Manaus, 22 de novembro de 2024

Mandioca não é aipim!

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“Estou saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil.” (Presidente Dilma Rousseff, no lançamento dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas)

As comunidades indígenas do mundo poderão se confraternizar, com a realização dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, que acontecerá na cidade de Palmas, Capital de Tocantins, no período de 20 de outubro a 1.º de novembro deste ano. Os preparativos começaram desde o ano passado, e o lançamento oficial aconteceu há coisa de uma semana (23/06/2015), na Capital Federal.

Foi durante o tal encontro que a Presidente Dilma, depois de saudar “a todos e a todas”, “os representantes e as representantes” das dezenas de etnias que ali compareceram, inclusive delegações estrangeiras, saudou a mandioca: “Então, aqui, hoje, eu estou saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil.”

Possivelmente inspirada pelo nome da capital tocantinense, Palmas, sede dos ditos jogos, foi que a Presidenta aproveitou para aplaudir a mandioca: “como um dos alimentos essenciais que contribuíram para o desenvolvimento de toda a civilização humana.” E nisso Dilma estava coberta de razão. A mandioca, o arroz e o milho constituem as três principais fontes de carboidratos nos trópicos, desde os tempos imemoriais.

Mas, ai, ai, ai! A mandioca na boca da presidente deu no que deu. Opositores do governo e gozadores de plantão caíram de pau. Falaram, entre outras coisas absurdas, que a presidente estava querendo “enfiar mandioca no povo”; e que “a Mãe do Pac havia virado a Mãe Dioca”.

Não foi a primeira vez que a pobre da mandioca deu o tom folclorista na pauta governamental.

Já tivemos até uma Constituinte da Mandioca, como ficou conhecida a constituinte convocada pelo então Príncipe Regente, D. Pedro I, em junho de 1822, para elaborar o anteprojeto do que seria a primeira constituição brasileira. Era composta de seis deputados, e presidida por Antonio Carlos de Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio, o Patriarca da Independência (tudo em família, desde aquela época).

Pois bem, havia no anteprojeto um artigo que tratava dos requisitos para ser eleitor e ser votado, distinguindo eleitores paroquiais de eleitores provinciais. Nesse ponto entrava a mandioca. Para ser eleitor paroquial o cidadão precisava ter renda anual equivalente a 150 alqueires de farinha; o eleitor provincial precisava ter rendimento, no mínino, de 250 alqueires de farinha. A mandioca entrava outra vez para definir candidato a deputado e a senador. O postulante a deputado precisava comprovar renda equivalente a 500 alqueires de farinha; enquanto que uma vagazinha no Senado estava restrita aos cidadãos com posses acima de 1.000 alqueires de farinha. Viu?  Dá pra perceber que a “bancada ruralista” é mais antiga do que se imagina.

Depois da mandioca, já esteve em alta a cana, o café, o leite, e, por nossas bandas, a borracha, como referência de ascensão aos poderes públicos. Nada muito diferente dos dias de hoje, se trocarmos farinha por soja, que é a commodity do momento. Os tempos mudam; o que não muda são os modos. E tudo continua como antes na casa de Abrantes, prevalecendo a regra de ouro da velha política: quem tem bala da agulha ganha eleição.

A casa de Farinha

Comentários imaginosos à parte, eu fico com a quota do discurso presidencial que me tocou emocionalmente. Eu, que passei algum tempo de minha infância e adolescência ralando mandioca, peço licença para contar um pouco da minha memória.

Recordo-me da Casa de Farinha que meu pai, Melquiades, construiu pegada à nossa residência, que ficava no final da Rua Nossa Senhora do Rosário, em Itacoatiara.

Para nós, os meninos, a casa de farinha era lugar de convivência e não de trabalho. Naquela época não pensávamos como trabalho as atividades que tínhamos que fazer como integrantes do grupo familiar. Cada qual participava conforme sua condição de idade, força física e habilidades pessoais. Era o puxirum, que não admite ninguém se escorando um no outro. Aos adultos cabiam as tarefas de maior responsabilidade, obviamente. Mas as crianças não ficavam de fora: as mais novas já aprendendo a participar, se metendo ali pelo meio dos outros, nem que fosse pra pegar ralho; e os mais taludinhos já direcionados para auxiliar no adjutório, ir aprendendo uma coisa aqui outra ali, sob supervisão dos maiores.

Foi com a força dessas lembranças que compus a canção “Puxirum de Farinhada”, campeã do Primeiro FECANI (1985):

 

“Hoje ninguém fica em casa

Puxirum de farinhada

 

O cheiro da erva-doce

Da massa por misturar

Um cheiro como se fosse

Da própria vida a cheirar

Sem vida própria a queimar

No forno da farinhada

Na prensa do tipiti.

 

Madrugar,

Essa gente, olha o dia

O remo leva a montaria

A montaria, a ilusão

Vem cuidar

Dessa mandioca mansa

Peneirar é uma dança

No banzeiro, distração.

 

A casa de farinha foi escola. Ali, as primeiras lições de equipe, de solidariedade, de participação. Vivência e prática da pedagogia do valor do trabalho, do gosto pela produção, da necessidade de realizar. Tudo acontecendo em regime de interdisciplinaridade. Se a mãe dissesse “menino, faz um café”, a gente sabia fazer, sem se queimar, sem estragar o pó, sem tocar fogo na casa. E tudo era ensinado e aprendido sem que déssemos conta disso. Eram natural o ensinar e o aprender. A oralidade e o exemplo de quem ensinava; a memorização e a obediência de quem aprendia. Menino tinha que aprender e guardar tudo de cabeça.

 

A farinhada

A mandioca chegava à casa de farinha e aí começava a raspagem, não sem antes todos se alimentarem. Beiju com café era o comum: beiju cica, pé-de-moleque, entala-gato, tapioca. O café era aquele torrado em casa e depois moído junto com erva-doce que deixava a cozinha recendendo toda. O alimento principal era o tacacá. Em lugar de camarão, nacos de peixe assado eram jogados na panela do tucupi já fervido e temperado. E os meninos tinham que tomar o tacacá em pé, encostado nos esteios da casa, para ficar com nervos fortes e músculos duros; as meninas não podiam tomar o tacacá, sentadas, para não ficar com os peitos caídos ou com a bunda mole. Tacacá era alimento que não podia faltar durante todo o processo da farinhada, com as panelas da goma e do tucupi sempre aquecidas e abastecidas, em cima do fogão de lenha.

Tudo que inicia com alimentação vira festa, e a raspagem da mandioca era mesmo um encontro de parentes e vizinhos, numa conversaria entre todos, adultos e crianças, com os assuntos da hora, estórias de aparições, causos, ou narração de sonhos. Ninguém sentia o passar das horas.

Para a ralação da mandioca, duplas eram formadas para impulsionar a roda-de-aviamento que movimentava o caititu. À frente do caititu, se postaria uma mulher habilidosa, que sabia fazer com as mãos a pressão bem calculada empurrando a mandioca contra o caititu para esmigalhar a raiz e transformá-la em massa.

A farinha-dágua era feita misturando-se essa massa ralada com outra massa, amolecida e fermentada, a puba, resultante de mandiocas que ficaram mergulhadas, com casca e tudo, durante pelo menos quatro dias num tanque de água. Já a massa para a farinha-toco-mole é obtida da ralação da mandioca que, depois de descascada, ficou mergulhada na água por apenas um ou dois dias.  Ambas as massas precisam ser secadas.

A secagem é feita no tipiti ou na prensa. É nessa fase que a massa espremida chora a manicuera. Sumo venenoso que, se por um descuido for ingerido cru por um bicho do quintal, mata em poucos minutos. A manicuera é depositada numa gamela para descansar por certo tempo. A sedimentação faz a goma sentar no fundo da vasilha, liberando o tucupi, que é o líquido amarelo. Goma e tucupi, subprodutos, se transformam em diversos alimentos. A goma vira tapioca. E o tucupi pode ser servido como caldo no peixe, ou como complemento do tacacá; isso depois de bem fervido com sal, alho, jambu, alfavaca e pimenta.

Depois de seca, a massa passa pela peneira mais apropriada para fazer a farinha fina, média ou baguda, ou esse processo de definir a granulação pode também ser feita após a torrefação, com a farinha já pronta.

A torrefação, etapa final da parte produtiva, era dirigida por mãos experientes, que sabiam o ponto da quentura do forno para escaldar a massa, para não deixar embolar, e o tempo desse escaldo, antes do definitivo processo de torrefação.  Uma ou duas pessoas auxiliavam o torrador, para ativar ou amenizar o fogo do forno, e também para auxiliar no remo ou no rodo, evitando que a fornada queimasse.

E aprendíamos sobre especialização do trabalho.

Se a casa de farinha foi laboratório para o menino, a roça de mandioca foi o seu campo de pesquisa.

 

A roça de mandioca

A roça ou mandiocal, também próximo de casa, ficava num terreno que papai adquiriu da Família Lago, numa área de trezentos por quatrocentos metros, onde hoje fica a esquina da Rua Armindo Auzier com a Rua Nossa Senhora do Rosário.

Menino tinha que conhecer desde cedo tudo que adulto sabia, especialmente, serviços domésticos, mato e planta. O mato era o que precisava ser cortado para não tirar a sustança da planta. E a planta era a que precisava ser cuidada, regada, vigiada dos ataques dos insetos, porque da planta vem o alimento ou o remédio. Mas havia espécies de mato que não deviam ser cortadas porque tinha valor de planta, ou como alimento ou como remédio.

E o menino aprendia botânica diretamente na fonte, sabendo roçar (cuidar da roça) conhecendo pelo nome as frutinhas que surgiam no meio das maniveiras: camapu, buxuxu, sorva, murici, olho-de-boi, maracujá-de-rato, goiaba; e também procurando aprender sobre remédios de mato: fedegoso, rinchão, vassorinha, cipó-tuíra, pedra-ume, quebra-pedra, sacaca, súcuba. Já o carrapicho, este servia mesmo era para traquinagens, quando o menino mostrava habilidade para esconder os grudentos cachos debaixo do chapéu-de-palha e aguardar o momento oportuno para atirá-los na roupa do outro sem ser percebido. E aprendíamos sobre condições favoráveis, conceitos mais tarde lidos no Pequeno Príncipe, de Antonie de Saint-Exupèry.

As maniveiras precisavam ser vigiadas do ataques de insetos. E trabalho de menino era descobrir casa de saúba (saúva). Se alguma saúba era vista andando perdida pelo meio da roça é porque havia uma casa de saúba por perto. E os meninos paravam tudo o que estavam fazendo para cuidar de localizar o buraco delas o quanto antes, afastando logo a ameaça: saúba acaba com uma roça de um dia pro outro, sabiam?

A caça à saúba era motivo de competição entre os meninos. Quem descobrisse a casa da saúba virava o herói do dia. Era o que hoje chamaríamos de reconhecimento por meritocracia. E aprendíamos lições de esportividade, perspicácia, esperteza (tinha menino campeão nessa área).

Nessa hora, valia para o menino conhecer mato para evitar se esbarrar em urtiga, malícia, língua de onça, capim agulha, capim tiririca, jurubeba. E também ajudava muito ter conhecimento sobre superfície para poder distinguir um buraco estranho na terra com beirada batida, que podia ser casa de cobra, ou de sapo, ou de tucandeira. A casa de saúba, quase sempre fica por trás de um toco ou por baixo de uma árvore caída. Muitas vezes aconteciam dois achados. O achado da casa da saúba e o achado da árvore caída. É que um pau caído, apodrecendo, também era considerado um bom espólio. Ali havia estrume vegetal a ser lembrado, futuramente, pelo esperto menino, quando a mãe falasse que estava precisando adubar as plantas.

Eram lições de reconhecimento do terreno, aprendidas ali no pré-primário da vida, muito antes de lermos as doutrinas de Sun Tzu e a sua Arte da Guerra. Para menino (infante traz lembrança de infantaria) aquilo era mesmo uma operação de guerra. Reconhecer a localização do inimigo e comunicar o achado ao grupamento dos adultos encarregados de promover o ataque ao inimigo.

Então, aprendíamos assertividade. Dar o combate antes de ser atacado. Ou a defesa é o melhor ataque, no dizer dos artistas marciais. Mas o combate tinha que ser certeiro para que não sobrasse inimigo pra contar estória. Os adultos, utilizando alguma beberagem caseira ou veneno comprado, descarregavam artilharia pesada contra o saubal.  A terceira fase da operação voltava para a mão dos meninos que consistia em vigiar a casa da saúba nos dias seguintes para ver se alguma inimiga ainda estava andando por ali, mesmo que fosse tonta. E assim aprendíamos lições de avaliação do trabalho que fora executado, pois se bem feito, não teríamos mais aporrinhações com saúba; se mal executado, significava retrabalho, dispêndio de tempo e de energia, pois era preciso segundar o ataque às inimigas.

Os gafanhotos eram outra praga da roça, combatidos pelos meninos com baladeiras ou pauladas. Esses eram bichos bestas pra morrer nas mãos dos meninos. O método do extermínio manual era porque não se devia borrifar veneno nas folhas das maniveiras, porquanto tinha gente sempre passando por ali e alguém poderia cheirar ou encostar.  E aprendíamos lições de boas práticas alternativas.

Uma lição importante: não confundir mandioca com macaxeira, também conhecida como aipim. Mal-comparado à parábola das aparências do “o joio e o trigo”. A mandioca é venenosa – daí o apelido de brava –  e precisa ser tratada para consumo. Já a macaxeira – doce ou mansa – é comestível, bastando cozinhar, assar ou fritar. Na roça, mandioca e macaxeira são plantadas em regiões separadas. No dia a dia, igualmente, é preciso ter cuidado com as aparências das coisas e das pessoas, pois, mandioca não é aipim!

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