Manaus, 16 de setembro de 2024

Luiz Bacellar e sua poesia (II)

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O seu primeiro livro – Continuação

Agora entremos nos Sonetos provincianos que são três. São todos muito nostálgicos. Mostram a porta para o quintal da antiga moradia do poeta, o trabalho das lavadeiras com os seus varais de rupas coloridas e que também lavam a alma com as suas cantigas. Medita sobre a história de sua família bem desenhada no soneto intitulado Finis gentis meae, que ele teve o cuidado de logo traduzir para Fim da minha gente, transcrito em seguida:

Súbito chega a Tarde pressentida
a roçagar musgosos, carcomidos,
muros, com a fímbria azul de seus vestidos
restaurando-os na grave despedida.

E em tudo acorda uma passada vida,
um hálito sutil de tempos idos,
de dias remansosos já vividos
por uma glória velha hoje exaurida.

Retorna o lume antigo às arandelas,
cristais rutilam, brilha o ouro daquelas
molduras dos retratos dos avós…

Mas logo vem a Noite e, de mansinho,
envolve em véus e guarda no escaninho
da raça o resto e o pó que somos nós…

Em Porta para o quintal, um desses três sonetos, Bacellar oferece um exemplo do enjambement bem realizado, palavra de origem francesa traduzida para encadeamento, modo em que um verso transborda noutro para completar a figura da expressão. É uma forma praticada desde o aparecimento do soneto na Idade Média. Luiz Bacellar foi perfeito, enriqueceu o enjambement. O soneto foi escrito num momento em que o quintal do poeta mostrava-se tranquilo e vivia as últimas horas de um dia cheio de sol e de calor como são os dias de Manaus. Na primeira quadra do soneto diz o poeta:

Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico imaginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.

O enjambement ocorre na expressão “cadeira de embalo”, identificada no fim do terceiro e início do quarto verso. Acontece, no entanto, que, em “deixando relaxar nesta cadeira” o verso está completo, como está pronto o verso “de embalo o corpo bambo de quebranto”. A diferença está na palavra “embalo”. Para completar o primeiro verso no jeito do enjambement, o vocábulo “embalo” apresenta-se como um adjetivo qualificativo de cadeira. No seguinte a palavra ganha outro valor gramatical, passa a ser um substantivo masculino e o verso adquire autonomia verbal:

de embalo o corpo bambo de quebranto.

Pondo em linguagem prosaica diz o verso que no embalo da cadeira o corpo fica bambo de quebranto.

Observam-se em Luiz Bacellar traços do simbolismo plantado no eu profundo do poeta e na musicalidade do verso. Os simbolistas almejavam libertar-se da realidade e voltar-se ao mundo interior, aspirando conceber uma gramática própria, com o uso de letras maiúsculas para incutir um tom de mistério à expressão de um substantivo comum que expressassem motivos elevados. A criação de neologismos é outra característica simbolista no esforço de dizer aquilo que parece impossível de dizer com as palavras disponíveis em suas mãos. Observem que no soneto acima transcrito surgem as expressões “Súbito chega a Tarde” e “Mas logo vem a Noite”, em que aparecem grafadas tarde e noite com iniciais maiúsculas, usual nos poetas simbolistas.

A questão se acentua nos três sonetos seguintes intitulados Três noturnos municipais. No primeiro soneto desta série ele evoca mais uma vez a vida no antigo Bairro dos Tocos, em Manaus, onde residiu o poeta e hoje rebatizado de Bairro de Aparecida. Faz referência às ruas Chora-Vintém e O-pau-não-cessa, já registradas na Balada da Rua da Conceição. Noutro noturno ele celebra a Praça da Saudade, que recebeu esse nome por ser construída onde fora antes o antigo Cemitério São José, desativado com a construção do Cemitério São João Batista, no antigo Bulevar Amazonas. No lugar do cemitério também foi construída a sede social do Atlético Rio Negro Clube, tratado da seguinte maneira pelo poeta, imaginando um baile de carnaval. A decoração da pista de dança traz a forma de um tabuleiro de xadrez em preto e branco, cores do clube usadas nos equipamentos dos seus atletas:

Vão pelo tabuleiro preto e branco
sem rainha, torre ou bispo, pois, em vez
das clássicas figuras do xadrez
é arlequim, colombina e o pierrô manco.

O terceiro soneto é o Noturno da Rampa do Mercado, um dos clássicos do poeta.

Ei-lo:

As luzes das barcaças sonham ventos
quando em águas propícias e serenas
no cansado ancorar brilham pequenas
em almos lucilares cismarentos.

O rio e a noite expandem seus lamentos
e os mastros tristes são candeias plenas
de oleosas saudades e de penas
sirgando macilentos barlaventos…

As águas encrespadas pela brisa
gravam na praia úmida do pranto
das órfãs de afogados o seu canto.

Gregoriano canto, que, em precisa
cadência, vai ecoando em cada peito:
deixai-o descansar: tudo está feito.

É um poema lavrado na linha mais legítima do soneto de Dante ou de Petrarca. Responde à sua natureza de sonzinho, tal a harmonia e o ritmo que emanam de seus fonemas. A mesma música recuperada pelos simbolistas quando escrevem:

Hão de chorar por ela os cinamomos15

ou

Alto levanta a lâmpada do Sonho16

O livro se aproxima do final com Dois Escorços, poemas esparsos e Poemas Dedicados. Nos poemas esparsos reúne peças reveladoras do mais intenso comportamento de vida. Em Anacreôntica para solo de ocarina, Bacellar faz referência ao poeta grego da decadência dedicado a “falsa ingenuidade erótica”, na opinião de Carpeaux. Ocarina é um dos mais antigos instrumentos de sopro situado na família da flauta. O poema é composto de dez quadras em versos de quatro sílabas. O curioso é que o poema é composto de palavras interligadas no esforço de lhes atribuir novo sentido estético, como se vê na primeira estrofe, muito usado pelos simbolistas:

urnadesândalo
conchainsonora
laivodeaurora
cristaldeescândalo

Na última seção do livro estão os Poemas Dedicados, com que o poeta presta homenagem a alguns dos seus poetas preferidos, Fernando Pessoa, João Cabral de Melo Neto, Dante, Rainer Maria Rilke, o heterônimo de Fernando Pessoa Ricardo Reis, Charles Chaplin e Garcia Lorca.

Ao Fernando Pessoa ele oferece duas canções, bem ao sabor do cancioneiro português reanimado pelo poeta de Mensagem. O poeta do mar português (Ó mar salgado, muito do teu sal/ São lágrimas de Portugal) foi, afinal, o maior ídolo do primeiro momento dos jovens madrugadores e um dos poetas mais celebrados e estudados por eles.

Vejamos aí a quadra dessas duas canções de língua genuinamente portuguesa escritas por um brasileiro da Amazônia:

O vento leve do sonho
veio breve e te soprou…
ó meu ser onde te ponho
se só sonhado é que sou?

João Cabral de Melo Neto é homenageado com uma Poética, porque, em verdade, o poeta pernambucano inaugurou um novo modo de fazer poesia, restaurando os valores e as formas da poesia antiga, medieval até, especialmente no uso predominante da arte menor, mas toda ela sobre temática brasileira do nordeste.

Luiz Bacellar refere ao poema de Cabral intitulado O ovo de galinha. O poeta em seu poema em vez de tecer um canto, traça uma análise estética do ovo, objeto formalmente bem acabado e com um sentido de futuro:

No entanto, o ovo, e apesar
Da pura forma concluída
Não se situa no final:
Está no ponto de partida.

É a partir desse andamento que o poeta Bacellar homenageia o poeta Cabral e diz:

como o ovo branco
dentro do breve
pássaro branco
engastado no azul;
como um lírio

Para homenagear Dante, o poeta assume o espírito do III Canto da Divina Comédia, a cena em que Caronte aparece em seu batel para atravessar Aqueronte, o primeiro rio do Inferno. À margem desse rio da morte, o poeta Bacellar avistou serpes em cio/ de entre as penhas e completou a sua visão:

Uma a todas avultava:
– olhar gelado e terrível
Volveu-me esse anjo de pedra.

E vi (sem ver quem me guiava)
onde, torcida e invisível,
a flor venenosa medra.

Outra figura de poeta muito influente entre os madrugadores foi Rainer Maria Rilke (1875-1926), austríaco de língua alemã, tendo escrito igualmente em francês. Rilke marcou a poesia brasileira a partir da geração de 45. De certo marcou a poesia do mundo e sua vida artística, por força do seu relacionamento com figuras expressivas do ambiente intelectual europeu do seu tempo, entre os quais o célebre escultor francês Auguste Rodin (1840-1917). Sua convivência com Rodin despertou-o cada vez mais para a libertação da influência religiosa em sua formação humana. Aliou, enfim, as duas tendências e realizou uma obra importante. Possuiu vida amorosa tumultuada e lírica, e sua morte deu-se em decorrência da infecção adquirida pelo ferimento em um dos dedos quando colhia uma rosa no jardim para oferecer a uma dama. É esse o episódio a que se refere Luiz Bacellar em sua homenagem, como está em duas das estrofes do Treno para Rainer Maria Rilke:

Ai, rosa! – contradição
sonho infrene de quem pode
e não pode, ao mesmo tempo,
separar-te as duras pétalas
sem ferir a inquieta mão…

Ai, rosa! – folha de espada,
de súbito, embaciada
pelo alento da aflição

Em seguida é Fernando Pessoa, que sofreu uma experiência estética e mística nomeada por ele de drama em gente, sistematizada pelos especialistas como Ficções do Interlúdio. Verificou-se o fenômeno em seu estilo e visão de mundo, com a manifestação de vários entes com estilos próprios a que ele chamou de heterônimos, que são cinco. O escolhido por Bacellar é Ricardo Reis, autor dedicado à temática do humanismo clássico, talvez por isso, detentor de sua preferência. Em Ode a Ricardo Reis Bacellar celebra o heterônimo neoclássico de Fernando Pessoa:

E assim também espero o festim mágico
Em que hei de ser contigo
No mármore perene.

Charles Chaplin foi um dos ídolos da geração de Bacellar e, como tal, ele o incluiu na galeria dos seus homenageados. E o fez com o Soneto para Charles Chaplin:

Entre lágrimas e riso a rosa nasce,
funda-se o mito. Se desfolha agora
entre enleio e ternura. E se incorpora
ao povo, a todos nós. A obscura face

se faz clara nos giros da fugace
dança: entre gesto e gesto comemora
nova inscrição no anúncio dessa aurora
de que és prenúncio, embora a condenasse

o desamor do mundo. (Tão remoto
é o plano ao qual nos levas nessa fuga
que o próprio sonho nos parece ignoto!)

Se o teu poder de riso nos subjuga,
o teu poder de lágrima, por fundo,
se faz em claridade. E lava o mundo.

Com um poema escrito em Galego, intitulado Puro Lamento Gallego, em memória de Federico Garcia Lorca, Luiz Bacellar encerra a lista dos seus homenageados. Um belo poema que não desmerece a memória do poeta pranteado. A paisagem da Andaluzia, a terra de Lorca, é retratada no lamento e lembrada pelas guitarras soando no meio dos trigais. A alegria dos canteiros de papoulas e as águas cheias de história e de lendas do rio Guadalquivir. Jamais se poderia sentir sabor de sangue no pão cosido nesse trigal. Só as papoulas repetiriam o sangue do poeta. Ninguém fica isento de emoção na terra dos ciganos. Grande parte da obra de Garcia Lorca (1898-1936) tem raízes na Andaluzia. Yerma, uma de suas peças mais conhecidas, conta o drama da mulher do povo que não podia ter filhos e engendra os acontecimentos que culminam com a morte do marido, estrangulado por Yerma. O Romanceiro Gitano, é o seu mais notável livro de poemas, concebido com os motivos e a vida feiticeira dos ciganos residentes em Sacromonte, bairro de Granada, há mais de seis séculos.

Luiz Bacellar cuida ainda do estilo do poeta explicitado no seu lamento, como está em uma das suas estrofes:

Quen’steve, se o vento passa
somando a água do rio
mentre as papoilas e o trigo,
un longo xemido oubiu…

Ay, Frederico Garcia
te plantaron num trigal.

Frauta de Barro em si é um acontecimento, só ele já consagraria um poeta, mas, na linha de sua poética oferece, por fim, o painel temático do que seria a obra futura de Luiz Bacellar. As sementes de Pétalas do Crisântemo e do Quarteto, florescem nesse livro. É bem um livro maduro de estreia. Um momento em que o poeta anuncia o tom das suas possibilidades temáticas e formais, confirmadas na obra futura.

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15 Alfonso de Guimarães (Ouro Preto/MG 1870 – Mariana/MG 1921).

16 Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro/SC 1861 – Curral Novo/ PI 1899)

(Capítulo Segundo do livro: Luiz Bacellar e sua poesia, do autor).

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