Utopias da sustentabilidade
Eu me chamo “Abya Yala”, sequestrada pela civilização ocidental e batizada por ela como Amazônia. Mas, continuo construindo minha identidade e inserção civilizatória conforme as perspectivas de meus povos e suas representações materiais e simbólicas. Jamais me renderei.
Há muitas estórias sobre as minhas filhas e filhos e suas vivências. As crianças adoram ouvir os meus relatos, que sempre afirmo serem verdadeiros. Eles, também, compõem parte de minha sustentabilidade transgressora. Reafirmo que ainda há uma ignorância generalizada, local e global, sobre a vida autenticamente humana. A perenidade humana no planeta é muito dependente da estabilidade física das geleiras polares, dos ciclos de vida das algas marítimas e, também, das ecologias das regiões tropicais. Por outro lado, em certa medida, digo que estas estabilidades são construções sociais e culturais que têm atravessado consecutivas gerações ao longo da história da humanidade. Em âmbito interno, estes lugares e regiões têm sido movimentados por rupturas em minhas representações materiais e simbólicas, todas, em diferentes contextos e modulações.
Eu tenho muitas estórias para contar. Gosto da estória do casal de beija-flores que desacordaram os caçadores malvados após injetarem uma poção de erva-do-mato em suas comidas, para resgatar dois filhotes de seu amigo anta, que estavam sendo levados para serem contrabandeados. Sempre digo às minhas filhas que a vida em meus domínios desafia a Teoria das Origens das Espécies formulada por Charles Darwin. Cito como exemplo, o caso da onça que foi enlaçada por uma grande cobra sucuri, quando estava bebendo água num igarapé. Testemunhei que, lentamente, a cobra foi sufocando a onça que ao perceber que estava morrendo, suplicou para ser solta porque ela precisava cuidar de seus filhotes, recém-nascidos. Minha amiga cobra imediatamente soltou a onça que chamou sua família para conhecê-la e festejarem aquele momento de alegria e amizade entre dois novos amigos. Ao longo de minha existência, percebi que as estórias sobre os macacos são as preferidas pelas minhas crianças.
A literatura registra que mais de 90 espécies povoam as minhas florestas. Alerto que esta projeção numérica é equivocada, pois ainda há espécies de macacos não identificadas pela ciência ocidental. Numa bela manhã, Pedro, o caçador, resolveu matar o macaco-líder de um bando de macacos que estavam comendo banana numa floresta às margens do Rio Amazonas. Quando ele ia atirar com sua espingarda, o macaco suplicou-lhe para ter sua vida preservada, pois ele tinha muitas esposas, filhos e filhas. Explicou para Pedro, que eles eram muito alegres, gostavam dos humanos, principalmente das crianças, e tinham papel relevante para a minha sustentabilidade. Diante de sua intransigência, o macaco-líder disse-lhe: Pedro, nós somos irmãos, nossa origem é comum, nossos ancestrais conviveram em paz e, juntos, construíram nossa linda “Abya Yala”. Pedro argumentou que eles atrapalham o progresso técnico e quando, novamente, ameaçou disparar sua espingarda um bando de abelhas o atacou, distribuindo picadas ardentes e dolorosas por todo seu corpo. Pedro desapareceu entre os igarapés e a penumbra da floresta, deixando para trás os seus pertences. Mas, à distância e abrigado com sua família em outra frondosa árvore, o macaco-líder comentou: a sustentabilidade dos humanos continua sendo excludente e violenta, dissociada da natureza e das culturas.
Minhas estórias têm múltiplas associações com as minhas floras e faunas. Há também, vários relatos sobre o peixe-boi e a piraíba, peixes amigos e gigantes que podem alcançar mais de 3 metros de comprimento e 200 quilos, e são muito admirados por minhas filhas e filhos. Certo dia, um peixe-boi – bonito e majestoso, rei das águas tropicais, habitante de meus lagos, igarapés e grandes rios – ao emergir para respirar, deparou com um pescador pedindo socorro para escapar do fogo provocado pelos fazendeiros, que se aproximava queimando minhas florestas e ameaçando a sua vida. O peixe-boi aproximou-se de João, que não sabia nadar, e pediu que ele sentasse em seu dorso para que se afastassem daquele inferno. João agradeceu e se acomodou nesta breve e generosa carona, que o transportaria à outra margem do Rio Amazonas. Ao se aproximar de seu destino, João enfiou seu arpão no peixe-boi, e disse-lhe: Prepara-te para morrer! Cansado, o peixe-boi lhe respondeu: Por que você vai me matar? Sou seu amigo, estou lhe ajudando, temos qualidades comuns, somos mamíferos e responsáveis pela sustentabilidade de “Abya Yala”, nossa eterna morada. Apesar dos vários esclarecimentos, João imprimiu maior penetração de seu arpão no corpo do peixe-boi, explicando ao mesmo que sua carne seria negociada no mercado da cidade. Guarde seu arpão, não seja ingrato, fui solidário contigo, diz o peixe-boi, que em seguida deu um profundo mergulho nas águas turbulentas do meu Rio Amazonas. Enquanto João desaparecia em suas correntezas, o peixe-boi foi ao encontro de sua família, que acompanhava a sua travessia no rio. Um boto, observador desta cena, empurrou João até às margens do Rio Amazonas, após ele prometer que nunca mais arpoaria peixe-boi e passaria a proteger as minhas faunas e floras, garantindo mais justiça ambiental para todos. Sempre oriento às professoras para que apresentem as crianças brasileiras ao peixe-boto, um mamífero herbívoro muito diferenciado e encantador.
As figuras 5 e 6 são do arquivo pessoal de Marilene Corrêa da Silva Freitas
Geralmente, as estórias sobre as tartarugas são engraçadas… Uma pequena tartaruga brincava com seus amigos peixes, quando foi abocanhada por um grande jacaré guloso. Imediatamente, ela começou a rir, e disse para ele: Jacaré me deixe em paz, você não conseguirá me devorar, pois o meu casco me protege da força de sua mandíbula, e o meu espírito de sua maldade. Sejamos amigos e convivamos em paz e harmonia. Vamos continuar construindo a sustentabilidade de nossa grande casa e do planeta, para a estabilidade ecológica das faunas e das floras do mundo. O jacaré continuava mordendo a tartaruga com os seus grandes dentes pontiagudos, quando ela deu outra gargalhada e disse-lhe: Estou vendo os lagartos aproximando-se de sua ninhada; eles vão comer os seus ovos que estão chocando em sua moradia. Imediatamente, o jacaré largou a tartaruga, agradeceu-lhe pela sua solidariedade, e voou em direção à sua ninhada, para expulsar os lagartos. Antes de a tartaruga ir embora, o jacaré disse-lhe: Tartaruga, a partir de hoje vou lhe proteger de todos os seus inimigos e predadores, incluindo os caçadores e o fogo destruidor.
Mas, tem também as estórias sobre o boto, figura lendária e muito admirada por minhas populações ribeirinhas. A mais popular, relata a relação entre o boto e a cunhã-poranga. Lembrem que sou morada e fonte geradora de mitos, ritos, fabulações, diferentes cosmogonias, estórias, crenças e registros fantásticos. Terra de gentes e personagens de minhas florestas, águas, várzeas e de animais que se transformam em humanos. Filhos e filhas encarnadas em Deuses, aves invisíveis, plantas com hábitos humanos, e humanos guiados pelos astros e estrelas, num mundo, simultaneamente, real e desmaterializado pelas suas alegrias, musicalidades e sabedorias. Mundo construído por minhas gentes, sujeitos e atores, que entrelaçam nossas culturas aos ciclos da natureza e às mitologias. Nós, filhos e filhas de “Abya Yala”, somos plenamente adaptados às águas, florestas, comunidades, e entidades celestes. Nossas divindades vivem nos ambientes, incorporadas às nossas floras, faunas, peixes, animais, plantas, águas, rochas minerais, astros, estrelas e Deuses, que se comunicam entre si, em perspectivas compartilhadas, e numa dinâmica existencial coletiva e direcionada à convivência cósmica. Tudo começa e termina no plano celeste, simultaneamente, em minhas águas e florestas. Em meus domínios, vida gera vida com alegria e amor, em cenários que se orientam por uma grande orquestra, regida por diferentes maestros, enredos e musicalidades, qualificada por minhas filhas e filhos, e também, pelos pássaros, animais, peixes e plantas doando sustentabilidades que se espraiam ao mundo, e a todos encantam.
O boto é um complexo personagem deste universo, que apreende os meus compromissos com os povos originários e as comunidades ribeirinhas. Boto que se alimenta de peixes e em noites de lua cheia emerge de meus rios, para participar das festas populares. Após se transformar em um jovem cativante e sedutor, ele adentra os ambientes festivos, usando chapéu e vestindo elegantes roupas brancas, confundindo-se com os presentes, à procura de mulheres bonitas para seduzir e compartilhar suas estórias. Após encantar e plantar suas sementes nas cunhã-porangas, ele mergulha novamente nas águas de meus rios, à procura de novas festas e amores ribeirinhos. Em “Abya Yala”, os botos são encantados: boto galã que engravida as cunhã-porangas, boto generoso que ajuda os pescadores, boto herói que salva as pessoas que estão se afogando em meus rios, boto solidário que orienta os barcos e as pessoas nas tempestades, e boto formoso que encanta as crianças. Boto navegador que me integra, boto artista construtor de minha sustentabilidade, e também dos seus mitos e ritos, boto herói que tem resistido às intervenções humanas destrutivas, e transportado as minhas esperanças e ilusões, e boto sonhador que fascina todos nós. O boto é uma benção à humanidade, ele precisa ser protegido da estupidez e ganância dos pescadores que o mata para usar sua carne como isca em suas atividades. A caça ao boto precisa ser inibida, pois se trata de um filho dócil, animal dotado de extrema beleza e qualidades nobres. Realmente, eu me considero um universo em paralelo, um Brasil diferente e único, um mundo complexo e surpreendente.
Há, também, inúmeras estórias sobre papagaios, amigos das crianças e sempre presentes em minhas fotografias difundidas ao mundo. “Abya Yala” abriga milhões de papagaios, multicoloridos e presentes em todos os lugares de meus territórios. Brincalhões, alegres, barulhentos, engraçados, fascinantes, inteligentes, “imitadores” dos humanos e da natureza indomável, habitam minhas florestas e palmeiras. Comem frutas, sementes, folhas, legumes e pequenos insetos. Protegem-se das cobras, de certas aves, e de mamíferos e humanos predadores de suas espécies, que derrubam e queimam seus habitats para comercializar a madeira e o carvão retirados, aos usos humano, industrial e para o agronegócio. Paulo, o madeireiro, aprontava a seu motosserra para derrubar mais uma árvore de minhas florestas, quando ouviu o pedido bem alto, feito por um papagaio pousado nos galhos da amedrontada árvore: Paulo, por que derrubarás minha moradia? Há 50 anos, a minha família vive aqui com seus filhos, netos e bisnetos; semeando florestas e distribuindo alegrias. Senhor papagaio, responde Paulo, o meu “sustento” depende da quantidade de árvore derrubada. Brevemente, esta área será pastagem para criar gado e plantar soja. O papagaio retrucou: Paulo, as florestas são necessárias… Elas desempenham papel estratégico ao equilíbrio ecológico dos ciclos da natureza e do planeta, geram vida, beleza e harmonia à humanidade e ao nosso futuro. Paulo afirma ao papagaio que ele era comerciante e que o mundo dos negócios não admite apelos emocionais, pois precisava entregar um lote de madeira aos seus clientes. Em seguida, começou a serrar uma grande e centenária seringueira, que “chorava” compulsivamente, com suas lágrimas grossas e esbranquiçadas jorrando de seu caudaloso e bonito tronco. Apavorado, o papagaio insiste:
Por que vocês madeireiros e fazendeiros não utilizam a área devastada de 22% dos territórios de minha grande mãe, para as suas grandes plantações e pecuárias. Paulo, novamente eu lhe advirto: Eu, “Abya Yala”, tenho vocação para o desenvolvimento sustentável, com pequenas cidades, indústrias limpas, serviços ambientais, bioindústria, arranjos produtivos vocacionados, incluindo fármacos, alimentação e cosméticos, museus vivos, biojoias e tecnologia naval. Posso, também, desenvolver a antropologia das técnicas, o ecoturismo, a agroecologia, novos materiais de minhas florestas adaptados às indústrias naval, aeronáutica e automobilística, manejo florestal, jardins botânicos, parques aquáticos e sustentabilidade aos meus ambientes e habitantes. Isto possibilitará me proteger, preservar as minhas florestas e águas, e valorizar as minhas culturas, numa perspectiva sistêmica e integradora. Paulo, eu preciso ser preservada, e de um programa ambiental para recuperar minhas áreas degradadas e destruídas pelos desmatamentos e queimadas, a serviço de seus patrões, das sociedades consumistas e dos governantes arrogantes. Minhas culturas e florestas estão sendo destruídas, ameaçando a vida na Terra, liberando fumaças e cinzas de nossos passados, e transportando doenças e tristezas aos outros povos e às novas gerações. Continuando, o papagaio diz: meus filhotes estão em perigo, e nossa espécie em extinção. Portanto, eu peço novamente: Não derrube nossa casa? E nos deixe enxugar as suas lágrimas. Paulo ligou seu motosserra e quando começou a derrubar a seringueira, um bando de caititus o atacou deixando o seu corpo infestado de grandes ferrões. Paulo fugiu, desesperado e dolorido, deixando para trás sua mochila, motosserra e espingarda. Mas o papagaio disse aos seus filhos: Precisamos encontrar outra casa mais protegida, pois brevemente Paulo retornará com seus colegas, para se vingar e destruir a floresta, em nome do progresso, da paz e da sustentabilidade do mercado.
Os relatos sobre as minhocas que vivem em meus solos são engraçados e originais. Eu continuo sendo uma fonte sagrada das águas do mundo, e do mundo das águas. Abrigo três bacias hidrográficas: a superficial comandada pelo Rio Amazonas e outros 2 mil rios, em todas as cores e diferentes extensões, transportando culturas e antropologias; e as rios voadores guiados por movimentos atmosféricos, levando umidade e calor, solidariedades e integrações para várias regiões do Brasil e do planeta. Finalmente, há minha bacia subterrânea controlada por grandes e volumosas correntes de água subterrânea, acompanhando o curso do Rio Amazonas; formando um majestoso lençol freático regional, que nos mantém flutuando em universos mágicos, interconectados entre si e com o planeta. Portanto, considero-me “Abya Yala”, lugar sagrado onde as águas sobem e descem, em movimentos rítmicos que integram as minhas culturas e naturezas. Na vazante de meus rios, mais de 20% de meus territórios transforma-se em várzeas propícias à agricultura, à pequena pecuária e aos seus manejos florestais e aquáticos sustentáveis. Sou um mundo complexo, pluricultural e biodiverso, periodicamente inundado e arejado, e dependente de bactérias e micro-organismos que decompõem e fixam o nitrogênio presente nas folhas e galhos e em decomposição em meus solos. Processo essencial à geração de vida, e à reciclagem ecológica e cultural em meus ambientes naturais.
Minhas filhas minhocas vivem neste universo ecológico. Elas têm movimentos graciosos, eletrizantes, sempre, em direção às profundezas de meus solos. Exercem relevante papel à estabilidade dos processos ecológicos; presentes em meus territórios, decompõem a matéria e digerem vegetais e partes de animais, retroalimentando os ciclos da natureza e suas culturas, em forma contínua e persistente. Numa bela manhã, uma minhoca aproximou-se do fazendeiro que dirigia um trator, e disse-lhe: Sebastião, não destrua esta área de várzea? Ela é importante para todos nós, e para a manutenção da floresta, ajudando-a em sua respiração e crescimento. Este ambiente é o habitat natural de minha família, e possibilita nossa convivência com a natureza e o mundo de nossa grande mãe, “Abya Yala”. Nós cavamos extensos túneis, criando uma rede de conexões entre as camadas mais profundas do solo e sua superfície, facilitando a sua respiração e melhor difusão dos gases atmosféricos, da água, dos nutrientes e das raízes ao seu interior. Somos essenciais à conservação e sustentabilidade da floresta, e para os ciclos da natureza na região. Sebastião responde: Senhora minhoca, a derrubada de árvores é necessária para humanizar a floresta e gerar empregos no mercado. A minhoca afirma que não se pode humanizar a floresta destruindo-a, pois humanos e natureza são indissociáveis. Continuando, a minhoca esclarece ao fazendeiro, que ele pode desenvolver novas formas de produção mantendo a floresta em pé, gerando mais empregos em forma sustentável. Pode, também, utilizar a sua fazenda para práticas integradas e sustentáveis, ecoturismo e gestão ambiental, agroecologia e programas de educação ambiental aos nossos jovens. Após ouvir as ponderações da minhoca, o fazendeiro agradeceu e prometeu para ela que planejaria novas formas sustentáveis de intervenção na natureza, respeitando a sua preservação, proteção e uso sustentável, em benefício de todos. Queridos jovens, posso afirmar que temos muito em aprender com os animais. Em certa medida, a vida na Terra depende de uma complexa cadeia de ações sistêmicas e integradas entre si e com os seus, respectivos, ambientes. A minhoca também faz parte deste quadro de referência.
Conheço diversas estórias que reafirmam a minha importância antropológica e literária, e as dimensões fantásticas de minhas vivências e transcendências. Destaco a estória sobre o encontro do jaraqui com o garimpeiro, algoz de minha vida e história, exterminador de meu futuro. “Abya Yala” é berço da liberdade, matriz de culturas e naturezas banhadas por mais de 2000 rios, fertilizados por mais 2000 espécies de peixes, de todos os tipos, tamanhos, belezas e sabores. Personagens presentes nos mitos e ritos que movimentam a vida, os seus ambientes naturais, e o seu imaginário ficcional. Peixes que criaram o mundo, peixes que originaram árvores, peixes que se tornam humanos e aves, peixes que surpreendem e encantam; habitantes de minhas águas profundas e, também, das águas rasas. Peixes carnívoros e agressivos; peixes herbívoros, rápidos, lentos, voadores e mamíferos. Peixes que se escondem em ambientes geradores e guardiãs da vida, em contraposição à criação humana na perfeição e no paraíso celestial. Ao contrário da árvore com raízes no solo, o peixe navega livre pelo mundo aquático, transportando harmonia, sonhos, beleza e sustentabilidade às minhas populações e ambientes. Numa tarde nublada, quando o garimpeiro José penetrou sua peneira na água para retirar cascalho do fundo do rio, ele pegou um jaraqui desprevenido, que nadava no local à procura de alimentos. José começou a pressioná-lo em suas mãos grandes e fortes; desesperado o peixe lhe disse: José, por que estás me matando? Nós contribuímos para a cadeia alimentar de várias espécies de animais, faunas e seres da floresta. Somos importantes para disseminar e reproduzir as sementes nativas, e à estabilidade ecológica dos ambientes naturais. Ajudamos a conservar as florestas e os rios, e os nossos espíritos povoam as mitologias de criação do mundo dos povos originários e dos ribeirinhos de “Abya Yala”. José, não há rios sem peixes, e peixes sem rios. Sua atividade de mineração usa mercúrio, germicidas, fungicidas e outros produtos químicos; contamina e envenena os ambientes e suas populações. Provoca destruições e doenças em meus parentes e amigos; eu sou o peixe mais popular no estado do Amazonas, coração de “Abya Yala”, e signos da sustentabilidade. Sou apreciado e admirado, embora esteja sob a permanente vigilância pelos órgãos de proteção ambiental e pelas associações de pesca. Encontro-me em processo de extinção, devido à pesca intensiva e predatória. Em Manaus, capital do Amazonas, diz-se: Quem conhece o jaraqui nunca mais sai daqui. Portanto, tenho boa reputação, adaptação, importância regional e integração ecológica. José, afirmo-lhe que a qualidade da água de nossa bacia hidrográfica é dependente de seu uso e da mineração predatória nesta região, pois “Abya Yala” atualmente abriga mais de 50 mil garimpos ilegais, e milhares de áreas desmatadas. Você contribui à sua destruição ecológica e ao desaparecimento de várias espécies de peixes, produzindo tristeza, doenças, sofrimentos e desesperança aos meus parentes, e às futuras gerações humanas. José retruca: Senhor Jaraqui, ninguém vai sentir a sua falta, pois vocês vieram ao mundo para servir e suprir as necessidades humanas e o mercado econômico, gerando riquezas aos comerciantes e às bolsas de valores. Suas funções e importâncias ecológicas podem ser dispensadas, pois meu trabalho garimpando pepitas de ouro, pedras preciosas, diamantes e outras preciosidades da natureza, cumpre importante função social na confecção de bonitas e caras joias, para embelezar as pessoas e construir equipamentos inovadores. O jaraqui responde: nós viemos ao mundo antes dos humanos, portanto, estamos mais integrados à natureza, aos céus e à própria história humana. O seu trabalho é importante à sociedade consumista, entretanto, os humanos não são proprietários da natureza, apenas usufruem dela, tendo o compromisso de entregá-la preservada e aperfeiçoada às próximas gerações, gerando novas sustentabilidades às pessoas e ao mundo. Lentamente, José relaxou a pressão de suas mãos, e o jaraqui saltou ao rio, nadando livremente em suas águas, mas preocupado com seus predadores… Caro leitor, posso afirmar para vocês, que o meu filho, jaraqui, é muito admirado por meus povos, todas as crianças brasileiras deveriam conhecer este ser adorável e majestoso.
Meus filhos indígenas relatam outra estória instigante e preocupante. Desde os tempos remotos, sou morada das borboletas, multicoloridas e belas, mensageiras de alegrias e renovados compromissos com a perenidade da vida, em todos os lugares e momentos. São mais de 2 mil espécies, colorindo minhas florestas e ambientes, polinizando as flores e gerando condições biológicas à produção de frutos, sementes e de plantas. Defendem-se de seus predadores – aranha, lagartos, pássaros, macacos, sapos, formigas, ratos, etc., e principalmente dos humanos – camuflando-se nas vegetações, alternando suas cores, imprimindo diferentes velocidades em seus voos, modificando os formatos físicos de seus corpos e asas, e se escondendo nos ambientes. De hábito diurno, durante as noites e as fortes chuvas em meus territórios, elas descansam e se protegem debaixo das folhas das árvores e vegetações; contribuem ao equilíbrio e à diversidade em seus ambientes naturais. Generosas e multifuncionais iluminam o mundo com luzes matizadas, colorem e geram sustentabilidades às naturezas e às suas populações. Promovem espanto e alegrias às crianças, e melhor compreensão sobre nossa integração à natureza e às suas conexões cósmicas. São mensageiras do amor e da paz. Podem viver por mais de três meses, polinizando minhas florestas e contribuindo ao controle de pragas.
Numa bela tarde, Vita, uma bonita borboleta, perguntou à Mors, sua nova amiga borboleta: Mors, por que tens estas cores tristes e feias? As cores identificam as nossas origens, transcendências e compromissos. Minha amiga Vita, respondeu-lhe Mors: os ambientes naturais onde vivo estão totalmente destruídos, as florestas desmatadas e queimadas. Minha família e nossas amigas vivem nos solos, alimentando-se de plantas queimadas e de produtos degradados. Nossos corpos e estruturas biológicas assumiram as cores cinza e marrom, cobrindo-nos de tristeza e feiura. Nossas famílias diminuíram, e as sustentabilidades destes ambientes se encontram em colapso. Vita, por esta razão, mudamos para sua região, coberta de grandes florestas e rios, completa Mors. Temos novos sonhos e esperanças. Cara Mors, diz Vita, o desmatamento e as queimadas têm provocado muitas mudanças ambientais em nossa região, com impactos em todos os seus ciclos de vida e em suas naturezas. Suas floras e faunas, seus insetos e suas cadeias alimentares têm sido muito impactadas e estão contribuindo para as mudanças climáticas globais e, também, para a injustiça ambiental. Apreensiva, Mors diz: Vita, estamos sitiados pelo crescente desmatamento que, continuamente, destrói, empobrece e diminui os nossos ambientes naturais. Uma tragédia que parece não ter fim. Vita responde: Mors, os humanos arrogantes e egoístas não percebem que a perenidade de sua própria espécie se encontra em risco de colapso. Juntos com nossas famílias, precisamos nos afastar da civilização, pois estou ouvindo os sons de tratores e motosserras. Mors, não se preocupe, pois você recuperará as suas cores fulgurantes e alegres, e voltarás a polinizar as flores, e produzir novas vidas e contribuições à sustentabilidade da “Abya Yala” e do planeta. Juntas, Vita e Mors partiram para novas jornadas sustentáveis nos lugares remotos da região. Terra dos amigos indígenas e da natureza acolhedora.
Há uma estória bastante conhecida, geralmente popularizada e narrada pelos ribeirinhos da região, que a denominam “Abya Yala e a criança da sustentabilidade”. Todo dia, Abya Yala visita suas criações. Começa pelos rios e as florestas, em seguida, as floras e as faunas, as aves, os répteis, os peixes e as borboletas, e todos e tudo que ela abriga. Conversa, discorda, orienta, semeia novas alegrias e encantamentos aos seus filhos e filhas da natureza, e em seus intensos diálogos com os seus povos. Não descansa, desloca-se rapidamente nas vastidões de seus territórios, ao encontro de outros parentes. Almoça, lancha e janta com eles, em ambientes descontraídos e familiares. Revivem estórias e viagens agradáveis, sempre guiadas pelos povos das águas e das florestas. Canta as músicas das estrelas e pinta as cores das estações do ano, em cada uma de suas criações. Não há confronto entre suas ecologias e culturas, elas se auto-fortalecem em suas convivências recíprocas e integradas. Em suas jornadas, Abya Yala é transportada pelos animais, aves, peixes, barcos, carros, aviões, e, também, pelos raios de luz que iluminam seus ambientes e suas criações. Em uma de suas viagens, Abya Yala escolheu a casa de uma criança, para visitar seus pais e sua família, e ensiná-los a importância da natureza, em suas vidas e para a sociedade. Após a Mãe de a criança adentrar em seu quarto, para prepará-la para o jardim de infância, ela disse-lhe: Mamãe, acabei de acordar, tive um sonho muito bonito, no qual convivi com a Senhora, e suas belezas naturais e humanas, quando lhe chamavam Abya Yala. Estou muito feliz em ter viajado neste mundo maravilhoso e mágico, que encanta todos nós…
Abya Yala, cultura e natureza: universo uno e sistêmico
As minhas estórias são fantásticas, mostram que o capitalismo predatório, a ciência e tecnologia ainda não têm alcances heurísticos para me transformar numa commodity ambiental, conforme suas pretensões econômicas e políticas. Em meu universo existencial, os objetos e os fatos construídos pelo mercado não podem ser reduzidos ao social, porque este é povoado de elementos imponderáveis e representações simbólicas. Embora as leis da botânica, entomologia, zoologia, ciências físicas e as da química se apresentem entrelaçadas entre si, elas não conseguem explicar as belezas e diversidade que povoam minha vida. Vida que iluminada e sustentada por um complexo sistema cultural e físico se renova continuamente, transbordando-se para outras regiões do planeta.
Meu futuro continua correndo riscos plausíveis, diz Abya Yala. Eu preciso acelerar a materialização de minha sustentabilidade transgressora. No próximo e último texto, narrarei vários cenários transcendentais associados ao futuro imediato de minha jornada civilizatória, na perspectiva de meus povos.
Manaus, 18 de outubro de 2024
Prof. Marcílio de Freitas
Texto baseado em capítulo publicado no livro autoral “Sonhos de Miguel”, em processo de lançamento.
Link para acesso: https://www.ipedasletras.com/
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8 respostas
Marcílio,
Adoro ler os seus textos. Tem muita riqueza em detalhes e mt. conhecimento da região.
Obrigado, felicidade e prosperidade para você.
Abs, Marcílio
Bom dia, amigo. Amei seu texto.
Obrigado Sheila. Bom dia, muita gentileza e generosidade de sua parte. Abs fraternos.
Marcilio
Extremamente didático as colocações de questões ímpares. Maravilhoso!
Bom dia Corrêa Júnior. Obrigado, que as luzes da sustentabilidade continuem iluminando sua vida. Abs, Marcílio
Que texto meu amigo Marcilio. O fantástico entremeando a realidade. Mensagem forte na expectativa de despertar atenção, amor e zelo para com nossa Hileia. Vou repasssar aos filhos e netos. Agradeço a gentileza do envio
Obg amigo Osiris. Alegria é prosperidade para você. Abs