Manaus, 7 de setembro de 2024

Do outro lado da fronteira

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Do outro lado da fronteira cultural que é Amazônia, nos espreita uma amplidão cultural sofisticada, uma tradição milenar que produziu literatura de rara beleza e complexidade, fábulas de rara crueza, forte e sensível expressão de formas primevas, cuja elegância seduziu homens como o conde Ermanno Stradelli, que veio para o Amazonas em 1890. Foi com este fidalgo, etnógrafo, rico, corajoso, um herói romântico típico da Amazônia, que a lírica dos povos indígenas começou a ser revelada dentro de uma compreensão artística antes que etnográfica. Seus livros, como “LaLeggendadelTaria”, coleção de contos e narrativas heroicas, ou “LaLeggendadeIJurupary”, um belíssimo registro da saga do grande legislador, antecedem Raul Bopp na reinvenção literária do mundo amazônico, “LaLeggendadeITaria”, lembra muito o antigo romance poético de amor, um gênero literário que crava suas raízes na mais cara tradição literária italiana, As descrições em versos do cenário, os gestos cavalheirescos, a renúncia final dos contendores frente à carnificina da guerra ou das disputas de famílias inimigas, fazem desta saga uma fábula “mileseaca” do rio Vaupיs, Stradelli encontrou na narrativa fabulosa dos tariana uma linguagem apenas nascida, como de nascimento o êxtase de Raul Bopp. E não é por pura associação de idéias que Nunes Pereira, em 1966, intitula sua monumental obra de “Moronguetá, um Decameron Indםgena”, Sem interferir na redação dos mitos, Nunes Pereira registra um estilo rico, matizado e sem grilhões. Um registro de mito e comportamentos que para Lévi Strauss “estocam e transmitem informações vitais assim como os circuitos eletrônicos e a fita magnética de um computador o fazem”. Reconhecendo esta autoridade do mito, poetas como Stradelli defendem a primeira realidade da região, realidade maior e mais relevante, pela qual está determinado o próprio destino da Amazônia. Conhecendo isto, estes “segredos profundos, sedutores e envolventes como certos cipós que se cobrem de flores para fingir fragilidade”, como bem escreveu Câmara Cascudo a respeito de Stradelli, descobrimos que vivemos num mundo onde o mito ainda vive e o relacionamento do homem com a natureza ainda o mesmo relacionamento dos deuses com a sua criação. Mas hoje os deuses foram banidos para a penitenciária da etnografia, o status ontológico do mundo está traduzido pelo potencial de energia elétrica ou pelos recursos minerais. O esforço de Stradelli se repetiu nas obras de J. Barbosa Rodrigues e Brandão de Amorim, autores de antologias como “Lendas em Nheengatu e Português” e “Poramdubas Amazonenses”. Mas foi somente em 1985 que um primeiro autor totalmente indígena pode responder o diálogo proposto pelo fidalgo italiano. Trata-se de Luis Lana, cujo nome em dessana  é Tolomen-ken-jiri, autor de “Antes o Mundo não Existia”, narração precisa do mito cosmogênicos de sua cultura, escrito em português e dessana, sob enormes dificuldades em sua aldeia do rio Tikiê. Luiz Lana, que nasceu em 1961, filho do chefe de sua tribo, fez o livro preocupado com a preservação do mito da criação do universo, acabou se tornando o primeiro índio a escrever e ter seu livro publicado em 500 anos de história do Brasil. “Antes o Mundo não Existia” está traduzido para diversas línguas europeias e estimulou o surgimento de outros escritores indígenas, que estão tornando vernáculo seus idiomas ágrafos, e são editados pela primeira editora indígena do país, propriedade da FOIRN- Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. O que está acontecendo neste momento no alto rio Negro é uma revolução cultural silenciosa, em que todo um mapa linguístico está sendo transformado e um novo ramo de literatura das Américas está surgindo. No passado as primeiras flores abriram-se na Amazônia, hoje desabrocham poesia e prosa inigualáveis.

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