Manaus, 19 de junho de 2025

O rei (quase) sem medo

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*Alexandre Salvador

o maior jogador da história, que passou por quatro cirurgias nos últimos dois anos, fala da saúde, futebol, velhice, alegrias e arrependimentos. E diz que medo só tem um. 

“A Copa do Mundo e a Olimpíada, infelizmente, não mudaram nada para o Brasil.

Foi um custo alto para o povo e para quem trabalha para promover o pais. Uma tristeza” 

“Dei uma entrevista de que me arrependi. Estava preocupado com a situação do país e falei que brasileiro não sabia votar. Fui criticado, mas depois me deram razão” 

Camisa 10 absoluto do futebol mundial, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, completou 76 anos no fim do ano passado. Os cabelos sem um fio branco (sim, ele pinta, “pra manter a forma”) ajudam a disfarçar a idade, mas as quatro operações por que passou nos últimos dois anos limitaram sua mobilidade e hoje ele precisa do auxílio de uma bengala para caminhar. O raciocínio, no entanto, segue intacto. Na entrevista que concedeu a VEJA, o maior artilheiro da seleção brasileira conta como encara a velhice, fala da ausência de legado da Copa e diz que gostaria de ser lembrado pelo que fez pelas crianças – as mesmas que homenageou quando marcou seu milésimo gol, há quase cinquenta anos.

Aos 54 anos, o senhor disse que estava preparado para morrer. E agora, aos 761 Sou de Três Corações, vai ser difícil parar os três. Falando sério: minha família é católica, e sempre tivemos a orientação dos meus pais de que, quando se está com Deus e com Cristo, não é preciso ter medo de nada. No dia em que eu morrer será porque Cristo chamou.

O senhor passou por quatro cirurgias nos últimos dois anos: uma nos quadris, uma na coluna, uma na próstata e a outra no rim. Como está se sentindo?

Fiquei um pouco abatido psicologicamente porque toda vez que começava a melhorar acontecia algo. Tive uma carreira sem problemas físicos, e só agora, depois que parei, estou enfrentando essas provações. Na primeira cirurgia nos quadris, disseram que eu ficaria no máximo três meses parado. Passaram-se vários meses e não melhorei. Resolvi fazer a revisão nos Estados Unidos, e falaram que em dois meses eu ficaria bem de novo. Quando estava melhorando, torci o joelho. Isso me deixou chateado, me abateu um pouco. Joguei trinta anos e nunca tive problema, afinal.

Tem assistido a partidas de futebol?

Vejo alguns jogos do Santos, alguns da seleção e dos campeonatos inglês e espanhol. Nosso futebol no Brasil dá tristeza. Em alguns campeonatos, falta muita qualidade. Agora, seleção com jogadores que atuam no país é bom, valoriza o jogador.

Que time chama a sua atenção hoje?

Ainda é o Barcelona. Messi é o jogador que mais me impressiona. Faz gol, arma jogadas, arma o time.

Neymar ainda vai ser o número 1 do mundo?

Acho que tem futebol para isso. Ele é melhor tecnicamente que o Cristiano Ronaldo. Mas, na decisão de cabeça, na impulsão, Cristiano Ronaldo impressiona, não dá para comparar. Sair do Brasil foi bom para o Neymar, porque aqui ele não tinha concorrência. Evoluiu muito e, mesmo assim, de vez em quando, fica no banco.

Qual sua avaliação do trabalho de Tite?

Estou feliz com o trabalho dele.

Devemos ajudar o Tite, dar-lhe força. Ele é claro com os jogadores, conversa, é honesto. Infelizmente, o técnico é considerado bom se o time estiver ganhando. Na Europa, há técnicos que ficaram dez, quinze anos no cargo. Mas no futebol sul-americano não funciona assim.

O senhor era um dos cotados para acender a pira olímpica na cerimônia de abertura da Rio 2016, mas no fim nem foi ao evento. Por quê?

Eu estava contundido, me recuperando, por isso não participei da cerimônia.

Qual foi, na sua opinião, o impacto da Olimpíada e da Copa para o Brasil?

Infelizmente, nada mudou. O país não cresceu nada depois da Copa Por causa das barbaridades na política, três ou quatro estádios nem sequer foram completamente terminados. Foi um custo alto para o povo e para quem trabalha . para promover o pais. Uma tristeza.

A decisão de ampliar a Copa do Mundo, dos atuais 32 para 48 times a partir de 2026, foi alvo de criticas. Ela teria ficado inchada demais. Concorda?

Não há alternativa, o mundo cresceu. O tamanho do torneio não importa, o que importa é como ele vai ser dirigido e fiscalizado.

O senhor já conseguiu parar uma guerra (na Guerra do Biafra, na Nigéria, em 1969, combatentes combinaram um “cessar-fogo” para ver um jogo do Santos). Acha que conseguiria um feito semelhante nos dias de hoje?

Não sei, hoje as coisas estão mais difíceis. Mas a minha maior preocupação é com o Brasil, com essas rebeliões em prisões. Infelizmente, há muita falta de confiança nos políticos – nunca tantos foram processados e continuaram na ativa como agora. Fui ministro na gestão Fernando Henrique. Foi um governo que teve problemas, mas agora o Brasil passa por um momento muito difícil e mais preocupante.

A quem ou a que o senhor atribui esse momento ruim no Brasil?

Não dá para culpar uma única pessoa. A culpa geral foi dessa gestão do PT nesses quase quinze anos. O PT deixou o país nessa situação. Quando Lula ganhou no primeiro mandato, ele me chamou em Brasília. De início, reclamou que eu o fiz sofrer muito ao vencer tantas vezes o Corinthians. Depois, a sério, disse que precisávamos fazer um trabalho juntos. Não fiquei no governo naquela época porque ele falou que acabaria com o projeto das vilas olímpicas, que tirava as crianças da rua. A Mangueira, por exemplo, era uma favela com muita criminalidade, e, com o futebol infantil, os altos índices de criminalidade caíramo o Lula disse que naquele momento não poderia continuar com o programa das vilas porque ia fazer o Bolsa Família e não teria verba para as favelas. Então, eu disse que estava fora. Estou muito triste, mas realmente, dos quase quinze anos do PT, temos certeza apenas de que ficaram todos esses desmandos, essa confusão.

Também no futebol a corrupção corre solta. O ex-presidente da CBF José Maria Marin foi preso. Joseph Blatter foi afastado da Fifa por corrupção e Marco Polo dei Nero está sob ameaça de parar atrás das grades.

Fiquei muito surpreso com tudo isso. São pessoas que eu nunca imaginaria que estivessem envolvidas em tanta corrupção. Alguns são até amigos, pessoas com quem sempre estive junto. É triste ver um amigo seu, em quem você confiava, ser acusado. Mas o bom é que tem de haver uma limpeza em tudo isso.

Quase quarenta anos depois de ter parado de jogar futebol, ainda é abordado nas ruas por fãs?

Em qualquer lugar do mundo, mas não me preocupo com o assédio. Em alguns lugares, como em Nova York, por exemplo, eu consigo fazer compras, ir ao cinema, porque sei aonde dá para ir. De vez em quando uso alguns artifícios para escapar do assédio, como um bigode, ou um boné para disfarçar o topete.

O senhor, aliás, continua sem nenhum cabelo branco.

Sim, não tenho nenhum porque eu os inibo. Uma tintazinha é legal, para manter a forma.

É verdade que nunca deixam o senhor pagar a conta de um restaurante?

Já paguei muitas, até mais do que deveria. Mas é verdade. Na maioria das vezes, quando peço a conta, já está paga. De vez em quando, são clientes que pagam e nem falam nada, vão embora. Em Nova York é incrível, a conta está sempre paga. Na Europa também – pena que nunca sei quando vão pagar, senão podia pedir caviar. No Japão, às vezes chego com uma bagagem de mão e volto com várias malas, de tantos presentes que ganho.

O senhor fez leilão de suas peças, como a única réplica que existe no mundo da taça Jules Rimet. Por quê?

Quando fechamos o acordo com o grupo que detém os direitos globais do meu nome e da minha marca, o Legends 10, eles pediram para fazer um leilão com peças internacionais para destinar parte da arrecadação a casas de caridade. Foi apenas isso, não foi por dinheiro.

Qual o pior momento por que passou na vida?

Deus foi tão bom comigo que é difícil dizer. Mas uma das coisas que mais me machucaram foi a morte do meu pai (Dondinho morreu em 1996). Ele era a base da nossa família, e fiquei abalado – e estou abalado até hoje. Muitas vezes, choro de alegria porque sinto orgulho dele, de tudo o que ensinou a mim, à família.

E qual foi o seu momento de maior alegria?

Todos da minha vida, foram muitos títulos, vitórias, tenho muito orgulho. Mas uma das maiores alegrias que tive foi o nascimento dos meus filhos. A primeira, Kelly, e depois o Edinho. São momentos inesquecíveis.

Do que o senhor tem medo?

Tenho medo de ficar doente. Mas medo específico de algo não tenho. Quando era garoto tive medo de água, porque certa vez quase morri afogado, em Bauru. Mas isso passou, até vim morar em Santos, de frente para o mar.

Como gostaria de ser lembrado?

Minha preocupação sempre foi com a educação das crianças. Queria que meu legado seguisse nesse caminho. Queria ser lembrado pela educação e pela preocupação com o futuro dos jovens no Brasil e no mundo.

E do que se arrepende?

Dei uma entrevista de que me arrependi muito. Eu estava preocupado com a situação do país e falei que o brasileiro não sabia votar, que não sabia escolher direito nossos representantes. A imprensa me jogou contra o mundo. Mas, depois de duas eleições, os mesmos jornais que me criticaram me deram razão.

 *Jornalista. Editor da Revista Veja, em parceria com Silvio Nascimento. Artigo na Edição nº 2516 de 08/02/2017.

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