Continuação…
Uma canção de amor à cidade e à família1
Há escritores que, a pretexto de falarem de sua terra, passam a exaltar as qualidades da sua própria vida e da vida de sua família. Outros há que ao tratarem da sua biografia cuidam é de contar a história de sua terra e de sua gente. É o caso do autor deste livro, o nobre confrade da Academia Amazonense de Letras Francisco Gomes da Silva. E não se poderia esperar outra atitude senão essa de quem se converteu no primeiro e mais autorizado historiador de Itacoatiara, sua cidade natal, desde os albores da juventude. Por isso o livro é um hino de amor filial e de amor cidadão, amor ao velho pai Pedro Gomes, à mãe Maria de Oliva Arruda, aos irmãos, cunhados, sobrinhos e netos, e ao povo da Velha Serpa, a paisagem e o ambiente urbano da cidade que lhe serviu de berço e o viu crescer, e que hoje o reverencia como um dos seus filhos mais ilustres.
Estuda as origens cearenses do seu pai. Vai fundo porque é fato notório a contribuição do nordestino na formação social das populações amazônicas, principalmente da Amazônia interior, também conhecida por Amazônia Ocidental, na transição dos últimos anos do século XIX às primeiras décadas do século XX. Eles se estabeleceram nas cidades e nos seringais. Eram oriundos de vários Estados do Nordeste, mas, talvez por constituírem a maioria ou pela simples ingerência da lei do menor esforço, ficaram conhecidos pela generalização de cearenses. Todos aqueles homens e mulheres de fala cantada e mansa eram considerados cearenses. Eles que se meteram pelas florestas dos altos rios, – dos maiores como o Purus e o Juruá, e dos menores que, por fim, caracterizam o tecido fluvial da Bacia Amazônica, fronteira do Amazonas com o Acre, – para tocar os seringais na implantação de colocações e na abertura de estradas seringueiras, para a exploração e extração da borracha. Nessa ação foram alargando as fronteiras do Brasil tal como novos bandeirantes, coroando esse acontecimento com os eventos históricos que culminaram na conquista e na integração das terras acreanas ao território nacional, fato relatado em síntese no livro e de cujos atos participaram os ancestrais do velho Pedro.
E para comprovar essa verdade, Chico Gomes, como é tratado carinhosamente entre os amigos o autor do livro, empreendeu viagem a Rio Branco, Sena Madureira, Tarauacá e Cruzeiro do Sul, tudo no Acre, consultando bibliotecas, livros de tombo das sacristias e assentamentos de registro civil dos cartórios, visitando museus e cemitérios, entrevistando antigos moradores, material com que desfia autêntico exercício genealógico até chegar na identidade do seu pai. Mas Pedro Gomes em verdade ainda compartilhou dessa jornada de conquistas desde menino, a manobrar canoas e a pescar nos igapós e lagos, cortando as árvores da hévea para lhes extrair o leite precioso, tudo realizado na parcela que lhe coube, com a força dos seus braços e o seu reconhecido entusiasmo pela vida, como um autêntico trabalhador da floresta, tendo assistido o ocaso da economia da borracha.
A decadência dos seringais forçou-o a descer os rios e aportar em Itacoatiara. Aí viveu a maior parte das alegrias da juventude e conheceu a mulher com quem viria a casar-se e dar à vida a 12 filhos. Contava Pedro Gomes com 25 anos e Olívia Maria entrava nas vésperas dos 18. Somado à devoção com que se há ao falar do relacionamento entre os seus pais, a luta pela vida nos trabalhos do rio e da floresta para manter a família cada vez mais numerosa, a dedicação da mãe nos trabalhos de casa, tocado pela afeição com que aprecia os passos de crescimento de sua cidade natal, o autor se ocupa em falar da expansão da cidade, o crescimento do comércio e dos melhoramentos dos serviços urbanos habitualmente precários como o fornecimento de energia elétrica e de distribuição de água.
Fala da existência e da conquista pessoal de um por um dos seus irmãos e irmãs e da forma como galgaram um lugar ao sol numa sociedade estratificada e preconceituosa com relação ao trabalho. Num mundo assim desenhado, observa-se que as elites acomodadas vão perdendo o seu lugar, e, as ditas classes inferiores, constituídas pelo povo de trabalhadores, operários, pescadores e mateiros, vão assumindo os movimentos da história e mudando o rumo dos acontecimentos. Mas tudo feito com muito esforço e trabalho. A casa modesta da Avenida 15, n.º 585, do velho Pedro Gomes, construída por etapas, de acordo com as necessidades da família ampliada, num terreno medindo 7 metros de frente por 26 de fundos, 182 metros quadrados, portanto, em Itacoatiara, transformou-se em polo de atração daquela grande família unida e projetada a ponto de um dia receber o próprio Governador do Estado, então o grande amazonólogo Arthur Cézar Ferreira Reis. Além da lista que ocupa mais de duas páginas. corridas do livro, com nomes de amigos situados em todas as categorias profissionais da cidade, de políticos a profissionais liberais, que frequentavam aquela casa. A alegria das festas e serenatas, das reuniões para comer, dos bailes, pois o velho Pedro gostava de dançar, por vezes cobria-se de tristeza como quando da partida dos filhos quando se casavam ou saiam de casa para estudar fora, como sucedeu ao autor que teve de sair para formar-se em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, em Manaus.
As páginas doloridas estão onde o autor fala dos últimos momentos de Pedro Gomes e Olívia Maria. Ela partiu na frente. Em verdade são mais sofridos os desenlaces em famílias verdadeiramente unidas como é a família constituída por esse casal de nobres itacoatiarenses, muita bem desenhada de corpo inteiro, pelo escritor de vocação que é Francisco Gomes da Silva. Nas páginas que se vão ler, ele não se contentou em realizar uma dissertação de natureza doméstica, de modorrenta e rasa louvação caseira, não obstante trazer no subtítulo Um memorial de família, mas enfim construir uma obra que vai enriquecer, sem a menor dúvida, o acervo de estudos sobre a formação social dos amazônidas.
Manaus, Chácara Lili, 8 de abril de 2006.
1 Prefácio ao livro Pedro Gomes meu pai, um memorial de família de Francisco Gomes da Silva.
Continua na próxima edição…
*Poeta e ensaísta. Membro da União Brasileira de Escritores do Amazonas da Academia Amazonense de Letras do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
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