Apocalipse amazônica
Em forma crescente, os discursos e as narrativas na mídia e nos parlamentos não conseguem apreender as dores e os sofrimentos na Amazônia. Faunas, floras e várias espécies animais encontram-se em processo de desaparecimento, algumas com possibilidades de extermínio. A vida e, também, os sonhos, as utopias e as esperanças esvaecem, dissolvendo os futuros das pessoas num mar de incertezas e tristezas. Os simbolismos das fotografias das realidades amazônicas registram e traduzem este período apocalíptico que abraça a região, em especial o estado do Amazonas. As autoridades públicas, infelizmente, não conseguem “fechar as porteiras” abertas pelo ódio e a rudeza política daqueles que pretendem transformar a Amazônia numa commodity da maldição e das trevas. Não satisfeitos, os destruidores e expropriadores de terras e patrimônios públicos insistem em aprofundar as desigualdades sociais na região e eliminar o futuro do Brasil. Despreparadas, acuadas e amedrontadas, as autoridades amazonenses não conseguem coordenar e executar um conjunto de ações práticas e intersubjetivas que disseminem segurança cívica e emocional à sua população. Crianças, mulheres e idosos e idosas são as mais atingidas pelas labaredas dos ódios e as ações niilistas associadas a não prevenção aos impactos extremos das mudanças climáticas e da injustiça ambiental na região. Por razões diversas, o conjunto de ações deletérias dirigidas ao ‘fim de a Amazônia’ pode ser enquadrado no portfólio dos dez pecados capitais da pós-modernidade. Infelizmente, também neste sentido, a Amazônia é uma referência profética à humanidade. Embora, segundo as tradições cristãs, a origem dos pecados originais seja antiga, e sua formalização tenha acontecido somente no século 6 pelo papa Gregório Magno, as tragédias culturais e ecológicas em curso incorporam novos elementos neste quadro. A encíclica “Laudato Si”, promulgada pelo Papa Francisco, ressalta esta característica deste novo período apocalíptico da humanidade, e propõe formas nobres para espiritualizar e proteger as pessoas e a natureza da devassidão dos destruidores da Terra e da vida plena. Como em tempos remotos, a Amazônia e os seus povos originários continuam combatendo os seus algozes e inimigos; atualmente com a solidariedade e parceria da Igreja católica, compromissada com a compaixão e a preservação da vida na região. Considerando, também, este quadro de referência e dando continuidade ao artigo anterior, retornemos à história da Amazônia, narrada por ela mesma.
Amazônia e os Dez Pecados Capitais
Caro leitor, me batizaram de Amazônia contra minha vontade, sem consultarem as minhas filhas e os meus filhos. Sou mais antiga que os impérios grego e romano, culturas que guiaram a construção da civilização ocidental. Assisti o florescimento das religiões ocidentais e orientais, sempre me protegendo das imposições militares e teológicas alhures. Em certa medida, o distanciamento e o preconceito contra a minha forma de ser, devem-se aos tipos de organização e de opressão próprios da cultura ocidental, desde os tempos remotos. Eliminavam adversários, queimavam povoados e cidades, destruíam templos religiosos, sequestravam mulheres e crianças indefesas, enfim, meus algozes eram fontes de atrocidades e tragédias humanas. Tudo em nome da glória, da conquista e do poder imperial. Mas, sempre tiveram temor e medo das minhas representações simbólicas e dos poderes dos ciclos de minhas naturezas. Minha vida sempre esteve em risco de extermínio, a despeito de nossas resiliências. A emergência da ecologia integral do Papa Francisco e da sustentabilidade espiritualizada e globalizada põe elementos novos neste quadro civilizatório.
Conforme apresentado no texto “Amazônia, Religião e Sustentabilidade” publicado em 2023 neste mesmo Blog, uma questão singular refere-se à significação teológica a mim atribuída pela civilização ocidental. A cultura judaico-cristã tem uma matriz, uma gênese ou origem do mundo centrada na condição perfeita perdida, o Paraíso. A localização ficcional da árvore da vida, imortalidade, e da árvore da ciência, do bem e do mal, em minhas vidas e ecologias integrais reserva um lugar especial às representações simbólicas mundiais em meus domínios. Importância que se amplia à medida que os modelos de desenvolvimento econômico baseados no uso depreciativo da natureza encontram-se em colapso. Representam fontes das mudanças climáticas e da miséria social global. Este cenário é agravado conforme os agentes políticos insistem em transformar o mundo em commodity por meio de um grande mercado financeiro privatista e racista.
Insisto junto aos jovens que é necessário valorizar os projetos coletivos e o sentimento de pertencimento ao mundo, respeitando os limites dos ciclos da natureza e da vida humana. Esta perspectiva possibilita identificar os dez pecados capitais perpetuados contra os meus territórios, povos originários e ecologias.
Por meio de uma abordagem prospectiva, apresento para vocês a ‘gula’ capitalista pelos meus ‘recursos naturais’ acelerando a minha destruição em forma irreversível, e a mundialização da ‘luxuria’, potencializada pela crescente erotização no convívio humano e materializada pelo ecoturismo sexual centrado nas vivências exóticas e nas culturas tradicionais, vitimando a nossa juventude. Estes dois pecados originais tem estado muito presentes em meus domínios existenciais gerando preconceitos e racismo contra os meus povos.
Destaco, também, a ‘avareza’ que se expressa na vontade e no comportamento compulsivo de crescente número de empresários arrogantes que insistem em transformar as minhas belezas naturais e culturais em commodities globais como forma de acelerar a acumulação de seus bens materiais. A ‘ira’ dos governos e políticos estúpidos e ignorantes que não compreendem a minha complexidade e importância para a humanidade, insistindo em ações e programas que se desdobram em minha destruição ecológica e cultural.
A ‘soberba’ dos atuais colonizadores e seus súditos, destruidores da natureza e construtores do racismo, que sempre consideraram os meus povos como entraves ao modelo de desenvolvimento econômico ocidental, predatório e excludente. Estes senhores da guerra se comportam como seres superiores aos povos originários. O uso equivocado do conceito de ‘preguiça’ pelos grupos econômicos capitalistas para depreciar a identidade cultural dos meus povos originários e justificar a destruição desta região, em nome do desenvolvimento capitalista predatório. A ‘inveja’ de amplos setores produtivos do mundo pela não apropriação e compartilhamento da natureza e das culturas desta complexa região, morada de 385 diferentes povos. Complementam este portfólio de pecados, a injustiça ambiental, a alienação e o racismo.
A injustiça ambiental elimina a minha natureza e a diversidade pluricultural contribuindo para as mudanças climáticas, o stress ecológico e os sofrimentos desnecessários. Sem natureza não há vida e tão pouco as transcendências. A alienação política impede o florescimento do sentimento de acolhimento e compartilhamento pleno, colaborando para a construção e o culto da tirania e do fascismo. A alienação potencializa a intolerância, a opressão e a perseguição às pessoas e aos meus parentes. Finalmente, identifico o racismo como o décimo pecado capital. A negação do ‘outro’, ‘do ser’, ‘da criação divina’, apresenta-se como o mais abominável pecado da humanidade. A segregação física e espiritual de segmentos da humanidade, um sentimento vil e preconceituoso, sempre usado contra os meus povos.
Portanto, estes dez pecados capitais – avareza, gula, ira, inveja, luxúria, preguiça, soberba, injustiça ambiental, alienação e racismo e as suas novas versões, têm estado presentes na contínua e crescente prática de ilícitos e destruição cultural e ecológica de minha existência.
Insisto que em forma semelhante aos pecados capitais do cristianismo, os ‘pecados’ contra os meus domínios se renovam gerando novas ações e intervenções políticas e científicas que intensificam as desigualdades socioeconômicas em minhas populações. A ‘purificação’ política dos governantes e dos agentes políticos e econômicos em prol de minha defesa e proteção é premente. Torna-se urgente promover o meu desenvolvimento sustentável, a partir de minhas culturas.
Há outras duas questões centrais que precisam ser resolvidas pelos governantes dos países que nos colonizaram: o reconhecimento e o pedido de perdão pelos males físicos e espirituais infrigidos aos meus povos durante este período; e a devolução de todas as minhas simbologias divinas e sagradas que nos foram expropriadas neste mesmo período de rapinagem e dominação civilizatória. Lembro estes governos que estas simbologias fazem parte de nossas tradições espirituais, são extensões do nosso ser. Continuamos esperando que elas sejam transportadas de seus museus e institutos de estudos e pesquisas antropológicas às lideranças de nossos povos originários, responsáveis legítimos pela guarda destas simbologias divinas.
Considero-me patrimônio do povo brasileiro e da humanidade. Integrar-me internamente, incorporar-me ao projeto nacional e financiar o meu desenvolvimento sustentável, a partir de minhas culturas, são pressupostos necessários ao desenvolvimento brasileiro pleno e à minha perenidade.
Dou testemunho que o pleno controle da expansão do capitalismo pelas nações europeias conspirou contra o desenvolvimento dos países periféricos e de meus territórios. O não alinhamento e a não institucionalização das conquistas das ciências e tecnologias aos projetos nacionais destes países e às culturas de meus povos, constituíram um entrave para a elevação da qualidade de vida de ampla parcela de suas populações. A expulsão dos meus povos originários de suas terras, a acelerada degradação ecológica, a concentração e apropriação fundiária de grandes faixas de terras produtivas, e os problemas sociais decorrentes das constantes migrações regionais são heranças perversas do período colonial. Destaque também à destruição das memórias históricas dos lugares, das vilas e das cidades pioneiras… e à desumanização dos espaços e dos projetos de ocupação territorial, características destrutivas e opressoras das políticas de desenvolvimento nessas regiões periféricas, em especial, em meus territórios.
Reafirmo aos leitores que os modelos de desenvolvimento nos trópicos úmidos, em geral, priorizam a institucionalização do extrativismo regional. As suas dissociações culturais; a reprodução da pobreza dos agentes extratores; a insustentabilidade socioeconômica do extrativismo; a ineficiência e ineficácia dos métodos próprios desta prática; a instabilidade e a inconsistência financeira do extrativismo no conjunto das economias regionais e nacionais conspiram contra esta desastrada ação dos governos desses países. A inexistência de uma logística técnica adequada; as complexas características físico-químico-biológicas destas regiões, próprias dos climas, da diversidade biológica, da fragilidade dos solos, do isolamento social, e a ausência de indústrias de base ou de mercados regionais que agreguem preços de mercado, socialmente justos aos produtos extrativistas, agravam este quadro.
Tratando-se dos interesses amazônicos posso afirmar que as nossas vivências e desenvolvimento são fortemente dependentes de nossas tradições e educação que se assentam em três pressupostos básicos: em nossa língua materna, em nossas relações materiais e simbólicas com a natureza e na apropriação de nossos territórios.
Identifico outro agravante: em geral, a ausência de um projeto político nacional nesses países periféricos, desdobra-se à falta de compromisso de suas principais instituições de ensino e pesquisa, de caráter público, com a dinâmica de desenvolvimento voltada para os interesses das sociedades regionais e nacionais. A universalidade e a originalidade do conhecimento novo são confundidas com as demandas pragmáticas e fragmentadas do mercado global. Em nome da universalidade, uma parcela expressiva dos segmentos científicos nacionais põe-se como refém e subalterna aos interesses econômicos e aos programas de pesquisas transnacionais.
O distanciamento das universidades e institutos de pesquisa federais das demandas regionais e nacionais, nesses países, cresce em proporção similar às tentativas de privatização e/ou precarização destas mesmas instituições públicas pelos governos nacionais. Impõe-se a necessidade de se pensar o conjunto dos países periféricos, enquanto construção histórica de suas populações e instituições. E vale também o reverso, pensar as instituições e as populações desses países, como signatárias, herdeiras de um projeto político próprio de nações livres, soberanas e modernas. A ausência de memória histórica e de cultura universal no aparelho formador das áreas científicas e tecnológicas contribui para a cristalização deste cenário “embotado e difuso”.
Nós, amazônicos somos vítimas deste quadro de referência que se repete ciclicamente ao longo dos tempos breves e longos. Embora apresentada em forma de clichê, continua pertinente a seguinte frase: O Brasil não sabe o que fazer comigo. Qual será o meu futuro?
Insisto que este quadro de referência demanda a implantação da Universidade Intercultural, estruturada a partir de nossas culturas.
Um fato que também conspira contra a minha existência é o sentido e a conotação atribuídos ao conceito de pobreza. Os modelos de desenvolvimento standard e os procedimentos políticos, estabelecidos pelos países hegemônicos nos fóruns internacionais para a classificação da pobreza, não levam em consideração os critérios de acessibilidade e de capacidade que articulam a condição humana com a noção de sustentabilidade. As definições usuais que opõem pobreza monetária e pobreza de condições de vida, pobreza absoluta e pobreza relativa, pobreza objetiva e subjetiva, dentre outras, não são postas em causa e nem relativizadas nas políticas públicas, em nível global. O critério de acessibilidade delimita as condições geo-histórias, econômicas e políticas que possam permitir ou impedir − se for o caso − o indivíduo, as comunidades e as populações de usufruírem, no limite, de uma conjunção de políticas públicas necessárias para a vigência de a cidadania plena, dando sentido histórico à noção de sustentabilidade. A não acessibilidade implica diretamente na impossibilidade de aquisição das potencialidades indispensáveis à formação das capacidades, deixando as pessoas mais vulneráveis aos riscos econômicos, sociais e ecológicos, e contribuindo para a eternização da pobreza.
Constato que esta face virtual da sustentabilidade se revigora por meio dos modelos econômicos e das ações pragmáticas dos governos hegemônicos em dimensão global. Em geral, estes governos reforçam a ideologização binária, discriminatória e etnocêntrica do tipo: ocidente-oriente; norte-sul; pobre-rico; desenvolvido-subdesenvolvido; avançado-atrasado, e responsável-irresponsável, típica de processos colonialistas. Como pudessem existir dois tipos de sustentabilidade: uma para os países pobres e outra para os países ricos, ou uma para a civilização ocidental e outra para os povos originários.
A prevalência desta moral binária na cultura ocidental favoreceu a emergência de processos de globalização desprovidos de dimensões culturais e históricas. Isto contribui para fortalecer a tese de construção de um governo “central”, que legitimaria uma regulação mundial, assentada no “etos global”, que tem no princípio de universalidade dos direitos do homem e no desenvolvimento sustentável, suas principais diretrizes. Esta tese nega o fato de os governos dos países industrializados apoiarem e serem os principais beneficiários do processo de globalização. Ela também não pondera as determinações econômicas e os interesses sociais que articulam os processos de globalização. O que não elimina o mérito da noção de desenvolvimento sustentável contribuir para a politização das questões ambientais planetárias, e possibilitar a criação de vínculos mais fortes entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Este quadro de referência fortalece a nossa participação e a defesa dos interesses específicos dos meus povos nos fóruns de discussão e decisão sobre as sustentabilidades espiritualizadas e globalizadas.
Por outro lado, a noção de desenvolvimento sustentável só tem vigência histórica em experiências locais, enquanto política planejada de aproveitamento dos recursos de um território, envolvendo configurações sociais, situações políticas e possibilidades de aplicações de tecnologias disponíveis. A universalização dessas experiências locais, com projeções em escala planetária, é regulada por um objetivo comum negociado: a preservação da biodiversidade que por sua vez está estreitamente associada à diversidade cultural. A existência de condições objetivas para a sua plena realização ainda é objeto de polêmicas estruturantes. Tratando-se de meus interesses culturais, posso afirmar que o desenvolvimento sustentável de meus povos e territórios fazem parte dos projetos nacionais de maioria dos países industrializados. Sempre nas perspectivas deles.
Mas, a contragosto, continuo sendo transportada em direção ao meu colapso cultural e ecológico. Antes da chegada dos europeus, os meus povos me batizaram com vários nomes, mas agrada-me quando me chamam de “Abya Yala”, que significa “terra viva” ou “terra que floresce”. Portanto, eu sou “Abya Yala” e preciso me reconstruir. O alinhamento de minhas culturas, naturezas e potencialidades materiais e simbólicas ao conhecimento organizado compromissado com o aperfeiçoamento dos meus povos e da humanidade, me permite conceber uma sustentabilidade amazônica transgressora às determinações positivistas e funcionalistas da civilização ocidental. Tratarei desta questão na próxima etapa de minha jornada, que continua contaminada e ofuscada pelas poluições em meus rios e pelas fumaças impingidas às minhas florestas, territórios e povos, em nome da sustentabilidade do mercado.
Manaus, 27 de Setembro de 2024
Prof. Marcílio de Freitas
Texto, parcialmente, publicado no livro autoral “Nuances da sustentabilidade: visões fantásticas da Amazônia”.
Link para acesso: https://www.amazon.com/dp/B0CFCPFRPN
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