Manaus, 7 de setembro de 2024

O adeus ao “mestre Agnello”: Análise da consagração de um intelectual amazonense (parte I)

Compartilhe nas redes:


*Helio Dantas

Agnello Bittencourt foi um intelectual amazonense que faleceu em 1975, às portas dos 99 anos de idade. Tendo nascido em Manaus em 1876, Bittencourt residia no Rio de Janeiro desde fins dos anos 1940, após ter se aposentado, e a notícia de seu falecimento foi anunciada na imprensa manauara, seguida de uma série de textos publicados, em sua maioria, no Jornal do Commercio do Amazonas, por alguns dos nomes da intelectualidade local. Esse conjunto de textos forma uma espécie de necrológio, e acredito que a leitura que seus pares fazem da trajetória e obra de Bittencourt, àquela altura, nos ajuda a compreender como se deu o processo de constituição do panteão de autores e obras consagrados no campo intelectual amazonense.

No dia seguinte ao seu falecimento, o Jornal do Commercio descreveu Agnello Bittencourt como um “venerando filho” do estado do Amazonas, “a figura sem dúvida mais representativa da sociedade amazonense[1]. Em que pese o teor laudatório da imprensa periódica quando se trata do passamento de uma figura como a de Bittencourt, acredito que é necessário atentar para essa descrição, justamente porque ela foi seguida por uma série de manifestações dos principais nomes da intelectualidade amazonense de então.

Arthur Reis, Mário Ypiranga Monteiro, João Chrisóstomo de Oliveira, Genesino Braga, João Mendonça de Souza, foram alguns dos nomes que se pronunciaram na imprensa nas semanas seguintes. Alguns textos são breves, outros ocupam boa parte da folha do periódico, mas o tom geral que atravessa todos eles é o de um profundo respeito, inteiramente plausível dada a delicadeza daquele momento; contudo, eu diria que é mais que isso. Há um tom respeitosamente solene e com uma grande carga de familiaridade em relação ao falecido na escrita de cada um desses intelectuais.

Parto da hipótese de que Agnello Bittencourt encarnava, àquela altura, uma espécie de figura do intelectual amazonense ideal, ou, pelo menos, que houve um esforço considerável da parte de seus contemporâneos em construir essa imagem. Estou ancorado em três pontos que são destacados recorrentemente pelos seus homenageadores: a sua atuação docente, a sua produção escrita e a sua longevidade.

1. A atuação docente

Um traço a se frisar é que, entre os autores desse conjunto de textos, a grande maioria foram alunos de Agnello Bittencourt, muitos tendo inclusive atuado juntamente com ele posteriormente no magistério ou em agremiações intelectuais diversas. Talvez o epíteto mais recorrentemente associado ao autor seja o de “mestre dos mestres”[2], ou “mestre de gerações”[3], aparecendo por vezes no título dos textos ou ao longo de quase todos eles, inclusive daqueles que não o tiveram como professor.

Conforme dito no início desse texto, Bittencourt teve uma existência quase centenária, tendo começado o desempenho do magistério no início do séc. XX. Arthur Reis – àquela altura às portas dos 70 anos de idade – o chama de “meu velho mestre”[4], ao passo que João Chrisóstomo de Oliveira declara-se seu “discípulo”[5]. Ildefonso Pinheiro o descreve como “símbolo do amor ao magistério”[6]. Robério Braga, que não foi seu aluno, ao se referir a família de Agnello, diz que ela se estendeu à outras famílias amazonenses, “pois em cada uma ainda está um ex-aluno do preclaro mestre”[7].

O que vai sendo delineado ao longo das homenagens póstumas de forma quase unânime é a ideia de que, das várias frentes de atuação, o ensino foi a que mais marcou a figura de Agnello Bittencourt, que teria sido um “professor por vocação”[8], alguém que escolheu o magistério como a um “apostolado”[9]. João Nogueira da Mata frisa a abnegação de Bittencourt: “Podendo doutorar-se, ele uma inteligência peregrina – num período em que o bacharelado se erigia como o maior galardão dos abastados – optou pelo magistério”[10]. João Chrisóstomo de Oliveira é outro que reforça a visão de que, sendo Bittencourt filho de políticos, e podendo ter seguido a carreira paterna, escolheu um ofício “sacrificante e ingrato”, porém, “nobre”[11].

Agnello Bittencourt teria assumido a árdua, entretanto digna e louvável missão de educar gerações de amazonenses. Ele é descrito por todos como um homem pacífico, de índole tranquila, “fala mansa e convincente”[12], gestos comedidos, um “conversador sóbrio”[13]. Além disso, praticamente todos o apresentam como um “homem sem paixões”, um “varão sincero despido das preocupações materiais do mundanismo”[14]. Tal desprendimento era uma qualidade necessária a quem assumiria uma missão cívica de tal envergadura: Genesino Braga afirma que ele ensinava “como falando a futuros líderes de uma geração esperançosa, o vigor de sua fé nos destinos do Amazonas”[15]. Afirmação semelhante ecoa em Arthur Reis, quando este diz que Bittencourt foi um “elaborador da consciência cívica nos jovens”[16].

Como professor, Agnello condensava uma série de atitudes que o fariam um mestre por excelência de várias gerações de amazonenses, pertencente a um seleto grupo de professores considerados memoráveis[17]: abnegação, profundo conhecimento da área que lecionava[18], dedicação irrestrita ao ensino[19], assim como a generosidade e a bondade de um humanista. Em texto posterior, de 1983, Thiago de Mello relembra o professor Agnello: “era um sábio em muitas matérias, entre elas a bondade”, que direcionava aos seus alunos, “aos quais ele tratava, antes de tudo, como pessoas jovens a quem ele devia ajudar a preparar para os caminhos da vida” (Mello, 1983, p. 81).

No ano seguinte à sua morte, em celebração ao seu centenário, a maçonaria amazonense publicou uma breve biografia de Bittencourt, que também reforça essa perspectiva de um professor ao mesmo tempo bondoso e atencioso com seus alunos: “se exaltou diante de grandes e pequenos, conduzindo-os com superior educação, zeloso de sua conduta, respeitando os direitos alheios e compreendendo a coletividade, com tolerância e cortesia”[20]. Esse zelo na conduta se refletiria em uma atitude lembrada por Mario Ypiranga Monteiro: a sua tomada de posição diante da chamada “revolta dos ginasianos” em 1930. Agnello Bittencourt, diante da represália policial “truculenta” no tratamento aos alunos, se dirige ao Palácio Rio Negro e pede exoneração do cargo de Diretor da Instrução Pública[21].

2. A produção escrita

Como disse na seção anterior, Agnello Bittencourt era tido como um exímio conhecedor da matéria que ensinava, e sua desenvoltura no exercício do magistério foi reconhecida pela maioria de seus ex-alunos. Como autor, Bittencourt teve farta produção, publicando livros, artigos em revistas e crônicas jornalísticas. Entre os autores que o homenagearam na imprensa após seu falecimento, há um relativo consenso de que suas obras mais importantes foram Corografia do Estado do Amazonas, publicado em 1925[22], e Dicionário Amazonense de Biografias, publicado em 1973, 2 anos antes de sua morte.

Sobre o primeiro livro, vou me deter sobre ele em oportunidade futura. Por hora, vale observar, em linhas gerais, que este título se configura talvez como um suprassumo dos conhecimentos da geografia amazônica de Agnello enquanto pesquisador, mas que é alimentado e alimenta sua experiência docente: o texto original que deu origem à Corografia teria sido a tese de concurso à cadeira de geografia geral e corografia do Brasil no Ginásio Amazonense, em 1905[23]. Esse texto também figuraria como parte do “Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro”, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em comemoração ao primeiro centenário da Independência do Brasil, mas, por questões de atraso, não foi incluído na versão final.

Chamo a atenção para o Dicionário Amazonense de Biografias, porque acredito que sua publicação está muito vinculada à consagração de Agnello Bittencourt como um intelectual amazonense por excelência. Essa publicação foi gestada a longo prazo, pois o autor trabalhava na compilação de verbetes de “vultos do passado” amazonense pelo menos desde a publicação de Corografia do Estado do Amazonas – onde já figura uma seção dedicada aos “homens notáveis” – tendo se dedicado com mais afinco a esse processo ao longo dos anos 1950 e 1960, publicando periodicamente essas biografias aos domingos no Jornal do Commercio do Amazonas.

Um detalhe que considero interessante é que Bittencourt não residia mais no Amazonas quando começou a publicar os verbetes. Havia se aposentado em meados dos anos 1940 e se mudado para o Rio de Janeiro. Entretanto, mesmo a distância, continuou a gerir a autoimagem que a sociedade amazonense fazia de si. Waldemar Salles frisa que Agnello “nunca esqueceu o Amazonas. Qualquer publicação, livro, revista, que lhe fossem enviados, tratando de sua terra, merecia, de sua parte, a devida atenção”. Distante geograficamente de Manaus, permaneceu um agente importante, de maneira influente, estando no centro de seu interesse, pesquisa e intervenção intelectual as questões referentes ao Amazonas. “Continuava, no sul do país, a enviar trabalhos literários para a revista da Academia A. de Letras e IGHA”, completa Salles no mesmo texto[24].

Considero o Dicionário Amazonense de Biografias mais do que um mero repositório de verbetes sobre “vultos do passado” amazonense, e acredito que essa obra exerce um papel fundamental na compreensão da autoimagem que a sociedade amazonense faz de si: em seus verbetes é possível encontrar muitas pistas sobre sociabilidades intelectuais em Manaus, e, além disso, através da análise, é possível entrever as relações sociais – influências, disputas diretas ou indiretas, ressentimentos, impasses e acusações não somente entre intelectuais, mas entre os agentes sociais biografados e a própria posição de Agnello enquanto gerenciador da memória social das famílias amazonenses.

A força do Dicionário Amazonense de Biografias enquanto uma referência histórica marcante é constatada por Ana Maria Daou, ao realizar a pesquisa de campo para seu trabalho sobre a elite amazonense; a autora observa a importância atribuída ao Dicionário pelas gerações posteriores à sua publicação. Em nota, ela frisa que a obra era sempre indicada pelos amazonenses descendentes da elite que ela entrevistou no Rio de Janeiro, ou seja, em última instância, o Dicionário alcançou relativo consenso como “vitrine” da sociedade amazonense[25].

Outra publicação que aponta para a importância da atuação de Agnello como um “oráculo”[26] da história amazonense, atento ao gerenciamento da memória histórica de sua cidade natal é o livro Fundação de Manaus: pródomos e sequências, publicado em 1969. Maria Luiza Ugarte Pinheiro faz uma comparação entre essa obra e a já mencionada Corografia do Estado do Amazonas: enquanto que na Corografia, há um rigor técnico e analítico no desenrolar da obra, o livro de 1969 é marcadamente “laudatório e apologético”[27].

Arrisco dizer que “Fundação de Manaus” tem essas características justamente porque foi um livro publicado para celebrar os 300 anos da cidade de Manaus, comemoração que começou a ser celebrada naquele ano. Se lembrarmos que quase 20 anos antes, em 1948, Manaus celebrava seu centenário, o que aconteceu no período de duas décadas – e conduziu a um “ajuste” na idade da capital amazonense – é algo que vale a pena ser estudado e compreendido de modo mais aprofundado. Por hora, o que gostaria de observar é o fato de que, diante de uma mudança tão radical nessa comemoração cívica, a feitura desse livro ganha outro sentido: a “nova” efeméride teria obtido força justamente por ter sido legitimada, em livro, por um intelectual amazonense consagrado como Agnello Bittencourt.

  1. FALECEU no Rio de Janeiro o prof. Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.907, p. 6, 20/07/1975.
  2. BRAGA, Robério. Agnello, mestre dos mestres amazonenses (I). Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, 03/08/1975, p. 7.
  3. REIS, Arthur. Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, p. 7, 03/08/1975.
  4. Idem.
  5. OLIVEIRA, João Chrisóstomo de. Em memória de Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus,Amazonas, nº 21.909, p. 4, 23/07/1975.
  6. PINHEIRO, Ildefonso. Faleceu o grande mestre Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, p. 6, 20/07/1975.
  7. BRAGA, Robério. Agnello, mestre dos mestres amazonenses (I). Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, 03/08/1975, p. 7.
  8. CRUZ, Wladimir. O aquariquara do Amazonas. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.916, 31/07/1975, p. 3.
  9. BRAGA, Genesino. Mestre Agnello. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, 27/07/1975, p. 3.
  10. MATA, João Nogueira da. Professor Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, 03/08/1975, p. 7.
  11. OLIVEIRA, João Chrisóstomo de. Em memória de Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.909, p. 4, 23/07/1975.
  12. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Em memória de Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, 03/08/1975, p. 7.
  13. CID, Pablo. Palavras… Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.916, 31/07/1975, p. 3.
  14. REIS, Arthur. Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, p. 7, 03/08/1975.
  15. BRAGA, Genesino. Mestre Agnello. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, 27/07/1975, p. 3.
  16. REIS, Arthur. Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, p. 7, 03/08/1975.
  17. SALLES, Waldemar Batista de. Mestre de Gerações. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, p. 6, 20/07/1975.
  18. Idem.
  19. PINHEIRO, Ildefonso. Faleceu o grande mestre Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, p. 6, 20/07/1975.
  20. Agnello Bittencourt. Centenário do seu nascimento. Manaus: Imprensa Oficial, 1976, p. 15.
  21. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Em memória de Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.919, 03/08/1975, p. 7.
  22. Essa obra teve segunda edição em fac-símile em 1985, como vol. 5 da Coleção Hileia Amazônica, coordenada pela Associação Comercial do Amazonas.
  23. BRAGA, Genesino. Mestre Agnello. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, 27/07/1975, p. 3.
  24. SALLES, Waldemar Batista de. Mestre de Gerações. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.913, p. 6, 20/07/1975.
  25. Cf. DAOU, Ana Maria. A Cidade, o Teatro e o “Paiz das Seringueiras”: práticas e representações da sociedade amazonense na virada do século XIX-XX. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2014, p. 32-35.
  26. OLIVEIRA, João Chrisóstomo de. Em memória de Agnello Bittencourt. Jornal do Commercio, Manaus, Amazonas, nº 21.909, p. 4, 23/07/1975.
  27. Cf. PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus (1899-1925). Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, 16, 1998, p. 213.Continua na próxima edição…..

 

*Hélio Dantas é professor de História na rede pública municipal de Manaus e historiador na Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas. É autor do livro “Arthur Cézar Ferreira Reis: Trajetória Intelectual e Escrita da História” (Paco Editorial, 2014), e, atualmente, está escrevendo uma tese de doutorado sobre a história da historiografia amazonense.

 

Views: 137

Compartilhe nas redes:

2 respostas

  1. Prezado Hélio Dantas, parabéns pelo belíssimo artigo. Suas reflexões sobre a história da historiografia amazonense tem contribuído para iluminar passagens importantes da nossa escrita da história. Valeu

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques