
*Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro
Biografia de Dom Jorge Marskell
continuação …
O HOMEM E A CASA
Dom Jorge era um homem alegre e jovial, de índole pacífica. No entanto, durante a maior parte de sua vida esteve envolvido em conflitos, pelas posições corajosas que sempre tomou, quando o direito dos mais pobres estava sendo atacado.
Extremamente simples, gostava de lembrar que era filho de metalúrgico e de uma dona de casa. Vestia-se quase sempre com calças de brim, principalmente jeans como escreveu o padre Ronaldo Mac Donnell em seu artigo: “Um Bispo em blue jeans.” 5
As quatro horas de viagem rodoviária desde o aeroporto, chegaram ao fim na praça na principal da cidade de Itacoatiara. Quando descemos do ônibus eu vi um homem de bluejeans apressando-se em nossa direção. Aproximou-se, com um largo sorriso no rosto estendendo sua mão e dizendo: “Ronaldo, bem-vindo ao Brasil”. O homem era o Bispo Dom Jorge Marskell e eu fiquei estupefato por ele estar usando blue jeans.
Além do blue jeans, padre Jorge, nas suas viagens pelo interior, calçava sandálias havaianas ou alpercatas de couro. Depois de operado de uma hérnia de disco, passou a usar sapatos, por recomendação médica.
Seu anel de bispo era feito de caroço de tucumã, compromisso com o povo.
Padre Mac Donnell conta ainda como um dia Dom Jorge lhe disse: “Eu gostaria que os novos padres parassem de me chamar de Dom Jorge, apenas me chamem de Jorge”. Não era essa a ideia que padre Ronaldo fazia de um bispo.
Eu ouvi certa vez de um padre mexicano uma observação semelhante: ao ver Dom Jorge lavar a louça após o jantar e fazer outros trabalhos caseiros, ficou um pouco perturbado, porque os bispos do México que ele conhecera, eram bem diferentes.
Nos encontros e assembleias da Prelazia, as tarefas para a limpeza do prédio eram distribuídas pelas várias equipes. Sempre que possível, Dom Jorge participava dos trabalhos de seu grupo, lavando louça, varrendo as salas etc.
O povo também via seu bispo como um pai, um amigo, um companheiro de caminhada.
Visitando famílias na periferia de Itacoatiara, ouviu-se a seguinte frase: “Dom Jorge não era bispo, era gente” (INFORMAÇÃO VERBAL).6
Dizem que o modo de vestir de uma pessoa, a casa em que mora, revelam de certa maneira, o seu modo de ser.
A casa do padre, depois bispo Jorge, o “Palácio Picapau”, como ele e os amigos mais chegados chamavam aquela residência, num trocadilho jocoso com “Palácio Episcopal”, se localizava na rua Barão do Rio Branco, no Centro, antiga residência do senhor Nicolas Lekakis, adquirida pela Prelazia.
Residência de Dom Jorge antes da demolição.
Fonte: Itacoatiara, AM – 2000.
Comunicava-se pelos fundos com a chamada “Casa Paroquial”, onde moravam alguns padres e agentes de pastoral; o quintal era comum.
Na pequena sala de entrada da residência do bispo ele recebia as pessoas; aí ficava um banco de madeira, que era o banco do povo. Havia sempre gente conversando ou esperando para falar com ele; ali eram tratados vários assuntos: problemas de família, de comunidades, dificuldades pessoais. Aí eram ouvidas confissões. Nas segundas-feiras, principalmente, quando o povo vinha das comunidades do interior, a sala ficava cheia.
Em uma entrevista dada ao padre Mc Donnel, Dom Jorge fala como aprendeu com o povo, não só a partilhar as coisas, mas também o tempo: “Se eu puder usar o termo ‘perder tempo’ – sentar, conversar, ouvir”?
Contígua à sala de entrada ficava o escritório, que durante muitos anos serviu também de dormi- tório; à noite Dom Jorge armava sua rede acima da mesa de trabalho e pela manhã a enrolava e suspendia como o povo costuma fazer.
Na casa havia ainda dois quartos, servindo um de secretaria e outro, grande, de dormitório. Neste se hospedavam as irmãs e leigas que vinham do interior para os encontros, descanso, consultas médicas etc. Também aí costumavam dormir os hansenianos e tuberculosos que vinham das comunidades do interior ou de outros municípios para tratamento.
Um pequeno depósito foi transformado em capela e aí Dom Jorge fazia suas orações. A cozinha não era utilizada como tal, pois as refeições eram feitas na Casa Paroquial.
Durante muitos anos o banheiro ficava no quintal, fora do corpo da casa. Mais tarde, no final da década de 1980, foi feita uma reforma, construiu-se um banheiro interno, dividiu-se o quarto grande em dois. Dom Jorge passou a dormir no menor até sua ida para o Canadá para a cirurgia do câncer.
Quarto onde dormia Dom Jorge até a manifestação da doença que o levou à morte.
Fonte: Itacoatiara, AM – 1998.
Muitos agentes de pastoral queriam que o bispo construísse uma casa maior, mas ele sempre insistiu em manter a casa simples, aberta, sem muro alto, acessível a seus amigos, os pobres.
Como toda pessoa humana, Dom Jorge tinha os seus defeitos: um deles era a sua dependência do fumo, contra a qual lutou muito, sem sucesso. Só conseguiu parar de fumar depois de manifestada a doença que o levou à morte.
__________________
5 Blue jeans: calça de brim azul.
6 Informação fornecida pelo senhor Altair, morador do bairro Nogueira Júnior, periferia de Itacoatiara, à jovem Katiane Campos, voluntária da Biblioteca Itinerante da Associação Dom Jorge Marskell durante uma visita realizada ao bairro.
7 Entrevista para Scarboro Missions, outubro, 1989.
Continua na próxima edição…
*Sylvia Aranha de Oliveira Ribeiro, nascida no Rio de Janeiro em 1930 e criada em São Paulo, formou-se em Filosofia e Pedagogia, obtendo um mestrado em Filosofia da Educação. Em 1977, mudou-se para Itacoatiara como missionária leiga, trabalhando na Prelazia com comunidades eclesiais de base e na formação de lideranças populares. É cofundadora da Associação Dom Jorge Marskell (desde 2001) e membro da Academia Itacoatiarense de Letras.
Views: 0