Manaus, 30 de novembro de 2023

O alçapão

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lya luft
*Lya Luft

Ao peso de uma corrupção nunca vista, a grande nau foi desviada de qualquer rota sensata e enterrou a quilha na lama do leito de águas muito turvas.

“Me causa espécie que a certas pessoas Deus tenha dado o dom da fala”, dizia um velho e ótimo professor da faculdade. A mim, causa espécie a assustadora simplicidade (alienação, descaso ou deboche) com que algumas autoridades falam da situação do país. Anunciam-se mudanças, apresentam-se planos e projetos com dados irreais, num otimismo nada saudável porque populista e eleitoreiro, dirigido a um povo sem muita noção da catástrofe que se aproxima. Líderes e governantes deveriam nos representar: muitas vezes nós os escolhemos inconscientes da seriedade absoluta de cada voto.

Agora, espero que, com a falta de confiança e rumo, e as angústias do empobrecimento e do desemprego – mais de 9 milhões no momento em que escrevo(dados oficiais do IBGE anunciados na imprensa) -, a gente comece a transferir as dores do bolso, da falta de segurança e de oportunidades, dos cortes na comida, luz e água para a cabeça: raciocinando que numa próxima vez temos de votar diferente, ser um povo diferente, muito mais firme na defesa de nossos direitos e nosso futuro.

Menciono mais uma vez, com profunda tristeza, a tragédia da nossa educação, saneamento, saúde, infraestrutura. Comigo estão milhares de brasileiros pensantes, centenas de jornalistas bem informados e honrados. Porém, as lideranças em cargo de governo e mando, que deveriam ser nosso exemplo, parecem desinteressadas dos fatos dramáticos que nos atordoam: pronunciam frases otimistas e irreais, prometem forças-tarefas fadadas ao fracasso, e acusam outras nações dos nossos problemas. “Foi ele, professor”, dizem os moleques na escola. “Foram os estrangeiros, meu eleitor”, dizem nossos representantes.

Na realidade, chegamos ao fundo do poço, ou quase. Ao peso de uma corrupção nunca vista – envolvendo nomes importantíssimos, empresários, políticos, até vários membros do Congresso sob investigação, – a grande nau foi desviada de qualquer rota sensata e enterrou a quilha na lama do leito de águas muito turvas. Os que deveriam ter impedido isso, portam-se como se comemorassem vitórias numa regata fácil. No fundo desse poço de lama, comenta-se, pode existir um alçapão, e deve ser por aí: não chegamos ao fim da derrocada.

Podemos ser ainda mais explorados, enganados, roubados, pois restam um pouco de feijão e arroz no prato, água para um banho rápido, e luz, quem sabe, para a geladeira. Ainda estamos podendo reduzir a lista de alimentos no supermercado, e rolar algumas dívidas para as quais fomos empurrados pelas sugestões de líderes: comprem, comprem, comprem. Não nos contam direito que, com impostos e inflação em alta, empregos em queda vertiginosa e economia caótica, pagamos uma conta que não é nossa, nem se originou no exterior, mas em desmandos aqui mesmo.

Como reagir sem que a violência – que tanto receio – irrompa quando a paciência acabar, a fome das crianças cortar nosso coração, com os velhos morrendo na escada do posto de saúde, os jovens sendo chacinados nas esquinas (porque segurança também não temos, a droga impera, e os desempregados podem ser presa fácil dos traficantes)? Numa democracia real, a gente reage pelo voto, com protestos civilizados, sem mascarados que desvirtuem o movimento destruindo bens públicos e privados. E aqui?

De alguma forma, unindo forças lúcidas e justas, temos de impedir que o país caia nesse alçapão: se ele nos engolir, a luta por democracia e progresso terá fracassado. Embora não se veja o rumo, alguma reação é necessária, pois a nação está imersa em violência crescente, com bizarros planos para a educação, o comércio e a indústria parando, o país isolado. Enfermidades nascidas da falta de cuidados e interesse deformam e matam. Acumulam-se denúncias gravíssimas de quantias desviadas que construiriam hospitais e escolas, estradas e fábricas. Projetos abstratos e inexequíveis, em que ninguém acredita, morrem na casca.

Precisa-se, urgente, banir a tirania da obsessão pelo poder, do descaso e da incompetência – ou naufragaremos.

*Escritora. Articulista da Revista Veja. Texto na edição 2467, de 02/03/2016.

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