Continuação…
Uma viagem ao mundo da infância
Thiago de Mello estava com 27 anos de idade e morava no Rio de Janeiro para onde se transferira ainda adolescente a fim de estudar medicina. Depois, desistiu do curso e se dedicou só à literatura que era a sua vocação maior. Converteu-se em jornalista
bem-sucedido e já estava com quatro livros de poemas na praça, bem-recebidos pela crítica e os leitores. Decidiu então fazer uma viagem de volta ao mundo da infância, que resultou no seu primeiro livro em prosa. Pegou um avião e desceu em Manaus. Não era ainda aí o destino de sua viagem. Desejava dar um mergulho no rio da vida e boiar dentro da paisagem onde brilhava o berço de seu nascimento, a cidade de Barreirinha que ele chama de Velha Barreira, pendurada ali numa várzea alta às margens do caudaloso Paraná do Ramos. Mas, enfim, não era ainda esse o porto de sua viagem. Ele queria era entrar no mundo de sua infância que é formado de floresta, rios, paranás, igarapés, lagos e igapós. Seria, portanto, uma viagem monótona se o poeta não lhe tivesse dado o rumo em que a transformou nos caminhos do coração e do espírito. No prodígio da emoção que demuda tudo e revela, ainda que mostrado em planos tediosos, as imagens exteriores da paisagem amazônica, repetida nos perfis e no conteúdo humano retratado no texto, transformada em linguagem, da arte, da poesia, da literatura.
O poeta caboclo não confiou só nos seus conhecimentos para fazer a viagem. Montou uma expedição composta de caboclos retês1, um deles amigo de longa data, desde os tempos de menino, chamado Jari Botelho. O meio de transporte foi um barco tradicional chamado motor, que os meninos da beira do rio chamam de tô-tô-tô e ao passar deixam uma leve esteira de fumaça no ar, com cheiro de gasolina, como um convite sugestivo de viagem. Desamarraram o barco do porto e tomaram o primeiro contato com o Río Negro de Manaus. Emocionado, o poeta vai logo imaginando sobre as caboclas donzelas moradoras lá no fundo dos peraus, talvez configuradas na Iara, uma lenda originária desse misterioso río de águas negras. Logo ali em frente o poeta é despertado por um fato real quando alerta um dos seus companheiros de viagem, um rapazinho, que se prepara para dar um mergulho n’água e não percebe que ali por perto vem um jacaré dos grandes, medindo meio metro só de cabeça. O poeta impede que o menino se lance n’água com um empurrão que o faz estatelar-se no convés da embarcação. Depois, comentando o fato com o caboclinho, o poeta revela que foi Deus que o salvou.
Ao se afastar de Manaus, o barco vai exibindo os últimos cenários da cidade, as palafitas do bairro dos Educandos com as marcas das águas da última enchente. Passam pela escola do Paredão, onde vivem internados os filhos dos hansenianos, passam por Marapatá, a ilha encantada do Macunaíma. Mas é no encontro das águas do Rio Negro e o Solimões, onde o grande rio recebe o nome de Amazonas, que o barco fica por alguns instantes. O poeta lembra-se então das aulas de D. Clotilde Pinheiro, sua velha mestra do curso elementar, que ilustrava a matéria da aula declamando um poema sobre esse fenômeno geográfico transformado pelo milagre da poesia. Mas ele sempre foi intrigado com a razão das cores diferentes daquelas águas. O que mais impressiona é a mudança nos movimentos da paisagem do Rio Negro e do Rio Solimões. Um é sereno e tranquilo a exibir leve caminho de correnteza movimentando as águas no meio do rio; o outro é revolto e agitado por vigorosas correntezas, rico de vida animal, botos boiando e aves aquáticas pousando nas touceiras de canarana indo de bubuia. O Rio Negro é silencioso, o Solimões é roncador. Percebe-se tudo isso sem maior esforço. É só ficar atento como está o comandante do barco do poeta, que logo se desvia de um tronco de árvore dos muitos que descem o rio nessa época do ano. É outubro e a seca já começou. A correnteza fica mais forte e traz em seus rebojos as árvores derrubadas pela enchente que está se acabando. No alto da terra-firme avistam a imagem branca de uma igrejinha solitária. Para ir até lá o cristão precisa subir por uma escada íngreme, construída de pau a pique, numa altura de até 40 metros na vazante e rezar lá em cima, naquele pequeno templo com aparência de ermida abandonada. Ao apreciar o fato, o poeta avalia sobre o poder da fé impulsiva dos homens e mulheres da beira do rio.
A noite chega e já estão no lago do Aleixo. É um momento bom para conversar. Aproveitam para falar no boto encantado. Contam as histórias das formigas taxi, verdadeiras protetoras das árvores onde vivem e podem até matar num ataque inesperado, causando edema de glote. Falam da madeira de lei e de sua exploração por aquelas bandas. Falam do capim gordura ideal para alimentar o gado. Falam de um montão de encantos da floresta. Relatam sobre a história fantástica da origem do nome do Paraná da Eva. Dizem que ali nasceu uma bela cabocla que seduzia todos os homens. Mas não via nenhuma graça nesses homens. Por isso era triste. De que adiantava ser bela? Cheia de desgosto um dia ela se lançou no rio e nunca mais voltou. Até hoje ela mora no fundo do rio. Nenhum peixe tem coragem de devorar aquela mulher tão bela chamada Eva.
Amanhece e eles vão ver um igapó. Nada na vida há mais misterioso e belo que um igapó. Peço permissão ao poeta para citar aqui o seu irmão de pátria d’água Américo Antony, que definiu o igapó num único verso: líquidos olhos de pajés bolando. Após algum tempo de extrema surpresa saem do igapó e entram no río. Ouvem o barulho da piracema. São os cardumes de peixes movimentando-se lá no fundo. Os peixes descem nas funduras para nadar em paz e vêm à superfície em cardumes para respirar. Nessa movimentação eles se reproduzem e crescem. São chamados peixes de arribação como os jaraquis, pacus e sardinhas, diferentes daqueles que vivem e reproduzem na calmaria dos igapós, como os tucunarés e acarás. Avistam de longe uma sumaumeira, das árvores mais altas da Amazônia. Ela é o melhor sinaleiro para os viajantes. Não tem problema com a água. Ao contrário, suas raízes tubulares são as mais eficientes distribuidoras de água para alimentar as raízes das outras árvores. Formam autênticos tambores chamados sapopemas que tocadas com um pedaço de pau, servem para avisar onde se devem reunir os caçadores dispersados atrás de caça no meio da mata. Dizem também que a sapopema é o instrumento usado pelo Curupira para castigar os predadores da floresta. Ele bate a sapopema e se afasta do lugar. O caçador chega e não vê ninguém, porque enfim o Curupira não se deixa ver por ninguém. Prossegue batendo a sapopema até desviar o caçador do seu caminho e fazê-lo se perder no meio do mato. O poeta diverte-se ouvindo essas histórias e chama a atenção de todos para a graça das jovens e formosas caboclas anunciando que o “seu” Jari chegou para tomar café, o amigo Jari que é o chefe da expedição.
Uma das histórias fabulosas é a que acontece com o apuí, um cipó gigantesco dominador de árvores. O apuizeiro toma o lugar da árvore que ele domina. Ele vem, envolve a árvore, alimenta-se da sua selva até devorá-la de vez. Aí recebe individualidade própria tomando o lugar da árvore que ele abraçou. Existem lendas sobre o apuizeiro, mas há uma ilação que se faz desse indivíduo da floresta com determinadas figuras da vida em sociedade. O apuizeiro social se aproxima dos incautos, dominando-os e toma o seu lugar. Não é tão difícil identificar um apuizeiro social. Mas a melhor coisa que se faz, quando identificados, é deixá-los o quanto possível bem longe. Com o canto da coruja numa nova noite da expedição, após o jantar, chega a hora de contar novas histórias. A do apuizeiro foi a primeira. Um dos moradores do lugar anuncia que a lua está subindo e os carapanãs chegando. Ele exagera e diz de brincadeira, que há momentos que o ataque dos carapanãs é tão violento que o cristão precisa se lançar n’água para livrar-se das suas ferroadas.
A viagem de visitação está chegando ao fim. São três horas da madrugada. A conversa foi boa. Mas era preciso voltar à Manaus e daí seguir para o Río de Janeiro. O poeta está abastecido de esperança e de confiança em seus irmãos da beira do rio. São pessoas que quanto mais envelhecem mais se aproximam do mundo da infância. O poeta está feliz. A verdade é que o mundo se constrói com as maravilhas da infância.
“Das crianças é o reino de Deus”, encerra o livro.
Manaus, Praia da Ponta Negra, quando as águas do Rio Negro ainda
estão altas, em abril de 2020.
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1 Retë, palavra original do Nheengatu, que significa verdadeiro, preferido, único, usada ainda nos anos 40 do século passado pelo povo do interior amazônico.
Continua na próxima edição…
*Poeta e ensaísta, natural de Itacoatiara. Membro da União Brasileira de Escritores do Amazonas (UBE-Am), da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.
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