Manaus, 27 de julho de 2024

Luiz Bacellar e sua poesia (V)

Compartilhe nas redes:

Poemas inéditos

Não ficou nada inédito de Luiz Bacellar. Doze poemas não reunidos em livro, que até então estavam totalmente inéditos ou divulgados por outros meios, saíram no volume de sua poesia reunida23. São poemas que ficaram de fora dos seus livros talvez por não possuírem marcas da unidade tão procurada pelo poeta, na organização de suas coletâneas de poemas. Todos, entretanto, lavrados no mesmo nível de sua poética geral. Em verdade ele vivia intensamente os seus versos, mas escreveu pouco levando em conta os 84 anos de vida. A obra reunida possui 278 páginas, das quais 20 páginas constituem os textos de abertura da edição e 74, páginas de fortuna crítica. A parte dos poemas ocupa apenas 184 páginas. Não aceitava encomenda. Dizia-se estar sempre ocupado com algum trabalho intelectual quando chamado para qualquer tarefa que fosse. Certa feita revelou-me sobre o projeto de uma coletânea de contos, afinal irrealizado, na espera de tempo e vagares para levá-lo ao papel. Estava sempre com o tempo tomado, de certo com os planos armazenados na imaginação, como a curiosa ideia de mudança de domicílio para uma pequena cidade plantada à orla do mar, cidade essa que jamais revelou o nome, onde se dedicaria à pesca marinha. Ao assumir uma cadeira na Academia Amazonense de Letras, jamais entregou para publicação na revista da instituição o discurso de posse, com o argumento de que nunca estava concluída a revisão do texto. Fez uma viagem à Europa, deixando dessa aventura um poema que está entre os inéditos intitulado Soneto antigo, datado do Vaticano, 30 de abril de l959.

Ele era assim, mas não deixou nada inédito.

O primeiro poema desta série é uma Cantiga do amanhecer:

O ovo do sol
canta nas landes
uma cantiga de gemas
com as claras nuvens
batidas de ventos.

O modelo do poema é um ovo de inhambu, ave terrestre também encontrada na Amazônia. Seu ovo possui a casca azul como o céu e se abre em passarinhos, também como o céu. Mas antes os passarinhos chilreiam no choco dentro desse ovo. Depois a manhã se transforma no touro do dia e não se esquece de anunciar um cortejo de borboletas:

(…) que começou quando o voo
do ovo se derramou.
Amanhecia.

Nesse ritmo estão plantados esses poemas. A partir de determinado momento Bacellar passou a usar bengala e os seus amigos o presenteavam com belos exemplares desse objeto de adorno masculino. Ele realmente usava a bengala como adorno, porque não necessitava de usá-la como elemento de apoio no caminhar. Suas bengalas eram servidas de castão de prata ou de marfim e de marfim era a que o motivou a escrever o Punho de bengala, um dos seus inéditos. Esse era de marfim com a forma da cabeça de um cão, objeto que propiciou ao poeta acrescentar uma renda de imagens e a sugestão da postura do cavalheiro ou senhor, ou da senhora que a tenha usado em algum momento, imagem sintetizada nos seguintes versos:

A mão que o empunhou era um guante doiro,
rubis cravados, em loiras falanges,
ouriçadas unhas (…)

Depois, tomou o mote da canção de fraternidade de José Marti (1853-1895) cultivo una rosa blanca e, ao contrário, diz na Canção crespa:

Cultivo uma rosa brava.

Parece irritado e anuncia que a sua rosa não é rosa da fraternidade, mas da imodéstia, da soberba, desesperançada, uma rosa brava. Quando diz que a sua rosa é vermelha é para compará-la ao vermelho das uvas encravadas no seu brasão d’armas: é a rosa da arrogância, como está na última quadra desse poema:

É uma rosa de arrogância
Não é de humildade não,
Cultivo uma rosa brava
No fundo do coração.

Tudo isso puro fingimento24 de um ser que era capaz de cultivar amizade com criaturas tão humildes quanto uma aranha e uma cadelinha, conforme aludi em outras páginas deste livro. Era também capaz de gestos de solidariedade como abrir mão de editar o seu livro de estreia, já premiado com láurea nacional, a favor do livro de um desconhecido.

Em As virtudes teologais, fala o poeta que encontrou a Fé, a Esperança e a Caridade, em três estudantes da Escola Técnica, que iam pelas ruas Visconde de Porto Alegre e Avenida 7 de Setembro, em Manaus.

O fato sucedeu como ele relata:

(no tempo antigo elas se mostravam
esplendorosamente nuas
aos olhos dos filósofos e poetas
mas, desta vez, estão
fardadas de sombrio azul-marinho.)

Refere-se o poeta às figuras esculpidas em mármore na tradicional visão escultórica das divindades greco-romanas. Parece chocante a imagem crua do poeta, se se levar em conta as Virtudes Teologais concebidas pelo cristianismo. Naquele caso, sim, neste caso não. As três virtudes só poderiam mesmo revelar-se aos filósofos e poetas da antiguidade cristã com a transcendência dos anjos e não vestidas em trajes tão nuviosos e prosaicos. Na concepção grega ali estavam Eufrosina que presidia a alegria e que nos tempos antigos representava a Caridade; a Esperança que naquele tempo se chamava Tália e assistia a Juventude; e a Fé antigamente chamada de Aglaê, de onde demandava a Beleza. Essas três Graças habitualmente acompanhavam Vênus e Cupido, na mitologia helênica.

A verdade é que o poeta vai-se desvencilhando no poema, da enrascada em que se meteu, ao se deparar com as virtudes teologais ao vivo, nas ruas da cidade de Manaus.

Nestes poemas estão igualmente os seus melhores exemplos de verso livre.

Embora se suponha que o verso livre seja mais simples de escrever que o verso medido, a coisa não é também assim tão fácil. O verso medido necessita que se lhe estudem as regras da pontuação, do ritmo e das rimas, numa artesania cheia de pormenores técnicos. Aprendido isso o poeta está com a vida ganha. Enquanto que com o verso livre a regra está em não se ter nenhuma regra. O ritmo é imposto pela emoção do poeta e as palavras como que precisam ficar de mãos dadas e o poeta atento para não escorregar no simplesmente prosaico. O verso livre, portanto, é isento de qualquer regra, ou a liberdade é a sua regra fundamental.

No poema Um pincel de barba, o poeta começa por falar dos materiais de que é composto esse instrumento de prática higiênica e como adquiri-lo. São feitos de pelos de texugo ou guaxinim nordestino, ensina o poeta, instrumento hoje arcaico, raridade de pouco interesse no ato de barbear. O poeta, então, de hábitos conservadores, diz que após ter sido usado para rapar a cara, com o pincel exposto ao sol para secar, chega um temporal:

E veio aquela
violenta ventania
o transforma num cometa:
peluda cauda esparramada,
o cabo de leucita faiscante,
– semente de dente-de-leão
ao vento abrindo o paraquedas natural
vai cair do vizinho
no quintal.

Por fim o poeta fica tentado a deixar o pincel de barba por ali sobre o monturo, como uma semente cristalina, uma flor.

Em verdade o pincel não desapareceu.

O Mar da Bahia é o produto de uma temporada que passou com sua irmã em Salvador. Fala de muita coisa legítima nos costumes, na culinária, nas crenças e na paisagem do mar da Bahia. O ponto central são esses três mínimos versos:

(Vovô Mem
dorme
na Sé).

Nessa leitura convertamos Mem e Sé em Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil, que faleceu em Salvador e está exumado na Catedral da cidade, para desvelar o intento do poeta.

Dizia ele em conclusão aos seus estudos de heráldica, que a raiz de sua descendência remontava à história de Portugal e do Brasil, com Mem de Sá, meio irmão do poeta Sá de Miranda, também já acenado neste livro.

Em seguida vêm os quatro sonetos também inéditos.

Considero um dever a transcrição do Soneto antigo, escrito em uma visita que o poeta fez ao Vaticano, a 30 de abril de l959, em que se redime de tantas dores e experimenta a esperança de prosseguir em sua missão de poeta, a despeito de um dia, ante a orgia de cores da Primavera, sentir que só o seu coração não reverdecia:

O vento esculpe em nuvens pela tarde
de altos castelos solitários cumes.
Só tu, ó luz puríssima, resumes
a nódoa antiga que ao meu peito encarde.

Chegada a Noite, que eu jamais alarde
os amores que tive, e o ciúme
que suscitei entre rosados numes
e que por níveos colos se persuade.

Se entre sonhos te vejo em ti descubro
graças ocultas que eu, cego, não via
antes que chegue maio e finde outubro

(ah! Primavera ansiosa, palpitante,
revestida de cores…) neste dia
que eu erga uma vez mais a voz. E cante.

É um dever ainda levar ao leitor a oportunidade de conhecer os outros três sonetos dessa série:

Vesperal

As pombas voam quando toca o sino
notas plangentes ao cair da tarde.
A estátua acende a lâmpada que arde
na lembrança dos tempos de menino.

E eu vou discreto, sem qualquer alarde,
caminhando na praça sem destino.
Um ventinho de chuva venta fino
pelos ramos das árvores… É tarde:

Logo a noite virá com suas sombras
e se aninhando nos beirais as pombas
enchem de arrulhos os lintéis da igreja.

Em tudo a placidez da Ave Maria
me invade o coração. No fim do dia
só me resta a saudade que negreja.

É a praça de São Sebastião em Manaus.
Sempre um toque de saudade do passado:

Alumbramento

Numa rede de rosas e de cravos
tu repousas o corpo alvinitente
nu! – de uma nudez tão transparente
que a luz te veste com reflexos vagos…

Os braços flexionados num aparente
desleixo sob a cabeleira. Afagos
pedes, beijos trementes, mimos magos:
gestos lascivos de ternura ardente…

Mas te vejo com a mente na lembrança,
na saudade tenaz, que tudo alcança.
Meu sonho lindo, meu anelo ansiado…

Vives em mim como um jardim secreto
que só eu tenho, oculto num discreto
desvão longínquo deste meu passado

Agora é um quadro multicolorido:

Aquário

Vê: nesse claro cubo de água viva,
verdejante de relvas submarinas,
o festival de bolhas da fugida
dos acaris por seixos e conquinas;

repara a fluorescência esmeraldina
dos cardinalis entre véus de betas;
vê como a joia tenra destes tetras
inflama o rosa em prata dos carás.

Aqui miras a vida: uns devorando
e outros, solitários, espreitando
o gregário cardume dos neons;

e esse peixe guerreiro da Coreia:
numa dança lilás, festa de bruma,
tece o seu ninho nupcial de espuma

Vê-se aí o conhecimento do poeta sobre a vida dos peixes. O sentido plástico do seu verso na construção do poema.

Fiz questão de transcrever esses quatro sonetos, integralmente, para que se avaliem todos nós os leitores, a beleza, a perfeição e, ao mesmo tempo, a simplicidade, a forma como está no primeiro verso da segunda quadra, repara a fluorescência esmeraldina. O verbo reparar é utilizado na norma culta, quando no sentido de concertar um objeto, corrigir comportamentos (atitude reparadora), retificar danos provocados por atitudes intempestivas. Na forma desse soneto, a palavra está no sentido de olhar, observar, geralmente usado na linguagem coloquial, logo inflamada pelas palavras invulgares fluorescência esmeraldina.

Aí está, sem dúvida, o pulo de gato do poeta erudito Luiz Bacellar, conhecedor científico dos elementos de sua poesia, frutos, flores, aves, peixes, a vida no ar e no mar, os passos relativos à propriedade com que adota o humanismo clássico e a mitologia helênica, tudo isso com o bom gosto ao usar aqui e ali elementos da linguagem popular, sem ser popularesco e prosaico. Os seus leitores estão em todos os níveis de conhecimento.

_________________

23 QU4RTETO (obra reunida), Editora Valer, Manaus, 1998.

24 O fingidor de Fernando Pessoa.

Visits: 80

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques