A grande esteira de camarões de Itacoatiara
Antes de se casar, aí por volta de 1910, minha avó paterna Liberalina Acioly de Menezes morou uns tempos, na cidade de Itacoatiara, que também chamamos carinhosamente de Velha Serpa, o da sua homônima portuguesa, que lhe foi dado, pelo capitão general e governador do Estado do Grão Pará e Rio Negro Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ainda no século XVIII, devido à política de fortalecimento da presença lusitana, na Amazônia, adotada pelo Governo do Marques de Pombal.
Neste ano a borracha atingira o seu valor máximo, desde o início da sua comercialização, alcançando a incrível quantia de 2.500 libras esterlinas por tonelada, no momento em que uma moeda de libra correspondia a 8 gramas de ouro, ou seja, o equivalente a 20 quilos de ouro por tonelada, e que a Amazônia produzia 30.000 toneladas desse produto, totalizando 600 toneladas de ouro/ano.
Também este último ano da primeira década do século XX marcaria o fim dos áureos tempos da borracha, com o mercado importador inglês ocultando os verdadeiros preços do produto, pagando a Amazônia com preços baixos, capitalizando-se para as aplicações nas colônias europeias do sudeste asiático: Índia, Malásia, Ceilão, Indochina e Indonésia, e usando alguns milhões de chineses semiescravos, nos novos seringais ali plantados. A Amazônia, colônia econômica inglesa, deixava de ser uma das leoas do Império Britânico, que em contrapartida a garantira politicamente para o Brasil.
Itacoatiara já deixara de ser a pequenina vila estampada no desenho de 1858, a seguir reproduzido, de uma só rua, talvez a primeira imagem da atual cidade, com uma escuna ancorada em frente, que fazia as viagens entre Belém e Manaus, entre 80 a 120 dias, conforme a sua tonelagem, e vários barcos de regatões, as suas tripulações e dois carregadores, com duas tartarugas às cabeças.
Porto de Itacoatiara, em 1858, desenho de C. Maurand, do livro “Tipos e utilidades de veículos de transportes fluviais do Amazonas”, de Moacir Andrade.
Transformara-se na terceira cidade do interior do Estado, após Porto Velho e Remate de Males e, em um grande porto exportador de cacau, couros e peles, castanha dos Autás e borracha da Bolívia e do Madeira. Por isso aqui estavam estabelecidas algumas firmas exportadoras e a Recebedoria de Rendas era uma das que mais arrecadavam, no interior do Amazonas.
Vejamos algumas das principais firmas comerciais exportadoras e aviadoras (recebedores), na Itacoatiara desse tempo:
Minha avó foi para Itacoatiara acompanhando sua irmã Edith, casada com um fiscal de rendas, nomeado para dirigir a repartição estadual citada Tinha então uns 22 anos e ainda não casara, o que era raro naquela época. Talvez tenha até sido “deportada”, pois a sua família de seringalistas do Javari não queria o seu namoro com meu avô, um português sem eira nem beira, com quem casaria, no ano seguinte.
Morou na grande casa de estilo normando, que mais tarde pertenceria à firma Oscar Ramos, um dos marcos visuais da cidade, no ponto mais alto do barranco, dominando o porto, com uma bela visão do rio Amazonas, e que há muito já deveria ter sido transformado no Museu de Itacoatiara.
De uma das janelas daquela magnífica construção ela assistiu, entre setembro e outubro de 1910, uma pescaria de camarão ali em frente.
Naquele tempo, um grande rio de pequenos camarões, chamados de aviú, como se fosse um extenso tapete ou esteira, com mais de um quilômetro de largura, e não se sabe a que profundidade, passava por duas ou três semanas, sem parar, pelo meio do rio, nadando com destino ao mar, diziam.
Era o momento em que dezenas de pessoas da cidade munidas de camaroeiras, sacos de sarrapilha com a boca costurada em círculo, iam para o meio daquela corrente de vida e apanhavam grandes quantidades dos crustáceos, depois salgados e secos ao sol, para o consumo durante meses.
E todos os anos o fenômeno se repetia, até que a sua quantidade foi diminuindo aos poucos, e nos tempos atuais o fenômeno dura poucos dias e a gigantesca esteira foi substituída por um faixa de alguns poucos metros de largura.
Já quase não se pescam camarões em frente à Itacoatiara, mas em Parintins, durante esses meses os aviús são vendidos a litro ou a quilo, nas calçadas do mercado daquela cidade, a preços muito abaixo dos aviús de Tutóia, que junto com os camarões secos adultos, são indispensáveis ao vatapá amazônico, bem diferente do baiano. O mesmo acontece em Cametá, no Tocantins, onde todos os anos há uma farta produção de aviús secos e pilados.
Resta-nos saber por que a esteira de camarões está diminuindo cada vez mais, de ano para ano. Nada sabemos sobre esse ciclo dos camarões, na Amazônia. Se eles são uma espécie fluvial, ou pequenos camarões que nascem nos afluentes do Amazonas e todos os anos descem em direção ao mar, no caso, para as costas do Amapá, Pará e Maranhão, onde vão crescer, até voltarem para desovar na Bacia Amazônica.
O fato é que quando isso se dá não vemos esses camarões adultos subindo os rios, o que talvez aconteça durante as enchentes. Mas todos os anos, o aviú desce dos rios e igarapés, e vem se concentrar no rio Amazonas, seguindo para o Atlântico.
A pesca predatória nas costas brasileiras talvez esteja acabando com os estoques e a sua reposição de aviús, que está ficando cada vez em menor quantidade. É preciso um estudo urgente e mais profundo sobre este assunto, senão ficaremos sem aviús ou sem camarões, no Brasil, como esta acontecendo com a sardinha do mar. De passagem: o aviú é um alimento indispensável para os cardumes da pescada regional, que acompanham a sua descida, e talvez por outras espécies nativas.