, pois guardam um conceito retrógrado da democracia liberal, que pouco fala em dignidade dos desvalidos e muito exalta os sabidos, negacionistas das desigualdades sociais.
Só “loucos”, no sentido que se pode aplicar o termo aos interditados de nossa sociedade, e aqueles que guardam a convicção mais firme do que é “imensamente humano”, independente do tilintar dos interesses pessoais, podem nos dizer o que nos acontecerá nesses tempos estranhos, quando discursos propositalmente fora da ordem tentam nos convencer que o mundo é assim mesmo e os vencidos não terão mais vez e que devem naturalizar as transgressões e o autoritarismo em benefício da “paz social”. Loucos que acreditam em juízes e juízes loucos que fazem justiça, mesmo contrariando os soberanos e, no nosso caso, a uma casta que castra todos os ímpetos dos que pugnam por um mundo melhor e podem nos salvar das armadilhas impiedosas dos julgamentos espetaculosos, mas enganadores. Michel Foucault (Aula inaugural no Collège de France,1970) chama a nossa atenção, tanto para ordem quanto para o poder dos diversos discursos: “Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos”.
Portanto, é preciso ter muito cuidado. Por trás desses discursos ritualísticos, existe poder, poder que não é nosso, mas dos que verdadeiramente mandam ou querem mandar e nos proibir de pronunciar o nosso próprio discurso, nos calar, calar para sempre, forma cruel de dominação!
Views: 0