Sinfonia de palavras – Continuação
O Rei era católico, mas vivia em muitas lutas, inclusive com os seus herdeiros por causa dos filhos bastardos que gerara. Nessas desavenças a paz reinou inúmeras vezes graças à interseção da Rainha Isabel.
Ao ajudar os carentes a imagem de D. Isabel ia crescendo na veneração do povo. Certa feita, quando levava pão aos indigentes, encontrou com D. Diniz que lhe indagou:
– O que trazes no avental?
E a rainha, para não desagradar o esposo, respondeu:
– São rosas, meu senhor!
Mas o rei não acreditou nisso, pois estavam no inverno que não é tempo de rosas, obrigando-a a desdobrar o avental e mostrar o que em verdade levava.
D. Diniz, surpreso, viu que realmente a rainha levava uma braçada de rosas.
Por causa da sua beleza e do seu perfume, sem embargo dos espinhos, essas flores possuem muitas histórias maravilhosas.
Essa é a rosa que o poeta celebra numa das estrofes do seu
Quarteto:
Rosa de lumes claros, de olorosas
opalescências, ciciar de prece,
erguida à virgem pelo que padece,
para tecer grinaldas luminosas!
Aparece também o rio, discretamente, até que
(…) chega a noite com o sono e com o repouso.
O terceiro movimento é a Carta Lunar, parte referente à geografia noturna do firmamento. Não só a lua é objeto do canto, mas também a Via Láctea:
(…) que é um manto
salpicado de sal, de prata e pranto.
Prata da clareza e pranto do pesar, de sua sonata em si bemol menor.
Mas é a lua que domina esse movimento, a lua, o corpo celeste de maior influência sobre o poeta:
Esta lua é dos loucos. E eu pressinto
que vizinho já sou dessa loucura…
Ou a imagem trabalhada no seguinte soneto:
A lua é um touro oculto atrás das nuvens
deixando ver os áureos cornos fora:
os ventos são seus fôlegos e a aurora
o faustoso holocausto desse touro
que governa as marés e o catamênio
da virgens. (Que poder tens sobre mim?)
cobri a meus olhos tão funesto agouro,
ó plúmbeas nuvens! Bem depressa! Assim…
Ísis, Istar, de Artemis arco ebúrneo,
Foice argêntea de Ceres, suave nádega
Iluminada de uma ninfa nua:
tudo isso pode ser. Pra mim agora
és um touro irreal que me acomete
ó pluriforme e poderosa lua!
A lua está apreciada em suas várias fases. A lua nova é o touro oculto atrás das nuvens a exibir os chifres e a foice argêntea de Ceres, para cuidar dos campos de trigo e de outros cereais; da rainha do céu tal como Istar. Também a lua é deplorada, paradoxalmente, quando chega a aurora que apaga a sua luz e mata o animal que ela representa:
o faustoso holocausto desse touro.
É o arco ebúrneo de Artemis cuidando dos animais da floresta; e, quando lua cheia, é a:
(…) suave nádega
iluminada de uma ninfa nua.
O poeta se pergunta (Que poder tens sobre mim?), se podes, lua, governar as marés e o catamênio das virgens? Por vezes os olhos pressentem um funesto agouro, com a lua tisnada de nuvens negras. Mas tudo passa e depende da posição da lua que é tão forte que altera a agitação dos mares. A geografia se afina com a poesia para explicar o movimento das águas. A maré alta acontece no mar de sizígia, de águas vivas, quando os corpos celestes ficam em conexão sol-lua-terra. A maré baixa acontece nas águas mortas quando esses corpos celestes ficam em quadratura. Mas, em verdade há forças que mexem no organismo das pessoas. Uma ilustre médica pediatra quando via a lua cheia, pressentia que ia ser chamada durante o sono para atender o nascimento de crianças. Por fim esses fenômenos ocorrem em decorrência do movimento não apenas da lua, mas principalmente desses três corpos celestes. No entanto tudo fica lançado nas costas da lua, que sempre está chamando a nossa atenção nos movimentos do céu, pois vivemos perdidos na terra e ofuscados pelo sol.
O quarto movimento é a Carta Náutica. É uma das partes mais extensas como o segundo movimento, composta de doze sonetos. Aí está o movimento do mar, dos animais marinhos, das águas, do horizonte, dos marinheiros e pescadores, retomando em alguns traços o tema da lua.
É impressionante o poder da palavra. Não consta que tenha tido o poeta alguma experiência com o mar. O fato relevante é que muitos dos subtemas encontrados neste movimento de sua sonata podem ser identificados pela história e pelo conhecimento da geografia física dos oceanos. O poeta era um leitor fervoroso. Lia de tudo, da Enciclopédia Britânica às histórias em quadrinhos lançadas nas páginas lúdicas dos jornais. Conhecia cidades europeias sem ter ido lá, melhor do que muitos dos seus visitantes, os restaurantes, as casas de espetáculo, as lojas de produtos finos e muito mais. É a Carta Náutica no quarto movimento de sua sonata, um exemplo indiscutível do poder da palavra na construção de um poema. Esses doze sonetos mostram, por meio de imagens e metáforas prodigiosas, a paisagem e o movimento dos navegadores, os naufrágios, os gritos de comando no meio das tempestades, a serena Anfitrite, deusa do mar, tecendo rendas de espuma para o seu noivado. Fala de um curtido marinheiro que ante um evaporito espanta-se e exclama:
“Eram as próprias Fontes dos Infernos
Que o fogo-de-santelmo alumiava!”
Como define a maior criatura do mar?
São icebergs doidos as baleias
velhas, cujo potente coração
fá-las, de fúria e de malícia cheias,
híbridas de montanha e de tufão!
Em resposta à técnica musical em sua sonata o poeta retrabalha o tema de Anfitrite, surgido no terceiro movimento, no seguinte soneto:
Vede. A irisada concha do argonauta
lição de simetria nos ensina:
seu vórtice melódico se afina
ao som floral de um trêmulo de flauta.
Flauta sonante do mar, do mar sem pauta;
ora com trilo agudo, ora em surdina:
pastor errante em líquida colina
apascentando as ondas para o nauta.
Vazia do animal que nela mora
a rara porcelana lhe transmite
translucidez de opaco tom doirado.
E, no friso em debrum que lhe decora
a alada espira, há rendas que Anfitrite
teceu de espumas para o seu noivado.
Aí o poeta demonstra manifestos conhecimentos da flauta, um dos instrumentos do seu quarteto. Está aí a flauta do músico e a flauta do pastor. Faz referência subliminar à ocarina que é um tipo de flauta produzida de porcelana, neste caso numa autêntica metáfora construída com a concha das ostras e muitas outras conchas produzidas pelo mar.
No suporte dos sonetos, Vivaldi elaborou os quatro concertos sobre as estações do ano; com o suporte da estrutura e da forma sonata, Luiz Bacellar compôs o seu poema. No último soneto que é a última estrofe do Quarteto, o poeta celebra o verbo abrindo as claves e o silêncio de pesadas claves. Clave é um termo usado na notação musical. É uma chave de abertura do pentagrama, as linhas que recebem os signos musicais. A clave é o elemento que determina o nome e a altura da nota musical a ser composta. Para Luiz Bacellar a clave é a mesma chave com que o poeta abre a poesia do verbo e encerra o poema com o silêncio do som.
Eis o soneto inteiro:
Nos meandros do verbo abrindo as claves,
supremas solidões de angústias tensas
num denso tumultuar de asas suspensas
de sombras vivas em revoadas de aves,
guardas as mais recônditas sentenças:
negros silêncios de pesadas chaves,
marulho surdo de perdidas naves,
proas rompendo o duro mar que pensas…
Mar de secos sargaços e de ossuários
com as amplas solidões, vastos silêncios
das planuras mortais do irrevelado,
arcabouços de sonhos refratários
que, alta corola calcinando-os, vence-os
o sol do espanto, lívido e nevado.
A poética de Luiz Bacellar deixa-nos a pensar sobre o homem como síntese da vida e do pensamento. Desde a criação o homem veio ao longo de sua dura caminhada somando experiências e sabedoria. Em termos literários, isto é, do trabalho com as letras podemos ter, ao longo da história, uma tênue visão desses acontecimentos. Dizem os evolucionistas que o homem é o produto da linguagem. Mas, a poesia, embora seja um fenômeno humano identificado desde a sua manifestação em contato com a realidade, tornou-se conhecida na posteridade a partir do momento da invenção da palavra escrita. E aí se concebeu o conhecimento da poesia e de sua expressão. Das formas com que as palavras revelaram a emoção e o pensamento humanos. O poeta é, portanto, o agente mais efetivo na operação da linguagem. Se ele usa destes ou daqueles métodos para se expressar, de formas e mensagens assimiladas ao longo do tempo, às vezes reanimadas por artistas ousados e, por vezes indecifráveis, oferece ao leitor a oportunidade de também criar, mesmo que as suas ilações não se coadunem com aquilo que o poeta expressou no seu poema. O que se deseja é que seja poesia em verdade a matéria do seu trabalho. É o fenômeno do fingidor consagrado por Fenando Pessoa em sua Autopsicografia, que representa uma autêntica poética transcrita a seguir:
O poeta é um fingidor Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Vimos que Luiz Bacellar andou por vários caminhos para construir a sua obra. Só não deixou de realizar poesia substantiva. A poesia. Vimos que usou inúmeras formas e imaginou múltiplos mundos e tempos históricos. Marcou-lhe a expressão a influência realista e naturalista do parnasianismo em alguns traços do seu primeiro livro. O romantismo e o simbolismo na musicalidade do seu verso e no idealismo de vida. É neoclássico ao rimar a mitologia da sociedade moderna com a do humanismo clássico. Somou a unidade à beleza marcante no Renascimento. Celebrou os mitos da vida urbana de Manaus e os sabores, as cores, o ar e as águas do mundo amazônico, os fantasmas de sua alma, as criaturas do seu espírito e o infinito inalcançável dos seus ideais. Mas em tudo vemos que jamais deixou de trabalhar a poesia, nunca renunciou à sua vocação de poeta, mesmo quando não tinha um lugar para dormir, ou teve de enfrentar os seus momentos de maior solidão.