Manaus, 14 de julho de 2025

Os frutos da esperança

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Continuação…

A arte de Moacir Andrade

Todos estão cansados de saber que o Movimento Madrugada resultou da inquietação de jovens intelectuais que ensaiavam um novo olhar sobre a criação estética, poetas, ficcionistas, ensaístas, músicos e artistas plásticos, entre os que também agitaram o ambiente dos estudos sociais e da vida política na Amazônia. Todos sabem também que Moacir Andrade foi um desses jovens antigos, artífice de um labor incansável, pintor com uma vasta obra distribuída em vários lugares, galerias e coleções particulares de apreciadores da Arte. Poucos sabem, no entanto, que Moacir jamais se acomodou às formas conquistadas nas primeiras concepções de sua pintura, mas, ao contrário, sempre esteve atrás de novas descobertas, novas formas, em busca de elementos não usuais nos meios acadêmicos. Experimentou por vezes materiais heterodoxos na realização dos seus quadros, na conquista permanente de algo que em verdade revelasse o produto da agitação do seu espírito.

Impressionam os seus vastos painéis e as suas grandiosas telas, mas é nas miniaturas, na composição de uma canoa de japá e um remador na proa manobrando o remo numa hora de rio tranquilo, que a sua pintura se realiza, tocando-nos mais intensamente a sensibilidade.

Nos tempos heroicos da conquista da nova linguagem, preconizada pelos madrugadores do Café do Pina e da Praça do Colégio Estadual, o pintor dos papagaios de papel e dos galos de briga, da floresta e dos rios amazônicos, da vida do povo e das crianças, principalmente das crianças dos bairros de Manaus, foi Moacir Andrade o artista mais solicitado a realizar capas e ilustrar livros dos escritores e poetas do grupo, no seu modo de ser descontraído e cordial.

Movido pelo dom da arte e do seu magnetismo pessoal, o pintor de Aparecida, antigo Bairro dos Tocos na capital amazonense, não se acomodou também com a vida modorrenta da província, a cidade de Manaus tranquila dos anos cinquenta e sessenta, e saiu virando mundo por Europa, França e Bahia, a levar a mensagem do amazônida legítimo e fazendo amigos. Houve épocas em que passou largas temporadas por aí, ligado a universidades e galerias de arte, onde usufruiu do convívio de intelectuais e artistas e do povo, este a fonte mais genuína de suas visões criadoras. Mas nunca se esqueceu da terra que lhe serviu de berço e onde fixou residência e plantou família, ao lado da mulher, dos filhos e, hoje igualmente, dos netos. Foi um dos mais expressivos coadjuvantes do espetáculo de transformação da linguagem da cor no seio da sociedade amazonense. Não satisfeito em aprender, dedicou-se à tarefa de ensinar em vários cursos abertos ao público infantojuvenil e de onde surgiram os artistas plásticos posteriores ao Movimento.

Quatro foram os mais representativos cultores da Arte no Clube da Madrugada: Oscar Ramos, o primeiro e o mais jovem, precoce em sua vocação, coerente no rigor com que realiza a geometrização das formas desde o início da construção de sua obra; Afrânio Castro, boêmio e rebelde, vida pessoal tumultuada e arrebatada tão cedo do convívio dos seus contemporâneos, sem ter tido tempo de realizar aquilo que todos esperavam do seu grande talento; Álvaro Páscoa, um verdadeiro clássico da Arte Moderna, importante na gravura, no desenho, na escultura e na pintura, incorporado já maduro ao Movimento, originário das esplanadas portuenses ante o mar de Espinho, Portugal, mas ao chegar ao Brasil tocado pelos ares do Grande Rio, na magia da sua paisagem e da sua gente, trabalhando a sua obra como um autêntico amazônida; e Moacir Andrade, o autor deste livro, repositório de informações interessantes sobre a vida no Grande Vale, mas em primeiro plano a explosão dos desenhos em preto e branco, esse que é um instrumento de transmissão de conhecimentos desde os primórdios da história do homem.

Abramos, portanto, o livro e apreciemos Histórias, Costumes e Tragédias dos Barcos do Amazonas – Desenhos, o que em verdade vamos ver, desenhos. Sem embargo do texto profuso, com informações biográficas do autor e a descrição dos temas abordados no volume, são nos desenhos que a atenção se vai concentrar, a síntese propiciada pelas imagens, numa leitura mais sugestiva que a leitura das palavras, e, por isso, mais comunicativa com o espírito do leitor. Surgem logo às primeiras páginas, o Teatro Amazonas em contraste com uma carroça atrelada a um cavalo, uma canoa cheia de laranjas, a catraia de um garapeiro flutuando na entrada dos igarapés de Manaus, canoas e casas penduradas nas ribanceiras dos bairros da cidade daqueles tempos, as igarités embandeiradas para as festas na beira do rio, e aí se abrem páginas inteiras ocupadas com os desenhos expostos em vivo movimento, de figuras que registram as relações do homem com o rio, a floresta e a cidade.

No meio de Manaus são os aspectos da arquitetura, dos transportes urbanos, o velho bonde elétrico, o capeamento em paralelepípedo das ruas da cidade antiga, os coretos das praças, os chafarizes, os palacetes residenciais hereditários dos tempos áureos da borracha, os prédios públicos e as casas plantadas às margens dos igarapés, na desorganização decorrente da própria forma de como aqueles habitantes da cidade foram se localizando e construindo as suas moradias.

Dos elementos da cidade extinta vão-se encontrar os catraieiros que com os seus barcos transportavam as pessoas do centro para os bairros dos Educandos ou de São Raimundo, as lavadeiras dos igarapés, os garapeiros fluviais, os bondes, as carroças de tração animal, e a cidade flutuante que se estendia entre a praia do mercado Adolfo Lisboa e o igarapé dos Educandos. Tudo isso que pulsa dos desenhos deste livro, oferecendo ao leitor a oportunidade de fazer um passeio por esse burgo agora retido apenas em nossa memória.

Na cidade flutuante existia de tudo. Casas de comida e lojas de quinquilharias, salões de beleza e barbearias, serviços de som e quiosques de merenda distribuídos em avenidas, ruas e becos repousados sobre toras de madeira de bubuia sobre o Rio Negro, com instalações sanitárias e lançadoras de dejetos indicativas de risco à saúde dos seus moradores. Moacir mostra uma loja de variedades que ele chama de supermercado, mostra uma casa de diversão noturna, tasca ou motel, e só não mostra nem escola nem igreja, porque naquele espaço de vivência tão aflita e de tanta contradição humana, existia de tudo, menos escolas ou igrejas…

Aquele pedaço de Manaus um dia se acabou. Deu-se fim ao exotismo daquele bairro que já se tornara atração turística e cenário de cinema, locação de filmes realizados sobre a região. A cidade flutuante foi desmontada. As casas foram derrubadas do dia para a noite. Os moradores tirados de lá numa ação de governo boa ou má, não cabe aqui julgar, nos primeiros atos da ordem implantada após 1964. O povo da cidade flutuante subiu a terra firme e formou o bairro de São Francisco e deu início às invasões da Compensa. O que restou está nos traços do pintor apanhados neste livro.

Depois vêm os navios a vapor, os gaiolas e transatlânticos. Os barcos de reboques e os recreios, as alvarengas de carga e descarga, as ubás, os barcos de pescadores de rede, as jangadas do río Solimões transportando famílias inteiras, a bela procissão de São Pedro que acontece todos os anos em frente à cidade, festeiros e foliões do interior, enfim a vida do povo, do povão e suas alegrias.

Continua na próxima edição…

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