Manaus, 16 de maio de 2024

O colecionador do Javari

Compartilhe nas redes:

Esta história não é fictícia, ela de fato aconteceu na fronteira do Javari, em pleno ciclo da borracha, após 1884, quando os seringais daquele rio, metade brasileiro, metade peruano, começaram a produzir grandes quantidades de borracha da melhor qualidade, proporcionalmente maiores que as produções dos três rios clássicos: Juruá, Purus e Madeira, três vezes maiores do que cada um deles. E essa borracha fluía, ora para Iquitos, ora para Manaus, conforme a praça que pagasse melhor aos produtores, por quilo de borracha fina, trocada por libras ouro, as moedas da gaveta da máquina de costura da minha bisavó Liberalina.

Apareceu certo dia por aquelas bandas, antes de Remate de Males desabar por inteiro em um dia, dentro daquele rio fronteiriço, um aventureiro envolvido na caça de índios, matando os homens das tribos arredias e vendendo como escravas as mulheres e as crianças aprisionadas, nessas guerrilhas de limpeza étnica. Não sabemos mais se era colombiano ou brasileiro, mas sem dúvida filho de uma cearense. Chamava-se Dilhermando, contavam os mais antigos moradores.

Dizem que com o dinheiro dessas vendas escravagistas adquiriu um seringal do outro lado do rio, do lado peruano, onde praticou toda sorte de crueldades e alguns maus comportamentos de seringalistas perversos, depois imputados e estendidos a todos, sem distinção.

Mantinha sua casa de seringalista de boas posses, bem arrumada, com a mesa farta, pois gostava de convidar para dela participarem, em almoços ou jantares, os viajantes, comandantes de navios, caixeiros das casas aviadoras e autoridades, que paravam no seu porto, para saber das novidades que estavam ocorrendo em Manaus e criar laços de amizades, que jamais se desfaziam. Possuía até uma equipe de cabocos amazonenses, conhecedora das matas e dos rios das vizinhanças, que supriam a sua cozinha com peixe fresco e carne de caça, principalmente de suas preferidas: paca, anta, caititu e veado, além da carne velha do Ceará, com feijão ou pilada com farinha, feito paçoca, e banana, além da boa rapadura e do mel de engenho de Uruburetama, como sobremesa.

A casa de Dilhermando tinha uma particularidade. O assoalho de paxiúba era bem lixado e encerado com cera de carnaúba, vinda especialmente do Nordeste, duas vezes por semana, com todo esmero. E ele não admitia a entrada na sala, com sapato sujo de lama ou areia.

Naquele tempo quase todo mundo tinha pigarro e a todo hora um escarro era cuspido em algum lugar, por vários motivos, e, entre eles, o hábito de mascar tabaco, o uso de cigarros de fumo forte e a tuberculose, doença que afetava grande número de pessoas, daí a existência de belas escarradeiras de porcelana, com motivos florais, em todas as salas, em todos os cantos, no Teatro Amazonas, em seus corredores e até no dito salão nobre, o local dos fumantes, nos intervalos.

O negro Sebastião foi visitar Dilhermando, que o recebeu na sua bela sala encerada, sentado em sua cadeira de balanço.

A determinada altura da conversa Sebastião, que mascava um pouco de fumo de rolo de Borba, deu uma cusparada no chão.

Dilhermando chamou sua empregada e mandou que colocasse uma escarradeira perto do visitante, mas este, sem entender o recado, deu nova cusparada no assoalho brilhante, o que lhe valeu uma maior aproximação do objeto destinado àquele ato que sujava a beleza da sala.

O fato é que na terceira escarrada Dilhermando pulou da cadeira e arrancou da parede um chicote de couro de peixe boi, da grossura de um dedo, com que costumava disciplinar seus seringueiros.

Sebastião, apavorado, desceu a escada da palafita do patrão, em desabalada carreira, na direção do porto, para embarcar na sua canoa, com Dilhermando atrás dele. Conseguiu desamarrar a embarcação e remou em fuga, mas o seringalista enfurecido, mesmo sem saber nadar, mergulhou atrás dele, e já estava se afogando, vítima de sua própria ira, pois não sabia nadar, quando foi salvo pela tripulação da sua lancha. E o fugitivo passou meses sem ir à sede do seringal até que passasse a ira do seu patrão.

Porém o que marcou a vida de Dilhermando foi a sua paixão de colecionador.

Em um canto da sala de visitas de que já falamos existia uma grande frasqueira dessas verdes de vinte e cinco litros, em que vinha a boa cachaça de Abaetetuba, do Pará. De longe, parecia um objeto decorativo, mas se nos aproximássemos um pouco dela veríamos no seu interior, além da boa aguardente paraense, dezenas de orelhas de todas as cores, formatos e tamanhos flutuavam. Orelhas brancas, pretas e morenas, com lóbulos e sem lóbulos, das grandes e pequenas, cabeludas e glabras, boiando e conservadas, no precioso líquido. Eram as orelhas decepadas de seringueiros que iam reclamar sobre saldos ou fazer qualquer queixa que não agradasse ao despótico Dilhermando. Dizem que ele chegou a cortar uma das orelhas de sua mãe, que se tornara viúva e namoradeira, indo pedir-lhe uma viagem para o Ceará.

Dizem ainda que fez o filho de um governador, que andava por aquelas bandas, cumprindo um tempo de nomeação, para voltar para a capital, casar à força com sua filha, sob a mira de um papo amarelo.

O governador chegou a mandar uma tropa policial para prendê-lo, uns vinte soldados, que nada conseguiram, pois a conselho do meu bisavô o major da Guarda Nacional João Facundo de Menezes, ele atravessou o Javari e se refugiou do outro lado do rio, na margem esquerda peruana.

Não sei se é verdade, mas ele teve um trágico fim, amarrado a um tronco, no centro de uma aldeia indígena, sendo flechado por todos os seus habitantes, que assim se vingaram de um ataque que lhes fizera, em tempos passados.

Visits: 82

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques