Na Manaus antiga vivida por ela, eram costumeiras as grandes reuniões musicais e naturalmente saraus. Era comum a época fazer pequenas reuniões, onde a música e a poesia reinavam.
Somente com a música e com o piano, Lindalva Cruz desafiou a vida enfrentando todo os altos e baixos de uma sociedade genuinamente machista. Mas nada a intimidou. As decepções, as mágoas, foram afogadas nas teclas brancas e pretas do solidário Donner, bem como as inúmeras vitórias.
Assim, desde os nove anos até os noventa anos, ela lutou sempre por uma vida melhor. Amazonense de Manaus, nasceu em 29 de novembro de 1908. Um dado importante de Lindalva Cruz é que ela foi a única pianista compositora de músicas eruditas românticas do Estado do Amazonas, do século XX.
Seu primeiro trabalho profissional foi no cinema mudo. Lindalva, com orgulho, sempre relembrava sua estreia e o encanto de tocar na sessão de Cinema Mudo. Sua estreia foi num domingo de junho, com a plateia do Cinema Alcazar lotada.
Numa cidade carente de outras distrações, o cinema era o mundo revelador para todos, especialmente para ela, na necessária integração com os dramas e comédias projetados na tela.
Lindalva Cruz, aos 14 anos. Ao centro, Nini Jardim e o marido. Foto: Reprodução/’Lindalva Cruz – Vida e obra’, de Irinéia Coêlho
O início da exibição cênica era procedido do toque de uma campainha, a qual era seguida de profundo silêncio. Seu pensamento naquele instante voltava-se rapidamente ao ensaio que havia feito, estando ainda com uniforme do Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Naquele momento permitiu que seus dedos corressem comandados pela fé e pelo coração. Eram seus companheiros de palco o flautista Jonathas Madeira e o violinista Armando Teixeira. Lembrava Lindalva de ouvir a voz forte do maestro: ‘Bravo! … Está ótima!’.
Seus avós e sua mãe aquela altura não concordavam com sua situação, mas compartilhavam a vitória, bem como os amigos preocupados com minha pouca idade e, talvez, a falta de experiência. O filme da época chamava-se ‘Vermelho e Preto’, estrelado por Mário Bonnard e Vitoria Lepanto.
Já a parte da adaptação ao aparelho mudo foi feita por João Antônio da Silva, seu avô, orientado por um folheto em língua inglesa que acompanhava o filme. Naturalmente ele usou motores de carros para imitar aviões, sirenes no horário de saída das fábricas, tambores, cornetas, pequenos foguetes de pólvora seca e tacos de madeira, que em batidas ritmadas davam a impressão de soldados marchando. Enfim, avô e neta davam sonoridade ao cinema mudo em Manaus.
Lindalva Cruz (ao centro) e suas alunas na Praça Heliodoro Balbi (Praça da Polícia). Manaus, dezembro de 1927. Foto: Reprodução/’Lindalva Cruz – Vida e obra’, de Irinéia Coêlho
Mas os tempos mudaram. O tempo foi passando e certo dia, para surpresa de Lindalva e seu avô, um navio aportou em Manaus trazendo aparelhagem para o cinema sonoro e a partir daí o trabalho de Lindalva e seu avô passou a sofrer a concorrência natural da modernidade.
Meses após a instalação do novo sistema, chegou o momento ansiosamente esperado: a estreia do primeiro filme falado, musicado e colorido.
O veterano Cine Polytheama enfeitou-se para receber o enorme público que aplaudiria a empresa Paramount em grande gala. Foi um maravilhoso desfile de artistas famosos, naturalmente com sucesso retumbante, seguindo-se de novos filmes importante ali exibidos.
Começa o carma das dificuldades da menina Lindalva
Desde que abdicou dos direitos infantis para ajudar no sustento da família, literalmente, Lindalva começou a sentir o peso da responsabilidade numa luta diária de sobrevivência, tudo conseguido com muito sacrifício. Muitas vezes, encontrou quem aliviasse o peso, outras teve que carregá-lo sozinha.
Da esquerda para a direita: Francisca Serejo Ramos, Magnólia Vieira Brasil, Jandira Castro e Lindalva Cruz, diplomadas pelo Instituto Amazonense de Música. Turma de 1934. Foto: Reprodução/’Lindalva Cruz – Vida e obra’, de Irinéia Coêlho
Na Manaus antiga vivida por ela, eram costumeiras as grandes reuniões musicais e naturalmente saraus. Era comum a época fazer pequenas reuniões, onde a música e a poesia reinavam espalhando seus encantos no salão. Uma das mais conhecidas frequentadoras era Ilcia Cardoso, uma jovem muito bonita que destacava-se na sociedade local e que naturalmente amava a arte e dedicava-se com afinco.
Esta jovem teve a oportunidade de viajar por quase toda a Europa tocando piano, violino, violão, compunha, cantava e declamava versos com muita graça e beleza. Seus saraus eram importantes e reuniam músicos, poetas e amigos da arte. Arnaldo Rebello, ainda de calças curtas, começava a despontar no cenário amazônico e em pouco tempo tornava-se um nome respeitadíssimo, cuja liderança era destaque.
Um fato importante e interessante nesta época era que Naíde Silva, mãe do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, foi amiga de infância de Lindalva Cruz, tendo estudado piano junto com ela, embora já existisse uma diferença de idade e que naturalmente ajudava Lindalva com seus conselhos a respeito de execuções musicais.
Segundo a própria Lindalva, tratava-se de uma pessoa doce, cuja bondade era enorme. Vale ressaltar que foi Lindalva sua confidente quando ela lhe comunicou que estava namorando o jovem Leônidas, Oficial do Exército do Vigésimo Sétimo Batalhão de Caçadores que havia chegado a Manaus e com quem se casou.
Lindalva Cruz. Foto: Reprodução/’Lindalva Cruz – Vida e obra’, de Irinéia Coêlho
Lindalva, já mais madura, continuou trocando correspondência quando a mesma passou a morar no Rio de Janeiro, cuja visita a seu apartamento fez por várias vezes. Outro fato importante é que com o falecimento de seu esposo Leônidas ocorre uma coincidência: ela passou a morar na mesma rua de Lindalva, Barão de Ipanema, 102, e Lindalva morava no n° 105, em Copacabana, Rio de Janeiro.
O sonho de voar mais alto
Arrojada para os parâmetros machistas da época, Lindalva não se incomodou e resolveu partir em busca de novos conhecimentos. Começava a difícil caminhada. Sentia o desejo de voar mais alto, sonhando com o cume da montanha.
Por insistência das amigas que achavam impossível tal aventura, buscou o que era mais difícil: Instituto Nacional de Música, o que na ideia de sua mais velha amiga a palavra viria ‘é difícil, porém, não impossível’. O diretor da época, Júlio Verner, atendendo o pedido de sua filha apresentou projeto na Câmara dos Intendentes solicitando uma bolsa de estudos para Lindalva. Embora o projeto recebesse forte oposição, foi vencedor.
A senhora Ana Nunes de Mattos, esposa de Júlio Verner, e suas filhas Ana, Josephina e Isabel, suas íntimas amigas, imediatamente organizaram a Festa de Arte no Ideal Clube, a fim de angariar os recursos necessários para sua viagem. Naturalmente com a colaboração do meio artístico o auditório lotou.
Os olhos de Lindalva brilhavam. O clube mais chique da cidade estava lotado, o prefeito da época tentando ajudar ofereceu um cartão para acompanhar e facilitar a venda dos ingressos e designou um funcionário para receber as importâncias correspondentes.
Foi uma noite inesquecível! Aplausos calorosos e abraços sinceros dos amigos que repetiam emocionados: “Boa Viagem, Lindalva! Boa Viagem!”.
Curso ‘Ivete Freire Ibiapina’ homenageia Lindalva Cruz. Manaus, dezembro de 1996.
Foto: Reprodução/’Lindalva Cruz – Vida e obra’, de Irinéia Coêlho
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