Manaus, 18 de setembro de 2024

O Município de Itaquatiara

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*Mario Ypiranga Monteiro

Origem toponímica

Itaquatiaras – ensina a etnografia moderna, são as inscrições rupestres, não somente do Amazonas, mas de todo o Brasil, isto é, são os símbolos de uma escrita primitiva asilada nos panos de pedra, inspirados em qualquer fato significativo da vida normal ou emocional do índio, às vezes, quero crer, uma simples manifestação do seu temperamento artístico. Não como quer Angione Costa, o produto constante do temperamento folgazão, sem qualquer finalidade comunicativa, sem um rasgo de intenção de pensamento dirigido. O índio devia saber comunicar-se por meio de sinais, de uma escrita bastante primitiva, mas suficientemente clara para eles. Alega-se que ninguém conseguiu interpretar tais símbolos, existentes em muitas localidades do Brasil e com especialidade da Amazônia. Creio não ser esta uma razão para impugnar a intenção dos símbolos existentes. De fato, tivemos nós a pouca sorte de nunca encontrarmos uma chave para o mistério secular dessas inscrições e também não é acertado admitir, como definitivos, os trabalhos de Stradelli1 e de Bernardo Ramos,2 deste especialmente. Há, todavia, que considerar como fato concreto a existência dessas itaquatiaras e admiti-las, à luz de um critério honesto, como provenientes de um estrato cultural anterior à fixação do índio contemporâneo do civilizado.

Que essas inscrições dizem alguma coisa é curial. Não são meras ideações, traços vasados ao sabor do punho, como deseja o estudioso Dr. Angione Costa.3 E tanto não o são que coincidem bastantes vezes, como se houvesse a preocupação de repetir um mesmo fato em localidades distantes umas das outras. Poder-se-á alegar um paralelismo de cultura, ou uma simples coincidência de traços. Se apanharmos os símbolos encontrados na região do município de Itaquatiara e compararmos com outros achados no Uaupés ou mesmo no interior do Brasil,4 veremos com surpresa que portam a mesma linha de perfeição, um mesmo paralelismo, identificando-se pela repetição de certos desenhos, rústicos é verdade, mas com persistência talvez mais lógica do que arbitrária

Qual a origem do povo que deixou esse misterioso arquivo na pedra? Somos contrários combatemos a presunção de uma origem fenícia, veiculada pelo padre Ulisses Pennafort5, retomada no princípio deste século, entre nós, pelo visconde Onfroy de Thoron6 e defendida sem muita originalidade por Bernardo Ramos. Cremos achar mais base e mais lógica na passagem de hordas indígenas, marcadamente engenhosas, por determinados pontos da bacia, sabido como é que essas civilizações se sucederam com espantosa mobilidade, aculturando-se, assimilando-se, substituindo-se no tempo e no espaço.

Itaquatiara, o município progressista do médio Amazonas, guarda uma original história de civilizações pregressas que lhe deixaram, ao passar, colgadas dos barrancos e sumidas nas suas florestas, provas materiais hoje estudadas por uma estirpe nova, da qual é conspícuo representante o doutor Geraldo Pinheiro, promotor público daquela cidade e hábil pesquisador da valiosa cerâmica indígena local. É impossível, hoje, dizer quando e como essa civilização plantou-se e progrediu no trato de terra à margem do Amazonas. No entanto, ao contrário de muitos outros núcleos silvícolas, a sua barranca e a ilha Aibí provam, com seus resíduos arqueológicos, pelo menos uma coisa: a estrutura básica de uma sociedade bárbara, fixada, que dominou de maneira vamos dizer estratégica, aquele cotovelo do Amazonas, ou Solimões se prefere. Essa prova está, apenas, em dois fatos mais do que interessantes: as escrituras rupestres itaquatiaras – e a formidável necrópole – Miracanguera ou Muiracanguera. Só uma cultura poderia marcar a sua existência num local com um cemitério, a exemplo dos depósitos exauridos da Praça Pedro II em Manaus. E quando se pensa em transferir a aldeia de Abacaxis para outro lugar, que local mais adequado vão preferir os índios? Itaquatiara. Note-se que o nome não foi posto pelo civilizado. Já existia real, definitivo, exprimindo toponimicamente a existência das pedras lavradas. O nome pegou na arqueologia moderna, com o sentido universal de sua etimologia: pedra pintada ou lavrada.

Sob o título Igaçabas, o cônego Bernardino José de Souza publicou no seu clássico livro Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas, o seguinte:

Pouco acima da vila de Serpa, na mesma margem em que se acha colocada a vila vem-se os sinais de um vasto cemitério índio. / Aqui e ali, a terra diluída pelas enxurradas, cai e deixa ver ao navegante, que por aquelas paragens transita, as igaçabas ou urnas funerárias em que guardavam os indígenas os restos dos seus maiores. / Muitas dessas urnas têm sido recolhidas pelos transeuntes, como objetos de curiosidade, sem contudo lhes darem importância alguma, e destarte vão as relíquias venerandas de uma geração inteira tendo um fim para que nunca as destinaram.7

A sede do município fica situada numa esplanada, cerca de 25 pés, na margem esquerda do rio Amazonas (ou Solimões se preferem), a 270 léguas acima da foz, contando pelas voltas do rio, e 30 abaixo de Manaus.8 Está a 3°08′54″ de lat. S. e a 58° 25’00” de long. W. Greenwich, quase no cotovelo do rio, entre as ilhas de Trindade e de Serpa. Essa situação foi muito louvada pelos cronistas, em virtude dos bons ares, grande cópia de pescados, excelência das águas, salubridade, abundância de tartarugas, de que todos falavam com entusiasmo. A área do município era de 13.275 quilômetros quadrados, sobre 1.592,626 quilômetros quadrados ocupados pelo estado, portanto 0,83% de área estatal.9 Atualmente, a área de Itaquatiara ficou reduzida com a criação dos municípios de Autazes e Nova Olinda do Norte, pela Lei n.º 96, de 19 de dezembro de 1955, na gestão governamental do doutor Plínio Ramos Coelho.

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1 STRADELLI, Ermano. Iscrizioni Indigene della Regione dell Uaupés (Con Tavole e Carte). Roma, 1900.

2 RAMOS, Bernardo de Azevedo da Silva. Inscrições e tradições da América Pré-histórica. Especialmente do Brasil (2 volumes, o 2. ° volume foi publicado muito posteriormente). Rio de Janeiro, 1930.

3 COSTA, Angione. Introdução à Arqueologia Brasileira. Etnografia e História. 2. edição, Brasiliana 1938.

4 ARARIPE, Tristão de Alencar, “Cidades Petrificadas e Inscrições Lapidares no Brasil”. Memória lida perante o instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em sessão de 9 de dezembro de 1866. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo I, Rio de Janeiro, 1887.

5 PENNAFORT, Conego Ulisses. Brasil Pré-histórico. Fortaleza, 1900.

6 THORON, Visconde Onfroy de. Antiguidade da Navegação do Oceano: Viagens dos Navios de Salomão ao Rio das Amazonas. Ofir, Tardschisch e Parvaim. Manaus, 1906.

7 Op. cit., Pará, 1873.

8 COUTINHO, J. M. da Silva. Relatórios sobre alguns lugares da Província do Amazonas, especialmente do rio Madeira, p. 4, Manaus, 1861.

9 Sinopse Estatística do Município de Itaquatiara. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

*Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Amazonense de Manaus, historiador, folclorista, geógrafo, professor jornalista e escritor. Pesquisador do INPA, membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. É o autor que mais escreveu livros sobre História do Amazonas, com quase 50 títulos.

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