Manaus, 26 de outubro de 2025

Os frutos da esperança

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Continuação…

Francisco Vasconcelos na Academia

Esta casa, como define o próprio nome, é a casa dos homens de letras. Em menino eu achava engraçado chamarem o escritor de homem de letras. Para mim, o homem de letras era uma pessoa toda construída de letras, como aparecia numa ilustração de Emília no país da gramática, um livro de Monteiro Lobato que ensinava a gente a aprender Português brincando. As figuras, então, eram compostas de letras de acordo com o significado de cada uma. Só mais tarde é que descobri que o homem de letras é aquela pessoa dedicada à literatura, à produção literária, expressão que também se aplica a uma pessoa ilustrada, versada em várias matérias, alguém a quem se pode chamar de uma pessoa culta. Culta no sentido de igualmente cultivar as letras e se dedicar à sua promoção em todos os níveis, na imprensa, nos meios eletrônicos, no livro, enfim. Homem de letras é, por fim, o codinome que vem a calhar com justeza, aplicado à sua personalidade, amigo Francisco Vasconcelos. Perdoe-me se assim me arrisco a incorrer no erro de ferir a sua sensibilidade de homem íntegro. Mas aqui estou a fazer um elogio. Sei que entre os ingredientes formadores da natureza humana, há dois elementos essenciais de procedimentos conhecidos por vícios e virtudes. Neste momento se cuida não dos vícios, mas das virtudes que ornam o seu comportamento, nobre amigo Vasconcelos.

Certa feita alguém me revelou que é muito mais fácil falar-se mal do que bem de uma pessoa. Se numa roda o assunto é falar bem, a conversa não vai muito longe. O falar bem não chega a encher meía página de um livro minúsculo, mas o falar mal logo vira manchete e passa a ocupar colunas e mais colunas de todos os jornais. Isso porque as pessoas em exame nessas rodas imaginárias, nem sempre dispõem de qualidades que possam fornecer material para uma conversa em bons níveis. Não é o caso do ilustre amigo. Nesta sala conjeturo que são unânimes em concordar comigo, neste ponto: Francisco Vasconcelos é um homem de letras e um homem de bem. Concentra em suas atividades públicas as condições de comportamento que o velho Maquiavel batizava de virtù, palavra que o pensador brasileiro contemporâneo Renato Mezan, considera mais preciso traduzir como competência.

Sua vida pública se iniciou muito cedo, desde o curso ginasial, sempre com muita competência. A juventude foi-lhe pródiga ao impor-lhe desafios. Dirigiu a União Estadual de Estudantes do Amazonas e o Clube da Madrugada. Foi um dos fundadores da secção do Amazonas da União Brasileira de Escritores e teve uma ascendente posição nos quadros administrativos e técnicos do Banco do Brasil, aonde chegou por meio de concurso público. Ao aposentar-se do Banco, ocupou cargos de relevância no serviço público federal, tendo exercido as Chefias de Gabinete da Secretaria Nacional dos Direitos da Cidadania e Justiça e da Corregedoria-Geral da Advocacia-Geral da União. Em toda essa atividade jamais se desvinculou de um compromisso com a terra e a cultura, tanto assim que, radicado em Brasília, raramente tem vindo a Manaus sem estender a viagem até a sua cidade natal de Coari. Nas obrigações de autoridade bancária sempre defendeu uma política de desenvolvimento regional, na valorização do homem amazônico e sua economia. Como animador cultural buscou incentivo ao apoio de múltiplas atividades intelectuais, na literatura, nas artes plásticas, no cinema, na música popular, pois na presidência do Clube da Madrugada promoveu festivais do violão em praça pública aqui em Manaus, entre tantas atividades voltadas para a divulgação das artes e das letras, tendo para isso criado um jornal, intitulado Nossos dias, e um programa de rádio, chamado Dimensões. Na direção da União dos Estudantes editou livros e jamais se acomodou nesta ou naquela posição. Sempre esteve disponível às tarefas a que fora solicitado. Nunca se recusou a oferecer a mão generosa a quem o procurasse. Gosta de viver entre os pequenos, tendo, por sinal, como exemplo de vida a figura universal de São Francisco, o pobrezinho de Assis.

Toda a sua obra possui um traço desse humanismo, desde a sua primeira coletânea de contos, o livro de estreia lançado em 1963, aos 30 anos de idade, O palhaço e a rosa. Em seguida, prossegue na revelação dos mesmos propósitos, agora não mais na ambientação urbana da cidade de Manaus, mas no universo maravilhoso da floresta e dos rios com a novela amazônica O regime das águas, lançada em 1985. Depois entra no mundo da memória com o livro Casa ameaçada, de 1992. Em 1993, prossegue em falar de sua vida, infância e juventude, em Coari – um retorno às origens. Dedica-se à crônica em Meus barcos de papel de 1999, e O menino e o velho de 2008. Em todos esses trabalhos explode o espírito de solidariedade entre os homens e a compaixão pelos desvalidos, um intenso sentido de amor pela criança, a criança colocada nos limites de sua faixa de idade, ou a criança que reside no coração de todos nós e que nos acompanha pela vida afora. Toda a sua obra encerra o sentimento de piedade com os pequenos ou das ações que os beneficiem como esta em Casa ameaçada, narrativa alimentada por sua experiência de mais de 30 anos de Banco do Brasil.

Mas não te satisfizeste em só realizar a excelente prosa dos teus livros de ficção e de memórias, no estilo corrente, de agradável leitura e linguagem elegante. Também mergulhaste nas águas luminosas da poesia, no esforço de revelar os teus ideais de vida e de realização do amor e da ternura humana.

Conheçamos um pouco da sua poesia.

Um dia escreveste um soneto para celebrar o teu encontro com a mulher amada. E o fizeste assim:

TUAS MÃOS

Existe entre nós dois um amor que inspira
os nossos corações enamorados.
Sou feliz ao te ver assim tão bela
E mais feliz, se viver posso ao teu lado.

E se te tenho assim, meiga e mimosa,
nos meus braços sonhando em devaneios,
sinto pulsar meu peito, ardente em febre,
na febre divinal dos meus anseios…

E como sou feliz! E sonho e vejo
um futuro distante, mas que perto
acena-nos sorrindo em cada beijo.

Oh! sonho feito em ouro, filho d’alma
quando em minhas mãos beijo e aperto
as tuas pequeninas brancas palmas!

Minhas Senhoras e meus Senhores,
Senhoras e Senhores Acadêmicos,

A poesia constitui o primeiro formato de linguagem do homem. Os textos mais antigos são escritos em forma poética. Essa é a linguagem da Bíblia. Há a hipótese de que o primeiro homem, ao defrontar-se com as coisas que o cercavam, as florestas, os rios, o mar e outros seres que habitavam aquele mundo, conferiu nome a tudo o que viu e assim revelou o seu sentimento sobre os fenômenos do universo. Mas, havia elementos cuja origem ele não sabia definir nem explicar, como as tempestades, as faíscas elétricas e as grandes ondas dos oceanos. Foi, então, que cogitou de um ser supremo que comandasse os movimentos da vida. Ao especular, ainda, sobre o seu próprio comportamento em relação a essas forças superiores, percebeu que também tivera a sua criação procedente na natureza do divino. E passou a se comunicar com o divino através da poesia que era oração. Bem mais tarde, milênios e milênios após, com o advento do cristianismo no Ocidente, deu-se a divisão dessas águas. A poesia definiu-se como instrumento de solidariedade entre os homens, e a oração como traço de união do homem com Deus. Mas há momentos, ainda hoje, que a poesia se manifesta como expressão do divino e se faz poesia religiosa, ou se manifesta em forma de oração tal qual aconteceu em sua origem.

Essas duas tendências da poesia vamos encontrar em Francisco Vasconcelos.

Observemos, no seguinte poema de sua autoria, o sentido de solidariedade humana:

DESCRUZA OS BRAÇOS

Descruza
– enquanto é tempo –
teus recolhidos braços.
Sim, descruza-os.
Libera tuas mãos do preguiçoso aconchego
para que, livres,
possam ensejar-te a vez de também seres útil,
na necessária semeadura do amanhã.
Descruza, sim, teus braços preguiçosos
e de uma vez por todas,
rompe os grilhões da inútil e inconsequente postura.

Pensa em quantos esperam por ti.
Em quantos esperam que lhes estendas a mão amiga,
essa mesma mão que escondes,
que ocultas.
Quantos serão os que dela dependem?
Quantos serão os que esperam de ti?

Descruza, pois, os braços!
Até mesmo para que,
tendo livres as mãos
possam elas também receber o quinhão que lhes cabe
na justa partilha do amor há muito prometido.

Em seguida vai um acróstico escrito com o nome de São Francisco. É mais uma oração que um poema, sem dúvida para comprovar que nas origens, poesia e oração nasceram juntas:

ACRÓSTICO, EM TOM DE PRECE,
AO POVORELLO DE ASSIS

Santo do amor, possamos nós, um dia,
Ainda neste mundo – inglório, às vezes –,
Onde quer que estejamos, imitar-te.
Fazer um grão do muito que fizeste.
Romper barreiras e praticando o bem,
Armar de amor o mundo, prepará-lo,
No exemplo de bondade que nos deste.
Construir com amor e, diariamente,
Ir ao encontro de Jesus, o Mestre,
Sendo com Ele ou n’Ele a cada instante.
Cobra-nos, Pai, esse querer constante,
Ou inspira-nos viver sem ser ausentes.

Amigo Francisco Vasconcelos:
Por tuas qualidades pessoais e de homem de letras, embora tardia- mente nesta Casa, podes considerar-te um dos nossos, pelo espírito e pelo coração.
Muito obrigado.

Continua na próxima edição…

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