Manaus, 22 de novembro de 2024

O Município de Itaquatiara

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*Mario Ypiranga Monteiro

Os primeiros viajantes

É o cronista padre Cristóvão de Acuña quem nos vai dar a primeira impressão da paisagem ainda virgem de ocupação branca, quando informa, no seu estilo pitoresco, ao passar em 1639 pela hoje Itaquatiara:

Treinta y dos leguas de donde desagua este rio Cuchigará lo haze tambien, á la venda del Norte otro, com nombre entre los naturales, de Basururú, que dividiendo la tierra adentro en grandes lagos, la tiene toda partida en muchos Islas, las quales todas pueblan infinitas naciones,/ Son tierras altas, y que nunca se anegan, por mayores inundaciones que aya, muy fértiles de mantenimientos, así de maízes, mandioca y frutas, como tambien de caças, y pescados, com que los naturales viuen hartos, y se multiplican cada dia más.10

E refere por naturais elementos humanos aos Carabayanas¹¹ nome geral de todas as tribos que ocupavam a região, Caraguanas, Po coanas, Vrayarís, Mafucaruanas, Quererús, Cotacarianas, Moacaranas, Yaribarus, Yarucaguacus, Cumaruruayanas e Curuanaris.

Admirável cronista, que numa viagem rápida conseguiu balancear não só as humanidades locais, como assegurar, para espanto nosso, que tais elementos usavam herramientas de yerro, como son achas, machetes, podones e cuchillos, provenientes da costa do mar, possivelmente de origem holandesa. Se os indígenas referidos nunca foram identificados posteriormente, vê-se que, pelo menos, os nomes das cabildas portam um caráter netamente tupi, uma semelhança muito clara com outros nomes locais. Por exemplo, quando se refere ao famoso rio Basururu, ficamos logo sabendo que se trata do rio Urubu, de sinistra memória. O rio Cuchiguará corresponde ao Purus. As tribos que o padre indica nunca chegaram realmente a ser identificadas e cremos que por uma única razão: alteração da grafia original. O padre Samuel Fritz, que desceu o Amazonas por 1689, fala de outras gentes, nomeando-as com mais precisão, inclusive aos ferozes Mura e aos Tarumã.12 Todavia, assinala-se que a descrição da paisagem e da fertilidade das terras é comentada com entusiasmo por outras testemunhas de vista. Diz o padre alemão Samuel Fritz:

A 15 (de junho de 1689) cheguei às casas desertas que os Portugueses haviam construído em umas barrancas altas. Estes já se tinham retirado dias antes da minha descida; encontrei-os mais abaixo; chamava-se um Manuel Andrade e outro Manuel Pestana./ Logo que cheguei aquela paragem, vieram de suas aldeias muitos índios e índias Cuchivaras com seus filhos e ocupando aquelas casas desertas enquanto ali estive, que foi por oito dias, me assistiram com muita prontidão e amor, mais do que se fossem cristãos, trazendo-me muitíssimo pescado, tartarugas e plátanos, mostrando desejo que ficasse com eles.13

A referência às barrancas altas concorda perfeitamente com a posição de Itaquatiara, situada a 25 pés acima do nível do rio. Quanto à indicação das moradias de portugueses, é necessário saber que à data (1689) da passagem do missionário jesuita, já as condições eram outras. O domínio luso estava de fato e de direito assentado, com a criação da Capitania de São José do Rio Negro. Também o ouvidor-mor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, em visita aos extremos da antiga Capitania de São José do Rio Negro (1774-1775), informa no seu maravilhoso e idôneo diário:

Ao meio dia chegamos a villa de Serpa, que está situada na mesma margem meridional do Amazonas. Fica em huma espaçoza planície, a terra muito elevada ao rio, a praça he vistoza, e forma hum parallelograma: seria em tudo completa, se assim como he abundante de pesca, a praga da formiga não destruísse as plantações, e roças.15

O importante no diário do ouvidor, referente ao assunto índios, é o balanço dado nas póvoas existente, em nada conexo com as referências do bom padre Acuña. Diz ele das tribos, que eram: Sará, Bari (Baré), Anicoré, Aponariá, Tururí, Urupá, Juma, Juquí, Curuaxiá, Pariquí. Mesmo levando-se em consideração o tempo distraído entre a informação do padre Acuña e a viagem demorada de Sampaio, isto é, entre os anos de 1639 e 1775, intervalo de cento trinta e seis anos, nada faz supor uma completa modificação na unidade ética local. Mesmo porque em 1689, cinquenta anos depois do padre Acuña, o padre Samuel Fritz, descendo pela vez primeira o Amazonas, encontrava consoante os seus lúcidos depoimentos, tribos muito nossas conhecidas e com frequentes alusões na crônica daqueles idos, a exemplo dos Tarumā, Tupinambarana, Aruaqui, Mura, etc. Que faz supor esse estranho balanço do padre Acuña? Que ele não tomou contato direto com as humanidades nativas, servindo-se de turgimão; que inocentemente deformou os nomes ouvidos; que deliberadamente ou não, omitiu outras cabildas. É o meu pensamento, visto que, aqui e ali, afloram no seu relato algumas informações criteriosas, fiéis, por exemplo, ao modus vivendi daqueles povos, e até adiantando hipóteses atrevidas, como a singular de que os Tupinambás deram origem ao topónimo Tupinambarana, mais tarde invocada e consentida pelos padres Fritz, Bettendorf, etc. Acredito piamente que o padre viesse ainda com os ouvidos cheios daqueles nomes difíceis que encontrou no alto Amazonas, a exemplo do topônimo Carabaia, referido na crônica.

O padre jesuíta João Felipe Bettendorf vai repetir, portanto sem originalidade, a mesma teoria de informes dos cronistas anteriores, apenas alterando o nome do rio Urubu, que escreve Bocururu.16 É assinale-se aqui, em guisa de curiosidade, que a sua particular contribuição à etnografia amazônica tem foros de autêntica preciosidade, com a referência a diversas tribos locais: Paguana (os Pocoana de Acuña?), Jagoanaí, Muene, Mapiana (Maiapena?), Huiruna (Juruna?), Cuchiyena, Cumayari (Curuanarí do padre Acuña?), Guaquiarí, Carueura, Carigua re, Cachiguena, Mariabano, Caripuna e Curina (lavradores eméritos de obras em madeira, como bancos), Carabuyana, etc.

O vigário Geral do rio Negro padre Dr. José Monteiro de Noronha diz:

Vencidas mais duas legoas, se chega a villa de Serpa situada na paragem chamada das pedras pintadas; e no idioma geral dos índios: Itacoatiara. Esta villa foi a primeira vez fundada no rio Mataurá, que faz barra na margem oriental do rio da Madeira, de que se tratará mais adiante. De Mataurá se mudou, para o rio Canumá: Deste, para o de Abacaxis: Deste, para a margem oriental do rio da Madeira pouco abaixo do furo, de que se faz menção no § 68. E desta paragem, para a em que presentemente está. Os seus primeiros povoadores foram os índios da nação Ururiz, aos quais se agregarao os da nação Abacaxis, e de outras muitas,17

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10 ACUÑA, Pe. Cristóvão de. Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas. p. 147. Madrid, 1891.

11 Carabaya é o nome indígena da cadeia dos Andes.

12 Padre Samuel. “Diário” in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 81:381. Rio de janeiro, 1918.

13 Idem, idem, loc. cit. Plátano é a nossa banana.

14 MONTEIRO, Mário Ypiranga. A Capitania de São José do Rio Negro (Antecedentes históricos e fundação). Manaus, 1953.

15 SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem que em visita e correição das povoações da Capitania de S. José do Rio Negro fez o Ouvidor, e Intendente Geral da mesma – no ano de 1774 e 1775, p. 4-5. Lisboa, 1825.

16 BETTENDORF, padre João Felipe, Crônicas da Missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 55, tomo LXXII (parte 1) (1909), Rio de Janeiro, 1910.

17 Roteiro da Viagem da Cidade do Pará, até as últimas colônias do Sertão da Provincia. Escrito na Villa de Barcelos pelo Vigário Geral do Rio Negro padre Dr. José Monteiro de Noronha, no ano de 1758, Pará, 1862, p. 28-29.

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