Nas duas semanas últimas escrevi sobre outubro, falando de primavera e flores e de amores, de sonhos e de desejos, e manifestei, contrariado, minha inconformação com estarmos todos obrigados a respirar ar contaminado por incrível nuvem de fumaça, naturalmente tóxica eis que oriunda de queimadas que se repetem na floresta que já foi havida como o pulmão do mundo e, com humildade, registrei estranheza por não se haver adotado providências eficazes para nos devolver a todos a desejada salubridade do ar. Foi preciso que chovesse para que os hospitais locais não enfrentassem a crise de que falaram autoridades sanitárias, e hoje, ao escrever estas linhas, constato com alegria que não há fumaça a ser inalada por nós pobres mortais. Mas também me obrigo a registrar, por dever de princípios, que ouvi de fonte oficial que o poder público irá treinar valorosos bombeiros recentemente afinal incorporados ao aparato militar, com vistas a não permitir que enfrentemos tensão igual no ano próximo. Encerro aqui o assunto, pois.
Deixei posta a promessa de que, das festividades todas do outubro findo, falaria hoje sobre a bela cidade que aniversariou a 24 e a respeito da qual mestres como Robério, Genesino, Mário Ypiranga e Arthur Reis, dentre tantos, muito já falaram, todos com amor intenso e respeito profundo. A mim, que nem sei tanto, dou-me apenas a ousadia de falar de lugares quase todos hoje muito diferentes e de pessoas que, na simplicidade dos bons, construíram, modificaram e amaram a Manaus que eu vi.
Começo por lembrar do Boulevard Amazonas, hoje Álvaro Maia em homenagem ao governador que a tantos apaixonou, exímio orador, poeta, cultor do idioma e herdeiro político da dissidência entre o PSD e a UDN, que acabou por permitir a eleição de Plínio Coelho, do PTB. Foi ali que vim ao mundo, em casa de dois pisos, um sobrado de madeira, de onde Altacir e Altamir, irmãos vindos do primeiro casamento de Lourenço, fugiam para namorar além do horário permitido, usando lençóis amarrados uns aos outros (uma “teresa” feita de pano), por onde desciam, escondidos, e subiam no retorno, até que, havendo chegado de viagem, o velho marinheiro, jovem ainda, resolveu esperá-los sentado em sua cadeira de embalo após retirar da janela a “corda” de subida. Não sei o que houve, então.
A casa ficava antes do “Entroncamento” (hoje esquina do Boulevard com a Djalma Batista) e logo depois do que agora é a rua Ferreira Pena, mais exatamente onde residiu o matemático e professor Cleomenes Chaves, pai de Cláudio, médico com louvor, e de Manoel, o Maneca, político, deputado, governador em exercício e presidente de honra do Nacional Futebol Clube, em cujo time jogou José, o segundo irmão, por algumas vezes enfrentando o América de João, o primeiro.
Ali, na simplicidade da casa e na elegância do lar, cheguei conduzido pelas mãos de “dona Eudócia”, a parteira que morava por perto, com a bela neta Fátima, na entrada do Seringal Mirim, hoje avenida Djalma Batista, ao lado da “Preguiça”, variação de rua que virou Beco do Macedo, lugar do belo estádio de futebol Parque Amazonense e onde residia Domingos Lima, o melhor violonista da cidade. Foi ela a me retirar do ventre de Sebastiana e a muitas vezes me acariciar, como a mostrar a intensidade da relação da parteira com a maternidade. E ali no Boulevard residia um amigo de meus irmãos, juiz de futebol, que em brincadeira ameaçou-me de castração, o que me impediu, por longo tempo, de caminhar tranquilo pelas cercanias quando o sabia presente.
Depois, mudamos para a Avenida Ayrão, em casa que tinha a vizinhança de “dona” Rosa, tia do Ronildo, que se fez boêmio e bancário, e de “dona” Isaura, ao lado de quem ficava a casa do Dedé, craque de futebol, respeitado Oficial de Justiça e irmão de Raimunda, menina e mulher especial que a todos alegrava com pureza e ingenuidade.
Meus pais pagavam pelo aluguel da casa o valor de quinhentos mil réis e se isso sei é porque em manhã de domingo entrei em casa tomado de alegria por haver achado no chão de barro que fazia a rua (não havia asfalto, então, o paralelepípedo não era comum a todos os lugares) uma cédula exatamente desse valor e que me fez ouvir de Lourenço que se eu havia encontrado o dinheiro é porque alguém havia perdido, o que me obrigava a devolver ao lugar onde o achei. Inesquecível lição!
Fui levado a frequentar aulas no Grupo Escolar Antônio Bittencourt, que naquela altura havia passado a funcionar no prédio do Grupo Plácido Serrano, onde não havia sequer calçada e a ventilação se fazia pela própria Natureza. Era na avenida Ayrão, no lugar onde hoje há a biblioteca Manoel Bastos Lira, da UFAM, e que ficava na frente da “Coreia” campo de futebol em que jogavam os adultos (onde até fraturaram o nariz de José Braga) e que depois deu lugar ao hoje belo prédio do hospital Getúlio Vargas. Pois bem, aos que hoje reclamam, com razão, da precariedade da refrigeração de escolas públicas por aqui, digo que tempo houve em que uma mesma sala de aula teve que abrigar duas turmas de alunos de escolas diferentes. E, proclamo, nem isso abalou a qualidade do ensino.
Ali fui aluno de Maria de Lourdes Mercês, que não fazia de sua negritude nada além da cor de sua pele, que me ensinou as primeiras letras e me tomou pela mão, por dois anos, para me entregar à maestria de Sebastiana Braga, depois de ser aprovado para “pular” o primeiro ano “C” (o terceiro do que hoje se conhece como pré-escola) com todo o rigor que impunha a Diretora Janet do Rego Barros Serejo. Não éramos poucos os que, entregues a cuidados tão seguros, quase angelicais, íamos sendo preparados para, terminado o 5º ano, disputar vaga no curso ginasial no que então se chamava Exame de Admissão. Foram meus contemporâneos Maria Justina, a irmã com quem tanto aprendo, e Jayme, primo filho de Gustavo e Junília, corações e almas dadivosas, que moraram algum tempo fora de Manaus e que o deixaram entregue à irmã Marília, a mais velha, com ele hoje já em plano outro da vida.
Em frente ao prédio do Grupo, havia a mercearia de “seu” Olímpio, esposo de “dona” Nenem, pais de Gerado e de Geralda, depois esposa de Azemilkos, um dos filhos de Mário Ypiranga. Mais abaixo, Lafayete Vieira, que brilhava no futebol do Fast Clube e que depois se fez juiz e desembargador de nosso Tribunal de Justiça. Bem próximo, os Piola, Antonico e Estrela, pais de Zezé e dos irmãos Edson, Antônio e Zequinha, que tanto projetaram o futebol da terra além-fronteiras. Mais para baixo, quase em frente à nossa casa, ao lado de “dona” Elita, mãe de Cleide e de Neide, ficava “dona” Nazaré Assis, que guardava como assento a raiz de velha mangueira que lhe parecia confidente. E se mais descêssemos, a “casa do canto”, de Gilberto, Nonato, Chico, Marília, eles funcionários do Banco do Brasil.
Não posso deixar de registrar, da Ayrão, a inocente, alegre e bela Cotinha, também especial como eram, daqui do centro da cidade, Carmem, “a doida”, Alfredinho, Bombalá e o ceguinho que a todos esperava ao lado do cine Guarani, ou do Polytheama, em busca de ajuda e de carinho.
João já estudava no Colégio Dom Bosco e José no Estadual quando Maria Justina foi aprovada no Exame de Admissão para o Instituto de Educação, que substituiu a Escola Normal que formou Sebastiana, a mãe. E fui eu, então, buscar a mesma alegria no Gymnásio, onde ingressei, não com as notas que meus pais desejavam, por exigentes, e onde fui assistir, já na primeira série do curso ginasial, o 6º ano de hoje, ao maior movimento estudantil de que se teve notícia, então, e que levou à exoneração do diretor do Colégio, em ato praticado pelo governador Plínio Coelho, e à nomeação de jovem padre, Manoel Bessa, para seu lugar. Ali fui recebido com o então famoso “batismo” (hoje trote), pintado meu corpo praticamente todo e depois jogado nas águas do chafariz da praça da Polícia Militar, em frente à escola. E ali também fui guardião das balizas do Colégio, à frente do primeiro pelotão, no desfile de 7 de setembro, com outros dois meninos de 11 anos de idade.
São desse tempo Osiris Silva, hoje economista e professor, Paulo de Tasso, que tirou o primeiro lugar e recebeu bolsa que lhe permitiu continuar os estudos no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, Wilson Benayon, corneteiro-mor responsável pelos toques de ordem unida para a “tropa” e para a “banda”, depois advogado e vereador, Maurílio Galba Monteiro, filho de Mário Ypiranga, desenhista como poucos, e tivemos a glória de ser alunos de inesquecíveis Antenor Sarmento Pessoa, de matemática, Agenor Ferreira Lima, de Latim, Mário Ypiranga, de Geografia, Elvira Borges, de Canto Orfeônico, Manoel Otávio, de História, Padre Vicente, de Português, Waldir, de Educação Física, e os que por ali permaneceram ainda tiveram o privilégio de aulas de Raimundo Said, Afonso Nina, Manoel Bessa, Fueth Paulo Mourão, Hamilton Botelho Mourão e tantos outros.
Nessa época, quando já morávamos na rua Marcilio Dias, fui muitas vezes ao porto para esperar a chegada do navio Industrial, ou do Ayapuá, ou da lancha Minas Gerais, todos em que Lourenço atuava como comissário na busca honesta de nossa manutenção. E ali morávamos nos altos da movelaria Queiroz, ao lado da casa que servira de sede para o Partido Trabalhista do Amazonas e para o Sindicado dos Taifeiros, que Lourenço dirigiu por duas décadas, onde morou logo após a viuvez. Em frente a nós, a Ourivesaria dos pais de Bernardo Cabral – casa onde seu pai faleceu descendo as escadas – o escritório dos Daou, pais e irmãos de Phelippe, e a loja de Thales Loureiro, pai de Jorge Alberto, de Jayme Arthur e de tantos outros amazonenses ilustres, tio de Ligia e de Fernando, do Café cuja moenda ficava ali na Joaquim Nabuco, logo depois da rua dos Andradas.
Bom, depois fui para o Instituto de Educação, mas isso conto na próxima palavra.
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