O Jornal do Commercio do Amazonas chega aos 122 anos como quem atravessa um rio grande em plena cheia: não com a arrogância dos que pensam que a correnteza é decoração, mas com a disciplina de quem aprendeu, na prática, que a Amazônia sempre cobra pedágio de lucidez. Aqui, o futuro nunca veio de graça. E o passado nunca passou inteiro.
O JCAM nasceu e cresceu sob o clarão e a febre do Ciclo da Borracha – aquele instante em que Manaus parecia uma cidade importada, vestida de luxo europeu, enquanto a floresta, do lado de fora, seguia sendo a fábrica real do mundo: silenciosa, sangrada, indispensável. O apogeu trouxe ópera e mármore; trouxe também desigualdade, ilusão e a ideia perigosa de que riqueza é sinônimo de eternidade.
Quando veio o declínio, veio sem pedir licença, como vem toda verdade. A concorrência asiática, a fragilidade de um modelo assentado em um único produto, a falta de diversificação, o preço do improviso histórico. E, nesse ponto, é preciso dizer sem rodeios: a Amazônia aprendeu cedo que o “milagre” é apenas um nome elegante para a ausência de planejamento.
Entre um suspiro e outro de prosperidade, a região entrou em décadas de crise, disputa, sobrevivência, reinvenção. O jornal seguiu ali – não como um álbum de recordações, mas como um instrumento de vigilância. Porque na Amazônia, muitas vezes, o que chamam de “destino” é só a repetição do erro, com roupa nova.

Floresta Amazônica. Imagem: Freepik.
Então veio o II Ciclo da Borracha, empurrado pela guerra. O mundo, de repente, precisou da seiva amazônica para mover máquinas de combate, porque o mercado asiático se fechara ao Ocidente. A borracha voltou a ser urgência; a floresta voltou a ser convocada – como se fosse uma prateleira infinita, como se gente fosse detalhe, como se a distância fosse só um número no mapa.
E ali, outra lição: a Amazônia sempre foi chamada quando o mundo apertou. Mas quase sempre foi esquecida quando o mundo respirou.
Depois, a grande virada estrutural: a luta pela implantação da Zona Franca de Manaus – e, sobretudo, a batalha permanente por sua sobrevivência, expansão, diversificação e legitimidade. A ZFM não é apenas um modelo econômico; é um capítulo de defesa nacional escrito com tinta tributária e suor regional. Ela nasceu no embate com a indiferença e amadureceu no confronto com a desinformação.
Grandes matérias ao longo desses anos:


Primeira foto: Notícia sobre a idealização da ZFM no dia 31 de julho de 1957/Crédito: Acervo JC – Segunda Foto: Notícia sobre início da Primeira Guerra na edição de 29 de julho de 1914/Crédito: Acervo JC
Em cada ciclo, em cada ameaça, em cada tentativa de reduzir a região a caricatura, o jornalismo atento fez o que precisa ser feito: traduziu complexidades, expôs interesses, denunciou atalhos fáceis, iluminou decisões que pareciam técnicas, mas eram políticas até o osso.
Porque existe um vício antigo no Brasil: achar que Amazônia é cenário – e não sistema. É paisagem – e não povo. É exuberância – e não estratégia. É “reserva” – e não projeto.
O JCAM, quando está no seu melhor, funciona como uma poronga acesa em noite de mata: não resolve a floresta inteira – mas impede que o caminhante se apaixone pelo próprio tropeço.
E hoje, quando se fala em economia da floresta em pé, o debate exige coragem dupla: a de quem sabe que conservar não é “ficar parado”, e a de quem entende que desenvolver não é “passar por cima”.
A floresta em pé não é um slogan: é uma tese de realidade. Ela é a economia do clima, da água, da biodiversidade, do conhecimento, da tecnologia aplicada à vida. Ela é a promessa de um desenvolvimento que não precise queimar o chão para provar que existe. Ela é, em termos práticos, a diferença entre ser protagonista do século XXI ou virar um rodapé trágico no relatório de algum organismo internacional.
Mas essa economia não nasce do romantismo. Ela nasce de indústria inteligente, ciência respeitada, inovação com propósito, financiamento sério, governança rigorosa, segurança jurídica e, acima de tudo, de uma cultura pública que não trate o crime ambiental como folclore e a política como brincadeira.
A batalha do desenvolvimento regional, portanto, mudou de farda – mas não acabou.
Antes, o inimigo era a distância, a precariedade logística, o abandono estrutural, o improviso institucional. Agora, além disso, há o ruído: a avalanche de desinformação que tenta vender soluções mágicas, culpados instantâneos e promessas sem engenharia.
“E é aqui que um jornal com 122 anos vira mais do que uma empresa de comunicação. Vira patrimônio de orientação.”
Um jornal longevo é uma espécie de “memória com nervo”: ele lembra para que a sociedade não repita o que já custou caro. Ele registra para que a política não invente versões. Ele cobra para que o poder não se acostume com a própria impunidade. Ele organiza o debate para que o caos não pareça inevitável.
O JCAM testemunhou a borracha, a guerra, as crises, as promessas, os pacotes de salvação, os discursos de ocasião. Viu a ZFM ser atacada e defendida, ridicularizada e reafirmada, subestimada e comprovada. Viu o Amazonas ser tratado, em diferentes épocas, destes 122 anos, como “fronteira”, “celeiro”, “santuário”, “laboratório”, “obstáculo”, “tesouro”. E, no meio desse carnaval semântico, manteve uma função essencial: dar nome às coisas.
Porque quando a imprensa perde a capacidade de nomear, o poder ganha liberdade para maquiar.
E há um detalhe que pouca gente diz: na Amazônia, o jornalismo não é só um ofício. É uma forma de proteção civil. É infraestrutura invisível de cidadania. É um dique contra o oportunismo – esse tipo de enchente que não molha as ruas, mas alaga as instituições.
“Celebrar 122 anos do JCAM, portanto, não é apenas festejar uma data. É afirmar que a Amazônia precisa – e merece – um jornalismo à altura do seu tamanho moral.”
Um jornalismo que não se ajoelhe diante do “progresso” quando ele vier com cheiro de fumaça. Que não se encante com o “desenvolvimento” quando ele vier com escolta de ilegalidade. Que não se venda ao cinismo de achar que “sempre foi assim”. Porque a Amazônia só continuará existindo – socialmente, ambientalmente, economicamente – se a gente insistir em não normalizar o absurdo.
O século XXI já colocou a região no centro do mundo. A pergunta é: em que condição? Como protagonista de uma economia sofisticada, sustentável e tecnológica – ou como vítima recorrente de um saque com verniz?
A resposta não virá de uma única instituição. Mas um jornal, quando cumpre sua vocação, ajuda a fazer o impossível cotidiano: formar consciência pública.
E consciência pública é o que transforma “floresta em pé” de frase bonita em projeto de país.
Que venham os próximos anos, então – com mais rigor, mais profundidade, mais coragem. Porque, se a Amazônia é a grande batalha civilizatória do nosso tempo, o JCAM tem sido, por 122 anos, um dos seus instrumentos mais persistentes de lucidez.
E lucidez, na Amazônia, é uma forma de amor.
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