Manaus, 21 de novembro de 2024

O barão da borracha

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É costume dizer-se que havia barões ensandecidos rasgando dinheiro na Manaus da “belle époque”, queimando cédulas de alto valor para acender charutos importados, promovendo festas intermináveis nos cabarés e importando “polacas” para o prazer pessoal. Fala-se de muitos homens abastados pelo leite da seringueira enquanto grande número de miseráveis que cortavam seringa e geravam essa riqueza, pouco ou quase aparecem nas contações de histórias as quais, como o passar dos anos, vão esmaecendo na memória coletiva de uma cidade que foi transformada em verdadeira babel da desordem e da destruição no seu Centro Histórico que era rico, delicado, harmônico e elegante sob o ponto de vista arquitetônico e urbanístico.

Verdade ou não, o que contam os jornais da época, o que registram os contratos de exportação, as atas de entidades representativas do comércio e alguns livros-depoimento é que pelo menos um desses ilustres varões poderia ser chamado de barão da borracha: o banqueiro Bibier, de Londres que, em Manaus, mantinha um braço de negócios com seu sobrinho Nikolaus Witt, este que era proprietário da firma Rudolf Zietz & C.

Nikolaus, ou Nico como era tratado em família, foi dos poucos que explorou os negócios da borracha e defendeu a produção amazonense com unhas e dentes pelo Brasil e pelo exterior, por onde andava demonstrando a qualidade da nossa borracha frente ao arremedo da produção inicial do Ceilão que ameaçava destruir nosso mercado. Ele era recebido em banquetes de negócios por onde andasse e todas às vezes se manifestava visando fortalecer as exportações da região amazônica brasileira.

O sócio e amigo Zietz mantinha relação familiar com Bieber e Nico desde quando, em 1820, seus ancestrais chegaram a Salvador da Bahia e estava em um desses banquetes de negócios que foi realizado em Belém, para integrá-lo à Associação Comercial do Pará. Bastante requintado e com a presença da nata de comerciantes da região, o jantar foi aberto oficialmente pelo presidente da Associação paraense e depois por Nico, que retirou a tampa da terrina de louça inglesa que continha a sopa amazonense. Tomando a concha de prata nas mãos, ele passou a servir os convivas em pratos postos à sua frente, os quais eram levados pelos garçons para cada um dos convidados. Essa concha é que lhe foi entregue, depois, como mimo de lembrança do faustoso evento. Depois, em poucas palavras, Nico ergueu um brinde com bom champanhe, dando vivas à saúde e aos bons negócios de todos. Um “incidente” para Nico, mais uma coisa que pareceu comum entre eles, deu-se quando Nico se deparou com carne de macaco na sopa, mas isso não o tirou do plumo nem fez perder a solenidade da ocasião, muito menos a transferência de encargos que lhe foi entregue para negociar a redução dos impostos sobre a borracha Amazônia com o governo brasileiro e os banqueiros internacionais.

O maior de todos os barões da borracha, ou talvez o único que merecesse esse título, se mantinha encastelado na Europa, o barão de Gondoriz, ostentava essa posição por negócios próprios e por facilidades obtidas junto ao governo para a sua Companhia Nova União que recebia 20 réis por quilo da borracha, o que também favorecia a sua empresa sediada em Belém e que girava sob o nome de Singlehurst, Brocklehurst & Co., gerenciada pelo alemão Kantack, cônsul da Alemanha no Pará.

Bieber & Cia, de Londres, reagia a esses favores que quebravam a concorrência, mesmo que o representante do barão no Pará e Amazonas fosse o seu amigo Zietz, mas se viu impotente para vencer o barão Gondoriz, e a borracha desabou no mercado internacional e a fome grassou nos seringais.

II

Festa no Palácio

 

Nas comemorações de 355 anos da presença europeia oficialmente instalada na Barra do Rio Negro, atual cidade de Manaus, em razão da construção do forte de São José do Rio Negro, entendi oportuno destacar um dos edifícios icônicos do período áureo da exportação da borracha que representa muito bem o símbolo da exuberância da vida das famílias mais abastadas e que por sua verdadeira história serve como prova do esbanjamento de libras esterlinas pelos “senhores da hévea” e do deslumbramento ao qual a grande maioria deles se permitiu viver o que os conduziu à bancarrota anos depois.

Trata-se do Palacete Scholz que nos chegou como Palácio Rio Negro, precisamente em razão da falência de seu proprietário original, o alemão Waldemar Scholz que, durante muitos anos, não passava de gerente – mesmo que categorizado gerente – dos negócios do verdadeiro barão, o quase desconhecido Nikolaus Heinrich Witt, este sim que era o financiador dos principais e mais elevados investimentos no plantio, compra, propaganda, defesa e exportação da borracha amazônica, mas que acabou por ter de se deslocar de Manaus para a Europa em razão de poliomielite que atacou seu filho mais velho e para atender aos reclamos da esposa Virginia. Em razão disso deixou em mãos de Waldemar as suas empresas e negócios, ficando como investidor, mas senhor de todo o patrimônio.

Waldemar foi um deslumbrado com a riqueza que lhe chegou e, como pretendera seu patrão, mandou construir um palácio para sua casa de residência pela firma de Henry Phillip Moets, primo do patrão Nikolaus. E foi neste Palácio que, no dia da inauguração, possivelmente no Natal de 1907, deu-se uma das festas mais imponentes daqueles anos, na “Casa dos Sonhos” de Nikolaus a qual se tornou o palacete Scholz. Por lá estavam os serviçais Maria e Pedro seguindo as ordens e comandando a decoração. Do corrimão da escada descia a luminosa estrela de Belém para encontrar a Árvore de Natal decorada com tufos de algodão e fitas prateadas de Lametta. Uma cena teatral foi organizada pelo próprio Waldemar, com Maria representando a mãe de Jesus e sua filha pequena que ficou na manjedoura e, vez em quando, era retirada para ser amamentada ao vivo, com toda a naturalidade. Os Reis Magos foram Pedro, Heinz Schumann e Franz Chonitz, com roupas pesadas e enfeitadas como se fossem reis de verdade. Ao lado da manjedoura um coral de crianças vestidas de anjinhos cantava continuadamente hinos próprios da época durante a chegada dos convidados. A ceia foi de lugar marcado e junto aos cartões que identificavam o casal, havia presentes.

A entrada do Palácio ficou congestionada de carros da marca “Bugattis”, do último tipo. Manoel, homem de confiança de Waldemar, ajudava as damas a descerem dos carros. Pierre, em uniforme de gala vermelho com enfeites e cordões dourados, de pé, no primeiro degrau da escadaria de pedra, batia pesado com vara de ferro para anunciar, em voz alta e com sotaque francês, o nome do convidado que subia lentamente os degraus de pedra da entrada. Do alto da torre mirante do prédio, o próprio Waldemar fazia questão de dar mais solenidade saudando a todos ao som de seu clarim. No hall, os anjinhos cantavam em alemão: “Am Weinachtsbaum die Lichter brennen…”. Todos ouviam o canto singelo e passavam os olhos admirados reconhecendo a suntuosidade e a beleza das escadarias de madeira que levam ao segundo andar. As senhoras faziam o sinal da cruz em respeito ao presépio e Santa Família. Foi uma noite das arábias.

Os comentários elogiosos demoraram tempo largo em meio à elite da sociedade da época, mas a orgia de Waldemar em festas desse tipo e em noitadas no Hotel Cassina derramando dinheiro a rodo nas jogatinas, terminaria em breve e ele se viu obrigado a hipotecar o Palácio, voltar para a Europa em situação quase miserável e, ao prestar contas ao dono da fortuna que ele dilapidou, não conseguia explicar o que havia sucedido, mas o velho Nikolaus já vinha sabendo há muito de suas peripécias desastrosas.

O leitor deve estar se perguntando se tudo isso é verdade ou ficção. Afirmo ser verdadeiro, pois a riqueza de detalhes me foi contada por Nikolaus Witt, neto do grande barão, e muito mais que ele contou em livro que escreveu sobre a sua vivência em Manaus nos anos de ouro da hévea o qual fiz publicar quando titular da Secretaria de Estado de Cultura.

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