Continuação…
A poesia de Cyrino
A poesia e a prosa produzidas na terra constituem o testemunho dos homens e mulheres sobre ela. Sobre a vida e os seus fenômenos, sobre o medo e a coragem de viver, uma vez que o homem se desenvolveu, através da história, criando um sistema de interpretação dos dados subjetivos, experimentados em contato com os elementos da natureza, aí adquirindo a consciência do divino e concebendo os princípios de autoridade para lidar com o medo. O medo que, no dizer do filósofo evolucionista Herbert Spenser, fez surgir dois elementos fundamentais na sociedade organizada: o medo dos vivos que gerou o controle político, e o medo dos mortos que gerou o controle religioso. Mas criou, também, instrumentos de convivência e aparelhou a sensibilidade e a inteligência para interpretar os conflitos gerados entre as pessoas, resultantes da emoção, dos sentimentos de fraternidade, de solidariedade e de amor. Não gostaria de me referir aqui aos sentimentos inferiores, porque estes jamais concentraram, nas tramas de suas injunções, qualidades capazes de converter em elevação espiritual o terra-a-terra da condição humana. E a poesia é produto do verbo que nasceu no princípio, segundo o Evangelho de São João. O princípio que é Deus, o Deus que amor, também no dizer do apóstolo amado de Cristo.
Para não ser cansativo reservo-me o direito de não citar exemplos confirmativos dos conceitos que esposo na apresentação deste livro de poemas. Espero que o faça o amigo leitor, se assim lhe aprouver. Mas gostaria de deixar uma sugestão aos interessados no assunto, lembrando, nos extremos conceituais da existência, o comportamento de dois dos mais altos espíritos produzidos no segundo milênio da história do mundo, profundamente marcado pelo Cristianismo e gerados pela religião e pela política: Dante, com a epopeia tridimensional do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, A Divina Comédia, com que critica a vida social e política da Idade Média; e Karl Marx, com o conjunto de ensaios reunidos em O Capital, com que critica o capitalismo da Idade Moderna. O poeta e o filósofo, a despeito da distância que os situa no tempo, por caminhos diversos, perseguiram o mesmo ideal de igualdade e de fraternidade entre os homens. Dante ateve-se aos princípios da religião para interpretar o seu tempo, sem eximir-se do controle político, através da poesia, quando concebe o amor como a força que move o sol e as outras estrelas e, Marx que, ao criticar o controle político do mundo através da filosofia, pôs a questão do dinheiro no seu devido lugar, como talvez tenham pensado os santos da Igreja, na linha de São Francisco, numa nova concepção de riqueza nas relações entre os homens.
Diz o pobrezinho de Assis:
Porque não devemos dar mais uso e estima ao dinheiro do que às pedras. E o diabo tenta cegar os que o desejam ou o valorizam mais que as pedras. Vamos, portanto, ter cuidado, com o receio de que, depois de termos deixado todas as coisas, possamos perder o reino dos céus por essas ninharias.1
Diz Marx:
Toda gente sabe, mesmo quando não se sabe mais nada, que as mercadorias possuem uma particular forma-valor (comum), que contrasta da maneira mais flagrante com as suas múltiplas formas naturais – é a forma-dinheiro. Importa agora fazer o que a economia burguesa nunca tentou: fornecer a gênese da forma dinheiro, ou seja, seguir o desenvolvimento da expressão do valor contido na relação de valor das mercadorias, desde o seu esboço mais simples e menos aparente até essa forma-dinheiro que salta aos olhos de toda a gente. Com isso se resolve e se faz desaparecer ao mesmo tempo o enigma do dinheiro.2
O leitor há de indagar, intrigado: Mas o que tem a ver a poesia do Professor José Dantas Cyrino Júnior, com essas questões. Tem tudo a ver se considerarmos a formação acadêmica e a inquietação intelectual do poeta. Graduado em Filosofia e Direito, e pós-graduado em Educação, sua vida se alimenta de intensa atividade política e de tarefas ligadas à promoção humana. Sua poesia, lançada por meio de uma forma predominantemente livre, com ousadia verbal, sensualidade explícita, liberdade vivencial, a vida na Amazônia, linguagem coloquial, traços da cultura clássica e a apreciação da vivência cabocla, insolente algumas vezes e libertina em outras, mostra sempre a face do professor, da escola, da vida, a política e a religião, numa poesia por vezes didática, em contraste entre poemas longos e curtos, poemas escritos certas vezes com um só verso, ou na linha do haicai. E, pairando sobre tudo, um implacável senso de humor. O poeta ri, faz troça, desmonta o siso das situações hipocritamente formais da sociedade em que vive. Aí está, sem dúvida, a unidade do livro que é organizado de modo inteiriço, deixando ao leitor a maravilha das surpresas e das descobertas, sem subtítulos porque o tema é um só, o poeta e o seu olhar em torno. Em textos escritos no ritmo das velhas redondilhas e decassílabos, às vezes em prosa poética, predominando as redondilhas, a arte menor e a arte maior lavradas sem rigor formal, a revelar que o poeta está mais interessado em captar o momento da emoção, e registrar um evento simples, mas significativo à compreensão dos acontecimentos. Faz piada e glosa os poetas seus amigos do Amazonas, ou Fernando Pessoa, Florbela Espanca, ou Drummond, Mário Quintana ou Vinicius. Veem-se, finalmente, nos poemas deste livro, filosofia política e religião, a crítica do nosso tempo como o fizeram com o seu, Marx e Dante, e, coroando-lhe os movimentos percebem-se planar as asas de todas as formas de amor, fazendo barulho e por isso intitulado Ruídos de versos.
Leiam o livro e vão ver que não exagero.
Manaus, Praia da Ponta Negra, 23 de março de 2010.
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1 Da 8.a Parte das Regras de São Francisco de Assis – Que os irmãos não recebam dinheiro.
2 O Capital, volume 1, capítulo I, Mercadoria, em tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira
Continua na próxima edição…
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