Manaus, 12 de dezembro de 2025

Descobrindo o patrimônio Cultural de Itacoatiara

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*Eder de Castro Gama

APRESENTAÇÃO

No período das festas juninas no ano de 2019, presenciei com minha sobrinha Manú de 4 anos de idade, a matança do boi-bumbá Tira Fama em um campinho de futebol próximo a nossa casa no bairro de Santo Antônio na cidade de Itacoatiara. A matança, é a última apresentação do alto do boi que culmina com sua morte, momento em que ele é preso e ateado fogo pelo dono da Fazenda, o Amo do Boi, para poder no ano vindouro ressuscitar com todos os seus personagens e voltar a brincar nas ruas da cidade. O Tira Fama, é uma brincadeira que existe na cidade de Itacoatiara desde as décadas de 1950 e 1960, conhecimento que vem sendo passado de pai para filho e consta no Inventário de Reconhecimento do Complexo Cultural do Boi-bumbá e Médio Amazonas e Parintins desde 2018 no IPHAN.

No final de 2019, o mundo foi assolado pela Pandemia da COVID19, manifestando-se com toda a força nas cidades da Amazônia, exigiu-se como medida de contenção do avanço da infecção o distanciamento social, portanto, os setores da cultura, foram os primeiros que pararam para cumprir as determinações de segurança em saúde e o último setor a retomar suas atividades com fim da Pandemia. Como era de se esperar, todas as manifestações de cultura popular foram impactadas ao exemplo da brincadeira do boi-bumbá Tira Fama, que até o presente momento em 2024, não retomou suas atividades, mesmo que o fim da Pandemia foi decretado em 2023. Em conversas informais com o Sr. Evaldo o atual Amo do Boi, herdeiro desta tradição familiar, diz que tem dificuldades financeiras para “botar o boi na rua”, pois requer altas somas em dinheiro para confeccionar as fantasias, o desinteresse dos adolescentes e jovens para brincar de boi e falta de apoio das autoridades públicas locais para valorização nas escolas.

Diante do drama vivenciado pelo Boi-bumbá Tira Fama, a falta de políticas públicas locais de valorização do Patrimônio Cultural Itacoatiarense com a deterioração dos bens edificados da cidade, ausência de política de tombamento, destruição dos sítios arqueológicos e a desconexão de uma Educação Patrimonial dos parâmetros curriculares, apresento o livro Descobrindo o Patrimônio Cultural de Itacoatiara, ganhador do Prêmio Fomento as Arte e Cultura da Lei Paulo Gustavo do Estado do Amazonas (Edital 07/2023 CONEC). É um exercício reflexivo que surge da necessidade de criar um material informativo e claro sobre as premissas do patrimônio cultural e suas principais definições frente ao conhecimento que vem sendo produzido sobre o tema na cidade de Itacoatiara. O público alvo é o infanto juvenil, porém pretende abarcar todas as idades, que interessem em descobrir o patrimônio cultural Itacoatiarense, seja, lendo o livro ou pintando as ilustrações que foram pensadas e feitas para que o leitor possa apropriar-se do livro e ser coadjuvante no conhecimento deste patrimônio ao colorir ao seu modo.

Este livro não é mais uma cartilha sobre Patrimônio Cultural, mas é uma aventura que o personagem Estevão de 8 anos de idade, morador da comunidade Itapeaçú distrito de Urucurituba no médio Amazonas, vem para cidade de Itacoatiara para retomar seus estudos morando com a família do seu tio (realidade de muitas famílias do rincão Amazônico). É na escola, na Semana do Patrimônio Cultural que Estevão compreende o significado das lendas e tradições, dos artefatos arqueológicos que sempre encontrou na comunidade em que vivia, da arte rupestre que encontrou no porto assim que desembarcou na cidade e dos prédios históricos que sempre foram uma incógnita na paisagem urbana de Itacoatiara.

Destaco, que as experiências vivenciadas pelo protagonista Estevão, foi baseado nas histórias que ouvir do meu pai cujo nome era Estevão Gama vitimado pela COVID-19 em janeiro de 2021, das aventuras que viveu na cidade de Itacoatiara e das relações mentais que fazia com o seu lugar de origem. Muitas passagens vivenciadas pelos personagens neste livro, são baseadas em minhas experiências com a cidade de onde sou natural, da minha família e de amigos. Alguns relatos, como de monumentos históricos, ao exemplo do Mercado de Itacoatiara (construído em 1908-1912 e demolido em 1978) foi pautada em lembranças de pessoas que vivenciaram o seu cotidiano nele, é um exemplo de como o desconhecimento sobre a preservação do patrimônio edificado de uma cidade induzem as autoridades ao erro em busca de uma “arquitetura moderna”. E da lembrança do Matadouro Municipal (1919), que hoje tornou-se o Centro Cultural Velha Serpa, que pode ser tomada como exemplo de como a relação entre o público e uma Fundação Privada, quando bem pensada e articulada, podem servir para preservar o patrimônio edificado de uma cidade. Saliento que não falo de todos os patrimônios culturais da Itacoatiara, como por exemplo, do Festival da Canção de Itacoatiara (FECANI), mas poderá ser descrito em futuras publicações. Ressalto ainda, que alguns diálogos entre os personagens, pretende refletir noções presentes na sociedade, mas que no decorrer do aprendizado escolar, vão sendo desmitificado, desnaturalizado, como por exemplo, a terminologia índio, que passa a ser indígena atendendo reivindicação e auto definição dos povos originários.

Portanto, venha descobrir o Patrimônio Cultural de Itacoatiara, juntamente com Estevão e sua turma na construção de um pensamento crítico e reflexivo sobre si e o mundo na qual está inserido, atento ao convívio social, amizade, respeito as diferenças de cor e gênero, capacidades motoras e intelectuais e cooperação para a preservação dos bens culturais de Itacoatiara.

PREFÁCIO

Um dos principais desafios da política de preservação do patrimônio cultural brasileiro, é a participação efetiva daqueles (as) que interpretam e selecionam seus bens culturais, portadores de referências à identidade e memória de diferentes grupos formadores da nação. As medidas de gestão, proteção, difusão e salvaguarda dos bens culturais não diferem dessa noção, e não podem ser ações concentradas nas mãos de técnicos e especialistas de instituições públicas que atuam nessa política pública, mas deve ser, sobretudo, a responsabilidade compartilhada entre cidadãos e instituições públicas na defesa e proteção de seus patrimônios culturais. É o exercício da cidadania e a defesa de valores identitários, de direitos à cultura e à memória social.

A obra, que ora o amigo e Itacoatiarense Eder de Castro Gama nos presenteia, é arraigado desses pressupostos. Apesar de estarmos diante de um livro de um grande intelectual, especialista da cultura popular e folclore amazônico. Ele consegue na linguagem literária, ao mesmo tempo revelar suas próprias experiências e relações nos territórios e lugares dos patrimônios na sua cidade natal, dialogar com dados técnicos e de pesquisas, sem perder a ludicidade, mas, mais do que isso, consegue transbordar a si mesmo e com maestria, faz ressoar através dos personagens outras vozes e narradores Itacoatiarenses. Os acontecimentos e conhecimentos produzidos e observados, seja por acadêmicos e Mestres (as) da cultura, trabalhados no texto, dialogam e proporciona ao leitor, acesso à uma viagem no tempo, no espaço, e principalmente notar o quanto as riquezas do patrimônio cultural em Itacoatiara fazem parte da formação histórica, econômica e cultural daquele lugar. Assim, como permitem observar que todos estes aspectos estão vivos e ajudam acessar diferentes significados coletivos das referências culturais no presente.

Este livro, é então um instrumento de preservação, de salvaguarda e de educação patrimonial. Ouso ressaltar, que cumpre um papel social e político que muitas publicações feitas no âmbito da política patrimonial sobre bens culturais, não conseguem, pois não raro, resumem-se em materiais de linguagem para poucos e parecem ser feitos para engrossar prateleiras de livros de cunho exclusivamente acadêmicos. Se estamos falando de política pública de preservação e salvaguarda, nada melhor que toda forma de registro e documentação seja polifônica, relacional, carregada de sentido para àqueles que produzem, interpretam, selecionam, transmitem, e fundamentalmente que seja instrumento para fortalecimento da identidade cultural, promovendo direito às manifestações culturais, aos modos de fazer e fruição dos lugares do patrimônio cultural.

Ganhamos uma ferramenta de uso aos propósitos da política patrimonial e mais que isso, Eder Gama entrega um primoroso roteiro criativo aos docentes e comunidades escolares de Itacoatiara, como proposta para fazer, tanto atividades de educação patrimonial, em seu caráter participativo e dialógico, e não meramente instrutivo. Como também abre caminhos para projetos interdisciplinares, reunindo em torno do tema patrimônio cultural, os componentes curriculares que potencialmente se articulam. Desejo, que todos estudantes tenham uma excelente, divertida e rica viagem nas curiosidades e conhecimentos apresentados nas páginas deste livro. E por meio destes caminhos, percebam-se pertencentes e vinculados aos valores do patrimônio cultural Itacoatiarense. Viva a diversidade cultural, viva ao patrimônio cultural brasileiro!

Manaus, 29 de julho de 2024.

Mauro Augusto Dourado

Antropólogo do Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional –IPHAN/ Superintendência Amazonas; Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGSCA/UFAM; Doutorando em Antropologia Social – PPGAS/UFAM.

INTRODUÇÃO

DO MERGULHO PARA ESTUDAR

NA CIDADE GRANDE

Deitado sobre a mesa, localizada em cima da casa de máquinas do barco que saiu de Itapeaçú, para cidade de Itacoatiara, no Estado do Amazonas, está o menino Estevão de oito anos de idade. Com os dedos entrelaçados debaixo da cabeça, com as pernas cruzadas e ainda de cueca molhada, o menino pensava em todo o acontecido, momentos antes do seu embarque, viagem que mudaria sua vida para sempre.

Olhando os últimos raios de sol, e as primeiras estrelas que despontavam ao longe, por meio à mata perfazendo toda a curva do rio, Estevão pensava ansiosamente como seria sua moradia na cidade grande, desde quando seu tio Zé professor renomado da cidade de Itacoatiara, visitou sua família em um momento festivo na festa de São Sebastião, padroeiro da sua comunidade. Durante um grande almoço envolvido por muitas pessoas da “terra do limão” na casa do pai de Estevão o senhor Juquinha irmão de seu tio Zé. O senhor Zé, ao observar toda família de Juquinha no total de nove pessoas, sendo Estevão o filho mais velho entre os três homens, além de suas quatro irmãs. Perguntou para mãe de Estevão a Dona Maria:

– Maria você deixa seu filho Estevão morar na cidade com minhafamília? Ele já está ficando “porrudinho”, tem oito anos de idade, já é momento de avançar nos estudos, aqui já deu o que tinha que dá!

Maria cruzou olhares com seu esposo Juquinha e com um aceno de cabeça Juquinha concordou e Dona Maria respondeu:

– Zé! Este menino vai te dar trabalho! Você já tem sua famíliapara sustentar, além do mais, tudo que a gente planta aqui dá. E serve para nos alimentar. Ele, nos ajuda bastante, aqui vamos nos virando. Estevão observava muito atentamente e, com a boca cheio de farinha falou: “Deixa mãe! O papai já concordou! Né pai?! Juquinha coçando a cabeça disse:

– Maria é importante que o nosso filho estude, tenho muitoorgulho de meu irmão Zé, ele é professor na cidade grande, e não quero que o Estevão seja apenas um agricultor, mas tenha possibilidades de estudar. As outras crianças ainda estão pequenas e não chegou o momento delas, agora é a hora dele. Além do mais ajudaremos como puder, mandando farinha, macaxeira e peixe. O que você acha Zé?!

– Olha aí Maria! Está tudo certo então! Quando for na metade doano, lá pelo mês de junho vocês enviam o Estevão pelo barco da linha, eu o recebo lá no porto da cidade. Disseram sim, concordando com a cabeça Maria e Juquinha. Neste momento, Estevão correu pelo terreiro de sua casa gritando de alegria que iria morar com seu Tio Zé e voltar a estudar.

Ainda perdido em pensamentos, Estevão pensava em todos os momentos vividos com sua família antes de iniciar a viagem de barco para Itacoatiara. Lembrou na época da cheia do Paraná de Itapeaçú brincava com seus amigos de escorregar de cima do barranco até a beira do rio, de esconde e esconde entre as plantações de cacau do seu pai, de apostar corrida da “terra do limão” até a escola da vila, das pescarias com seu pai e dos momentos de afago com sua mãe na hora de catar piolhos.

No dia da viagem, Estevão acordou cedo, ajudou seus pais nas tarefas do dia, brincou com seus irmãos e deu muitos beijos na sua irmãzinha de um aninho de idade. No período da tarde, todos seus amigos se reuniram no porto da casa de Estevão para se despedir. Afinal, o barco passaria por volta das 17 horas subindo o rio e faria uma parada apenas se acenassem com um pano branco indicando que tinha gente para embarcar.

Enquanto esperava o barco, Estevão brincou de pira (pega-pega) com seus amigos e estava ficando todo suado, a todo momento sua mãe dizia para se comportar, pois viajaria todo sujo e fedendo. Após todos acenarem com um pano chamando o capitão do barco que vinha ao longe no meio do rio. Iniciou-se a excitação de Estevão para o momento do embarque. Seus pais com lágrimas nos olhos o aconselhava para se comportar e ser obediente na casa do seu tio na cidade grande. Além de respeitar as pessoas adultas e professores da escola.

Após a embarcação atracar no porto, Estevão despediu-se de todos seus familiares e amigos, abraçando um por um. Com sua maleta de pau contendo poucas roupas e sua rede. Subiu na prancha da embarcação com tanto entusiasmo que acabou entrelaçando suas pernas e escorregando para rio, tomando um baita tombo com mala e tudo, que causou grande preocupação para os adultos que viram a cena, com galhofas e gargalhadas faziam as crianças que presenciaram o momento.

Desenho de uma pessoa

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Como Estevão aprendeu a nadar desde que começou a andar, não se deixou intimidar, de pronto pegou sua mala que boiava no rio, foi ajudado pelos tripulantes do barco, subiu e seguiu viagem. O Capitão falou alto para todos que viam a cena que estava tudo bem, que ele cuidaria do menino. E acenando todo molhado Estevão despediu-se de todos.

O dia já estava claro, o Capitão do barco mandou servir o café pois logo chegariam a cidade de Itacoatiara, já com as roupas enxutas e todo arrumado, Estevão esperava o momento que avistaria toda orla da cidade. Depois de aproximadamente 12 horas de viagem, o menino deslumbrava-se com uma quantidade enorme de navios que estavam ancorados em frente a cidade, além de um vai e vem de barcos de passageiros subindo e descendo o rio, canoas de pescadores chegavam de todos os lugares, com barcos abarrotados de peixes de todas as espécies. Ele passou a ver também, os primeiros portos que margeavam toda a orla, com barcos ancorados de todas as cores e tamanhos. Perto do Capitão, perguntou:

– Que pedras são estas em frente a cidade onde tem um montede pescadores com suas canoas?

– Menino, este é o porto do Jauary, estas pedras existem desdequando o mundo é mundo e nelas tem marcas e desenhos de caretas deixadas pelos índios, os primeiros moradores desta região. Agora servem apenas de embarque e desembarque para os pescadores que chegam de manhã e de tarde com os barcos e canoas cheios de peixes, negociando venda com as pessoas da cidade. Disse o Capitão.

– Olha tem um monte de menino pulando das pedras, algunsestão pulando daquela prainha e estão descendo o rio até o monte de pedras perto d’aquela escadaria, falou Estevão observando a criançada. O Capitão respondeu que os meninos são de toda a cidade, mas principalmente do bairro do Jauary, eles pulam de todas as partes, da orla da cidade, de manhã e a tarde.

– Aquela prainha é a praia do pecado, eles também pulam dotrapiche, aquele porto grande com tábuas onde param os barcos de comercio que carregam e descarregam as mercadorias da cidade, pulam também daquele porto, e do porto do supermercado do Nêgo das Pedras onde tem aquelas escadarias. Porém é importante ter muito cuidado ao mergulhar nestas águas, muitos curumins já desapareceram. A correnteza é forte e leva para fundo, além de ter muita Piraíba (peixe grande) e cobra grande que comem crianças. Disse o Capitão.

Estevão ficou pensando, que aprendeu a nadar no rio que passa em frente à sua casa e isso não seria problema, porém, o Rio Amazonas em frente a cidade de Itacoatiara era tão largo que quase não dava para ver a outra margem do rio. Ele sabia dos perigos dos peixes grandes e das cobras que podiam engolir uma criança, mas ficou surpreso que o perigo também estaria presente nos portos da cidade grande.

Ao atracar a embarcação, todos já de malas prontas aguardavam a prancha ser hasteada em terra para dar início a saída. Todos, que passavam por Estevão diziam: – “Olha não vai cair n’água novamente! Cuidado! Te alerta rapaz, aqui não é o interior! Se você cair aqui já era! Você some! Vai virar merenda de pirarara! (peixe grande)” – Falavam e riam ao passar pelo menino. Estevão sem jeito com sorriso amarelo, ria disfarçava a procura do seu tio Zé, que já sabia o dia e o horário que ele chegaria.

Após esvaziar o barco, o menino viu seu tio que chegava a pé, vestido com um jaleco branco, típico dos fardamentos dos professores da cidade. Com um sorriso esfuziante grita. – “Tio! Estou Aqui!” O tio ao avistar o menino disse. – “Fica aí curumim! Vou te pegar, se não você pode cair n’água”. O Capitão, ao ouvir deu uma gargalhada e disse: – Ele já está acostumado!

O garoto fechou o sorriso na hora e ficou emburrado. O tio subiu na embarcação e acertou a viagem e soube de toda história da queda do menino ao embarcar na saída do porto de sua casa. E já em terra e rindo muito de toda a situação disse:

– Agora você está batizado, deixou toda a panema (má sorte)para trás, isso prova que você vai crescer e ser forte, bem-vindo meu sobrinho! Aqui tem que deixar de ser môra, tem que ser esperto se não você vai ser atropelado. Falou o tio de Estevão.

Ao chegar na rua asfaltada, Estevão admirou-se, pois nunca tinha visto uma rua asfaltada, carros, motos e bicicletas indo e vindo. Além, de muitas carroças com cavalos, que faziam fretes de mercadorias, pessoas e tudo aquilo que fosse preciso carregar. A primeira coisa que o professor Zé ensinou ao seu sobrinho, foi atravessar a rua, disse que deveria olhar para um lado e outro e esperar o melhor momento para atravessar.

Seu Tio disse que aquela rua que se estendia por todo o bairro após a saída do porto era a Estrada Stony do Bairro do Jauary, inclusive o bairro onde morava e subindo a rua era o sentido bairro, que levava até a rua Juruá, onde está sua casa e descendo a rua levava até ao centro da cidade.

Subindo pela rua Estrada Stony, Estevão admirava-se pelos prédios de três andares de alvenaria e casas de madeira, comércios com variedades de produtos, além de observar pessoas que passavam com bacias de frutas e verduras, carroças cheias de madeira e produtos de todo tipo. Viu meninos com uma caixa de isopor escrito “Miau”. Perguntou:

– Tio, Miau! Que eu saiba é o barulho que o gato faz!

– Estevão, “miau” é um suco dentro de um saquinho que congelado fica num formato cilíndrico, pronto para ser consumido. Tem de todos os sabores, como maracujá, graviola, taperebá, Nescau (achocolatado), Quick (sabor artificial de morango). Você quer um? Perguntou o Tio de Estevão. Acenando com a cabeça que sim, o tio Zé chamou um garoto e disse:

– Qual é o sabor que tem? Respondeu o Miauzeiro. – Tem só de graviola e taperebá! De que você quer Estevão? Eu quero de graviola Tio! Respondeu Estevão, observando o menino que vendia o miau.

Após chegar na casa do seu tio Zé, Estevão foi recebido por todos com muita alegria. Conheceu seus primos, eram quatro meninos e uma menina. Além da sua tia Raimunda que lhe encheu de abraços e apertava suas bochechas, dizendo que estava muito feliz pois ganhava mais um filho. A sua tia era cozinheira no hospital da cidade. Também era muito famosa pelos petiscos, quitutes que fazia, como bolos e salgados e vendia no fim das tardes em frente a sua casa.

A VIDA NO BAIRRO DO JAUARY E O

CONTATO COM A ESCOLA

Depois de passados quase um mês da chega de Estevão a casa de seus tios na cidade de Itacoatiara, ele sendo um menino muito curioso e de fácil amizade, já conhecia seus vizinhos e a curuminzada de todo o bairro. Como membro da família do seu tio, sendo entre os seus primos o mais velho, ajudava nos afazeres da casa, nas pequenas coisas como, por exemplo, encher as garrafas de água no filtro de barro, pôr na geladeira para consumo de todos, varrer as folhas do quintal e brincar com seus primos.

A rotina da casa seguia normal, por volta das 14h como de costume, sua tia retorna de seu trabalho, descansa um pouco e começa a fazer deliciosos quitutes como fritos de banana, banana na calda de açúcar, frito de curueira, pasteis de carne, bolinho frito de piracuí, mingau de banana e de munguzá, sucos de graviola com leite, taperebá e maracujá. Algumas vezes, fazia também os pirulitos de mangarataia, que eram enrolados de forma cilíndrica, numa tala de buriti e enfiados numa tábua cheia de buracos, chamada de tábua de pirulitos. Tudo já estava pronto as 17h, momento em que eram vendidos numa mesa expostos em frente à sua casa.

Estevão, fazia questão de ajudar sua tia, pegava o banco para as pessoas sentarem, juntava o lixo e outras coisas que eram necessárias no momento do atendimento. Certo dia sua tia lhe disse:

– Estevão? Você quer ganhar seu dinheirinho para comprar suas coisinhas? Preparo numa bandeja com mingaus nos copos descartáveis e você sai oferecendo para as pessoas no bairro e o que você vender é seu.

– Sim tia! Eu quero! Respondeu Estevão entusiasmado em ter o seu primeiro trocado para comprar as coisas que gostava, como por exemplo, a possibilidade de chupar quantos miau aguentasse.

Depois de tanto acompanhar seu tio a beira (ao porto onde desembarcava as canoas de pesca) para comprar peixe vindo direto dos pescadores. Estevão disse que garantiria ir sozinho pela manhã para comprar os peixes do almoço. Então sempre saia por volta das 08 horas da manhã depois de ter juntado as folhas do quintal, e se dirigia com muita alegria para beira, além de ir visitar os barcos de passageiros. No caminho observava tudo, os vendedores de verduras, os miauzeiros, o vai e vem das carroças, o trânsito de bicicletas, as motos e os carros. Mas antes de comprar o peixe gostava de andar pela beira, onde ficavam os barcos para saber de que localidade tinham vindo e para onde estavam saindo.

Notou, que momentos antes dos barcos zarparem para suas viagens, podia-se entrar para vender coisas, os bananeiros, vendedores de banana frita entravam e saiam com suas bacias, os miauzeiros e vendedores de mingau faziam a mesma coisa, tinham padeiros, vendedores de vitamina de abacate na garrafa de vidro e vendedores de miudeza em geral (vendiam copos de alumínio, agulhas, linhas, lanternas, pilhas e outras coisas).

Gostava de ficar olhando a curuminzada pulando do trapiche, mergulhavam e desciam o rio até a escadaria do supermercado do Nêgo das Pedras. Ficou tentado a fazer a mesma coisa, mas como morava com o seu tio não quis desapontá-lo sendo desobediente.

Depois de ter visto o movimento do porto, comprava o peixe pedido pelo seu tio, durante essa trajetória fez amizade com os pescadores e ajudava a tirar os peixes das malhadeiras como forma de agradecimento, recebia outros peixes em troca. Na saída da beira, observava que muitos carroceiros subiam com suas carroças cheias de mercadorias e alguns passavam por frente à sua casa, por isso, sempre pedia carona até sua casa, pois estava com uma cambada de peixes enfiado no cipó, tornando-se muito pesada.

A primeira vez que fez isso, todos ficaram admirados de como Estevão conseguia tantos peixes, com a quantia de dinheiro que lhe era dado. Ele contou o que fazia, e ao mesmo tempo que seus tios se admiravam da astúcia do menino, o aconselhavam a não fazer nada de errado. Principalmente pular no rio, ou ficar mexendo nas coisas dos outros sem permissão. Todos os dias Estevão fazia estas coisas.

Certo dia, antes do recesso escolar do mês de julho, Estevão foi com sua Tia matricular-se na Escola Estadual Capitão General Mendonça Furtado, que ficava a uma quadra da sua casa, mais para dentro do bairro. Foi entusiasmado fazer sua matrícula. Conheceu toda a área da escola, viu que tinha uma quadra de futebol no meio da mesma e já ficou feliz por jogar futebol numa quadra de alvenaria, pois era acostumado a jogar bola em campo de várzea, que muitas vezes eram cheios de espinhos e tocos de pau que entravam no pé dos jogadores. Perguntou de sua tia quem tinha sido Mendonça Furtado? Ela respondeu:

– Estevão Mendonça Furtado, foi um Capitão General de Armada. Na verdade, o nome dele era Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ele era português e esteve aqui na Amazônia por volta de 1750. Ele comandava as caravelas, que são barcos grandes. O seu principal trabalho foi de libertar os índios que faziam trabalho escravo para alguns portugueses, além de trazer as aldeias que estavam no centro da mata para margem dos rios e fazer ser respeitados por todos. – Entendeu?

– Sim tia, mais ou menos. – Falou Estevão.

– Não se preocupe, quando iniciar sua aula, você aprenderá mais.

– Disse a tia de Estevão.

A noite era véspera da festa de São Pedro dia 28 de junho, os tios de Estevão decidiram chamar uma brincadeira de boi, para dançar em frente à sua casa para animar a criançada da rua. Logo cedo, à tardinha, todos os meninos cataram pedaços de madeira de seus quintais para fazer uma fogueira. A fogueira foi acesa por volta das 18h30, ao som de rádio com toca fitas ouviam músicas de festas de São João, e todos cantavam “olha pro céu meu amor/Vê como ele está lindo/ Olha pra aquele balão multicor/Como no céu vai sumindo…” – brincavam de quadrilha, orientados pelos adultos. Saltavam foguetinhos, pulavam fogueira, faziam batizado ao redor da fogueira adquirindo compadrios de fogueira. Comiam mingau de banana, munguzá, vatapá, pipoca, arroz doce, milho cozido, pamonha, tacacá e sucos.

De repente, por volta das 20h, chega a tão esperada brincadeira de boi. A noite estava enluarada, a iluminação pública era péssima poucos postes tinham luzes acesa, porém a rua estava iluminada por lâmpadas colocadas em frente as casas, sobretudo na frente da casa do Tio de Estevão. Ao longe via-se duas filas de brincantes e ao meio um boi de pano, eram adultos e crianças que vinham fantasiados, além de tambores e outros instrumentos.

Ao chegarem em frente da casa do Tio de Estevão, um dos organizadores da brincadeira de boi pede que abram espaço para o boi evoluir. São duas filas de vaqueiros com suas lanças enfeitadas de papel crepom nas cores vermelha e branca, com fitas longas da mesma cor que se estende por toda a extensão da lança, quatro pessoas de cada lado, deram a volta delimitando o espaço da brincadeira. Em seguida entra quatro rapazes fantasiados com roupas e chapéus espelhados, vestidos com camisas de mangas longas, calças compridas e sapatos. Todo o conjunto de roupa estava em tonalidades brancas. Eles tocavam um maracá. Entram também os destaques dos bois, sinhazinha da fazenda com seu vestido rendado e rodado com uma sombrinha na mão vestida com luvas, porta estandarte moça com trajes que imitam os adornos e pinturas corporais indígenas e um cocá na cabeça e a tribo de índios também com os mesmos adornos corporais composto por meninos e meninas. Além do Padre, “Doutor da Vida” e o casal que representam os negros da fazenda o Pai Francisco, a mãe Catirina e o Cazumbá.

O Amo do boi é um dos destaques principais da brincadeira, é ele que conduz todo o “alto do boi”. Em voz alta, ele inicia a sua apresentação “Boa noite Dono da Casa! Vim trazendo o Tira Fama, o Boi que a Senhor mandou chamar!” Em seguida ele canta “Ao chegar nesta morada/ouço Falar o meu nome/Trago a lembrança da morena bonita! Ela que mais me consome! Trago a Lembrança da Morena roxinha! Ela que mais me consome! Alô! Alô! Senhora Dona da Casa/Eu acabei de chegar/ Venho trazer o meu Boi Tira Fama!/Que a senhora mandou me chamar! /Vaqueiro meu bom vaqueiro!/Traga meu boi pra brincar!/ Apareça no terreiro!/ Pai Francisco e Cazumbá!/ Pra brincar com o Boi

Tira Fama! O campeão do lugar! Alô! Alô!”

Neste momento o menino Estevão observava atentamente os vaqueiros trazerem o boi para colocar no meio da roda. Ficou maravilhado, era um boi preto com um coração na testa em cor dourada e a barra de cetim branco. Ficou curioso como era dançar debaixo do boi. Este era um boi pequeno feito para crianças e adolescentes, Minca mestre da Brincadeira de Boi em Itacoatiara, estava encontrando uma forma de passar seus conhecimentos para os seus filhos e netos. Coordenava tudo atentamente.

Em um dado instante, o boi morre, e fica no chão é o momento que é tirado a sua língua para ser entregue ao dono da casa que chamou a brincadeira. É um saquinho de pano vermelho, onde o dono da casa dar sua contribuição financeira para os brincantes do boi. Foi o ponto anunciado pelo amo do boi, que a criança que quisesse poderia dançar debaixo do boi. Foi a hora perfeita para Estevão matar sua curiosidade em saber como era estar debaixo do boi.

Ao ser ajudado, pelos brincantes para entrar debaixo do boi, notou que ele era feito de pedaços de bambú cortado em tiras, bem como talas de buriti que ajudava a prender a armação. Além de ser revestido por espuma e um pano aveludado. Percebeu que mesmo assim, era pesado, e para dar movimento ao boi tinha que rolar o boi nas costas. Além de olhar por dois buracos, logo abaixo do pescoço para ver para onde o boi estava andando. Sentiu-se o centro das atenções naquele momento, ouvia seus colegas dizer: – Vai Estevão coloca o boi para dançar! É muito mole! Dança! Estevão fazia de tudo para mexer o boi, sentiu que sua cabeça era pesada, pois era o próprio crânio do boi revestido de pano. Quando descobriu que estava ficando quente demais debaixo do boi, deixou para outra criança entrar.

Após as crianças tirarem suas curiosidades sobre o boi de pano, o Doutor da Vida manda buscar a língua do boi que estar com o dono da casa para fazer o curativo, para poder o ressuscitar o boi. Ele coloca a língua de volta no boi, em seguida o Doutor da vida fala: “atchimbum e o rabo do meu amo!”, “atchimbum e o rabo do meu amo!”, “atchimbum e o rabo do meu amo!” – Neste momento todos que estavam vendo o ritual de ressurreição do boi espantaram-se com o urro que o boi deu. Ele se levanta, o Amo do Boi se despede dos donos da casa e vão embora para outra casa em outra rua da cidade de Itacoatiara noite a fora.

A fogueira já em cinzas indicava que era ora de todos recolherem-se em suas casas. Estevão ajudou seus tios a guardar as cadeiras. Após isso, tomado banho e de dentes escovados já cansado da noite agitada adormeceu.

Depois de um mês, Estevão já estudava no período vespertino. Tinha uma rotina organizada. Pela manhã ajudava seus tios nos afazeres doméstico, comprava peixe, voltava para casa almoçava e arrumava-se para ir à escola. Saia por volta das 17h, voltava correndo para casa, pegava sua bandeja de mingau, vendia pelas ruas do bairro até por volta das 18h, depois voltava para casa. Brincava um pouco com seus primos e amigos da rua em frente à sua casa. Entrava por volta das 19h, jantava, fazia sua tarefa da escola, as 21h já estava na rede preparandose para dormir, rezava e adormecia.

CAPÍTULO 1

SEMANA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA ESCOLA.

O QUE É O PATRIMÔNIO CULTURAL?

 

No mês de agosto, as escolas da cidade de Itacoatiara, incluíram em sua programação educacional, a Semana do Patrimônio Cultural. Foi uma atividade multidisciplinar que envolveram todos os professores das diferentes disciplinas. Os alunos ficaram ansiosos, pois pela primeira vez ouviram falar de um tema que não sabiam do que se tratava.

Estevão estava animado, pois soube por uma de suas colegas Emanuelle, conhecida entre os amigos como Manú, que fariam um passeio de ônibus pela cidade a fim de conhecerem os prédios históricos, e outros lugares considerados Patrimônio Cultural de Itacoatiara. Estevão ficou animado com a possibilidade de entrar em um ônibus, pois nunca tinha andado de carro, ainda mais em um veículo grande.

A segunda-feira, inicia com a professora Maria do Carmo, falando sobre o que seria Patrimônio Cultural. Ela pede para todos os alunos sentarem em círculo, manda tirar seus calçados e colocar um pé encostado no outro em círculo. Eduarda (Duda), outra colega de Estevão disse:

– Professora, sentados assim, parece que os nossos pés estão formando um círculo igual de umas crianças de uma aldeia da África. Como numa foto que vi em uma revista na casa do meu pai. A professora respondeu:

– Exatamente Eduarda! Estamos fazendo igual na aldeia Ubuntuque fica lá no Continente Africano, onde as crianças quando vão ouvir histórias e compartilhar experiências, elas colocam tudo em comum. Isto representa a união da comunidade.

– Ah tá! Disseram as crianças maravilhadas com o formato que os pés fizeram em conjunto. Em seguida professora iniciou a aula dizendo.

– Vou falar para vocês o que é Patrimônio Cultural, pois tem a ver com a relação que construímos conosco e a comunidade que estamos inseridos. Carlos, outro colega de Estevão, falou:

– Professora! Patrimônio, parece uma palavra que vem da palavra pai.

– Exatamente Carlos! Exclamou a professora. Continuou falando:

– A palavra Patrimônio significa, aquilo que vem do pai, ou seja, que é deixado pelo pai, como propriedade, dinheiro, coisas e muito mais. E Patrimônio Cultural é um conjunto de bens que herdamos da coletividade, da sociedade. Isto é, bens culturais. É a produção dos homens nos seus aspectos emocional, intelectual e material e todas as coisas que existem na natureza. Tudo que permite ao ser humano a conhecer a si mesmo e o mundo que o rodeia, pode ser chamado de bem cultural. – Estevão perguntou:

– Professora a brincadeira de boi pode ser considerada Patrimônio Cultural? Pois na véspera de São Pedro o Boi Tira Fama foi dançar na frente da casa do meu tio Zé! – Respondeu a professora:

– Sim Estevão, é considerado Patrimônio Cultural, está brincadeira entra nos bens de ordem emocional. Ou seja, representam o sentimento individual ou coletivo. Mas não somente esta manifestação folclórica que você viu, incluem-se também, os desfiles cívicos de 7 de setembro, festas religiosas como a festa de São Pedro que é realizada a procissão fluvial na frente da cidade, mas também as músicas que ouvimos, a histórias que lemos nos livros que se enquadram nos aspectos da literatura, as danças folclóricas, como as quadrilhas, as pastorinhas e outras.

Turma mas há também outras classificações de Patrimônio Cultural, já citamos um que foram os bens de ordem emocional. Mas temos também os bens de ordem naturais, os bens de ordem material, e os bens de ordem intelectual.

Os bens de ordem naturais, são os elementos pertencentes a natureza, como os animais, vegetais e minerais, são os recursos naturais como os rios, as montanhas, a vista do pôr do sol de um determinado lugar da cidade e uma determinada cachoeira. Vocês sabiam que no Município de Itacoatiara têm cachoeira? – A turma respondeu dizendo que não. E a professora de pronto respondeu:

– Tem sim, fica lá próximo a comunidade de Lindóia quando agente vai para Manaus, antes de subir a segunda ponte que atravessa o rio Urubu no sentido Manaus-Itacoatiara na rodovia AM-010, tem uma porteira no lado direito a uns 500 metros, onde se lê, bem-vindos a cachoeira da Vila de Lindóia. E a professora continuou.

– Temos os bens de ordem material, que são as criações dos homens visando aumentar seu bem-estar social, como por exemplo, os estilos de casa que as pessoas constroem para morar. Aqui na cidade de Itacoatiara nós temos um conjunto arquitetônico de casas da época em que a cidade tinha pessoas que vieram de outros países como Portugal para colonizar nossa região, mas sobretudo, da época da economia da borracha, momento que os comerciantes vendiam o látex extraído da seringueira e outros produtos coletados na floresta para o estrangeiro e fixaram residência aqui, tinha um comércio muito forte. São aquelas casas que ficam próximos a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Alguém sabe dizer qual seria um dos prédios desta época?

– Eu sei! O Matadouro Público Municipal, onde os magarefes(açougueiros) buscam o boi depois que eles são sacrificados e limpos para a sua carne ser vendida no Mercado Público da cidade. Já fui várias vezes com o meu pai lá encomendar carne. Falou Carlos.

– Isso mesmo Carlos! Este prédio do Matadouro Público Municipal e do Mercado Municipal são exemplos de construção do século XIX da cidade de Itacoatiara. O Matadouro fica ali no bairro das Pedreiras, quando passarem por lá observem que tem uma porta bem grande no meio e duas janelas uma de cada lado também bem grande, para que se tenha uma boa circulação de vento. – Falou a professora e prosseguindo:

– Os bens de ordem intelectual são os saberes dos homens. O conhecimento ou o saber que eles utilizam na construção de um objeto. Por exemplo, este cesto aqui. Falou a professora mostrando um cesto médio com tampa. Ele é tecido com palhas de tucumanzeiro, foi feito por um artesão aqui do bairro do Jauary, o Senhor Filipinho tem o seu conhecimento, que chamamos de técnica, ou seja, forma de fazer, é um conhecimento específico sobre este produto. Têm também este chapéu de palha feito por ele, que serve para nos proteger do sol, bem como este leque muito utilizado para abanar fogo, e nos abanar nos dias de calor.

As crianças ficaram maravilhadas, com os produtos. Estevão olhou e disse para sua colega

Manu: – Minha avó Joana faz melhor, eu ajudei muito ela fazer esteira de palha para deitar no chão depois do almoço, é bem friozinho deitar na esteira.

A professora perguntou:

– Alguém sabe me dizer outra coisa que pode ser enquadrado como bem de ordem intelectual? Neste momento, Pedro perguntou:

– Professora! O tacacá pode ser considerado um bem de ordem intelectual? Porque lá no sítio dos meus avós, estávamos tirando o tucupi da maniva para tomar tacacá e de repente um boi gaiato, foi lá e bebeu um pouco de tucupi recém tirado e alguns minutos depois ele morreu. Meu avô disse, que o tucupi é veneno se for bebido sem ferver muito bem, por isso o boi morreu. Meu avô ficou bravo, porque já era quase noite, e lá foi ele ter que descoirá o boi (tirar o couro do boi) para preparar sua carne para o consumo. Se não fizesse isso, iria ter um prejuízo enorme. – A professora respondeu:

– É isso mesmo Pedro! Imagina vocês, quantas pessoas morreram até descobrir que para tomar o delicioso tacacá deveríamos ter que ferver muito bem o tucupi? Quantos indígenas não morreram neste processo de descoberta culinário? Pois foram eles que inventaram esta comida e este conhecimento veio passando de geração em geração até chegar a nós.

– Estou orgulhosa de vocês disse a professora Maria do Carmo. Isso é prova de que vocês sabem o que é Patrimônio Cultural. Podemos dizer então, que o Patrimônio Cultural é constituído de bens materiais e não materiais, enfim, de tudo que se refere à identidade, à ação, à memória de uma comunidade ou cidade. Sabem quem fiscaliza o Patrimônio Cultural de uma cidade?

– No Brasil, existe um órgão fiscalizador chamado de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), ligado ao Ministério da Cultura, tem o objetivo de identificar, proteger, promover e difundir o Patrimônio Cultural Brasileiro. E na cidade de Itacoatiara, temos a prefeitura da cidade, responsável em proteger o Patrimônio Cultural, por meio de ações de preservação, que é chamado de salvaguarda, que são leis criadas para proteger o Patrimônio Arquitetônico por exemplo, nem um proprietário de casa antiga da mesma época ou iguais aquelas parecida com os prédios do Matadouro Municipal e do Mercado Municipal, podem fazer reforma ou derrubar sem antes falar com a prefeitura e o IPHAN. Caso contrário estarão cometendo um crime contra o Patrimônio Cultural Brasileiro.

Como exercício para casa, a professora pediu que cada aluno conversasse com seus familiares para saber das histórias de suas famílias até chegar a cidade de Itacoatiara? Quais conhecimentos detinham sobre as práticas culturais entorno dos ofícios de fazer? Brincadeiras culturais? Sobre as lendas vivenciadas na cidade? Um desenho que representasse o Patrimônio Arquitetônico da cidade?

De repente tocou o sino, indicando a hora da saída, mais que depressa os alunos se arrumaram para ir embora. Estevão despediu-se de seus colegas de aula, e passou a enxergar as casas de seu bairro com um outro olhar, observando como as casas tinham sido construídas, eram de que tipo de materiais. De cimento, ou de madeira? Cobertura de telhas de barro ou de palha? Olhou as canoas e os barcos que navegavam no rio, eram de madeira ou de ferro? Quais eram suas cores? Observou pela primeira vez como era bonito a vista do pôr do sol da orla da cidade de Itacoatiara.

Já na venda do mingau de banana, Estevão observou como as pessoas eram diferentes ao falar, uns diziam que o mingau estava demais já belo! Outros usavam a expressão olha já! Ao se espantar com alguma coisa. Uma senhora ao ver que estava escurecendo, disse: – Eras! Já é noite, vou já me embora parente! E ao passar em frente a um comércio que tinha uma televisão, Estevão notou que as pessoas que estavam sendo entrevistadas no jornal televisivo, moravam em diferentes cidades do Brasil, falavam com sotaques diferentes entre si, além perceber que ele e seus amigos também tinham uma forma diferente de se comunicar.

A noite após ao jantar conversou com seu tio Zé, que quase sempre lhe ajudava nas tarefas escolares. – Estevão perguntou:

Tio nós somos descendentes de quem?

Ué! De índios! Olha minha cara, sou um verdadeiro índião! Meu cabelo é liso e tenho esta cor de índio, de cor parda. Temos também descendência de negros na nossa família, olha o teu pai Juquinha, é índio misturado com negro, o bicho é todo arrepiado, bem como você, que também é um pouco arrepiado. Mas temos também o branco português, olha para tua vó, minha mãe, é branca, linda! Olha sua tia Raimunda é branca igual uma sinhazinha da fazenda! Falou tio Zé rindo do comentário. Estevão perguntou:

– Então nós somos uma mistura do branco, negro e índio tio?

– Sim! Nós somos os cabocões! Porque não somos índios, não somos brancos e não somos negros, somos os cabocões lá do interior do meio da mata. Aqui, ninguém se mete a besta com nossa família. Nós temos, músicos, rezadores, pescadores, professores, boêmios bebedores de cachaça e até um sobrinho que mora na cidade de Belém do Pará que eu soube que é até doutor em direito. – Respondeu tio Zé, rindo de toda situação.

– Meu sobrinho, a verdade que cada lugar tem uma forma de ser e de se comportar, por exemplo, você não pode ir de qualquer jeito para escola, tem que ir com o fardamento escolar. Você não pode usar roupa de banho para ir numa festa. Tem que ir bem apresentado, com roupas limpas, sapatos engraxados e cabelo cortado e penteado. Assim como você não pode ir para o interior pescar e trabalhar na roça com paletó e gravata. Cada lugar tem uma forma de se comportar. Bem como, dependendo da colonização uma forma de falar. Por isso que aqui falamos olha já! Curumim para menino, cunhatã para menina.

– Sobre nossa comida, temos o costume de comer piranha no caldo do tucupi, peixe assado na brasa com farinha, tapioquinha com banana frita no café da manhã, mingau de banana, fritinho de farinha, uhuumm que delícia! Sardinha na folha da bananeira, todas as comidas consideradas de índio. Mas temos também, coisas do branco, como o pirarucu de casaca que foi uma comida adaptada do bacalhau português, o pão francês que foi inspirado nos pães que os brasileiros ricos viram no país da França e hoje vende na padaria perto de casa e dependendo da região é chamado de cacetinho, pão de sal. E como comidas vindas com os negros africanos temos o vatapá feito com dendê, munguzá, cuscuz, pamonha e a feijoada.

Estevão conversou muitas outras coisas com seu Tio, e não via hora de amanhecer para a tarde ir para escola. Antes de dormir ficou pensando na forma de falar de sua família e nas comidas que comiam frequentemente e lembrou como era gostoso o caldo de bodó quentinho feito por sua mãe Maria.

*O autor é natural de Itacoatiara, vem trabalhando com a temática sobre patrimônio cultural a mais de duas décadas. É formado em Ciências Sociais (UFAM) e Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA/UFAM) especialista em Festas Populares e Religiosas da Amazônia. Formado em Direito (ULBRA/Manaus), MBA em Gestão, Licenciamento e Auditoria Ambiental (Anhanguera-Uniderp). É professor Universitário. Publicações em coautoria nos livros “Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades” (2007) e “Culturas populares em meio urbano” (2012). Autor dos livros “A Senhora, o Folclore e o Festival” (2022) e “Descobrindo o Patrimônio Cultural de Itacoatiara (2024)”. É Assessor Jurídico e sobre o patrimônio imaterial etno-história da Amazônia para empresas de licenciamento ambiental e arqueológico.

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Uma resposta

  1. É com exclusividade que público o meu segundo livro neste blog nescessário e tão relevante para os pesquisadores da Amazônia. Espero trocar ideias e falar da minha experiência de pesquisa. Façam todos uma boa leitura.

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