Manaus, 18 de junho de 2025

Por que estudamos literatura?

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*Zemaria Pinto

Há, provavelmente, duas atitudes básicas que dão origem aos dois tipos fundamentais de ficção: ou se escreve de brincadeira, para entretenimento próprio e dos leitores, para passar e fazer passar o tempo, para distrair ou procurar alguns momentos de evasão agradável; ou se escreve para investigar a condição humana, empresa que não serve de passatempo nem é uma brincadeira nem é agradável.

(Ernesto Sábato – O escritor e seus fantasmas)

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

(Érico Veríssimo – Solo de Clarineta – vol.1)

Escrito depois para ser lido antes

Esta introdução cumpre a função de sumário: dizer ao ouvinte/leitor o que o espera nos próximos 50 minutos ou 6 mil palavras. Em primeiro lugar, vamos falar de literatura – e só de literatura – porque eu não saberia falar de linguística ou outro assunto correlato ao curso de Letras. O segundo ponto é estabelecer uma conexão entre a literatura objeto de nosso estudo e a vida cotidiana, a nossa vidinha banal, que às vezes tratamos com certo desdém e até mesmo desprezo.

Com humor e ironia – duas características básicas da humanidade –, vamos dar um passeio pela história (da literatura, claro, mas também da vida real) e pela literatura (que não prescinde da história nem da vida real, embora não seja nem uma coisa nem outra). Vamos falar muito da literatura feita no Amazonas, proporcionalmente mais talvez do que vocês terão oportunidade de estudar. Não consegui fugir disso, afinal, sou apenas um escritor da Amazônia – orgulhoso dos nossos mitos e lendas, dos quais me considero um humilde guardião. Além desta última frase ter adjetivos demais, não esqueçam que posso estar sendo irônico. Nunca se sabe.

Eu não poderia deixar de dar alguns toques de teoria literária, pois sem ela não conseguimos estudar literatura – nem fazer análise, nem história, muito menos crítica. Pronto, acabei de nomear os estudos literários, mas enfatizo que a base de tudo é a teoria – que por ser teoria, não é moldada em aço, mas em água, em ar ou espuma. Será isso a modernidade líquida de que tanto falam, aplicada à literatura? Cá entre nós, desconfio que não.

Método: palavra puxa palavra; assunto repuxa assunto. O tempo descomunal ficou curto. Como não falar de pandemia, de política, de desemprego, de fome? Esses assuntos, por mais que não apareçam estarão sempre presentes, na medida em que a literatura é um reflexo da história, um reflexo da vida.

Por mais realista que seja, literatura é só imaginação

Antes de responder à pergunta do título, precisamos responder a pelo menos três outras questões. Primeira: a qual literatura nos referimos? Sim, porque todo texto, para o bem ou para o mal, faz parte de um tipo de literatura. A literatura que nos interessa é a literatura de invenção, criada com finalidade artística, e que tenha reconhecido valor estético. Ou seja: literatura enquanto arte. Literatura criada a partir da imaginação, descompromissada com a realidade; porém, sem perder de vista Aristóteles, para quem a natureza da arte é a imitação: não existe uma literatura de ficção pura porque a sua referência enquanto ponto de partida será sempre a realidade – não a realidade dos fatos, mas da aparência dos fatos. E aí nos alinhamos a Immanuel Kant, para quem é na imaginação que reside a arte da literatura. De maneira simplificada, podemos dizer que a realidade da ficção, um paradoxo, é uma realidade inventada, produto da imaginação, possível apenas nos estreitos limites da arte.

Os gêneros literários, assim como o universo, estão em expansão

A segunda pergunta é o desenvolvimento natural da primeira: onde encontramos essa literatura? Os gêneros estão em expansão. A literatura de ficção está em toda parte: poemas, contos, romances, teatro, memórias, música popular, história em quadrinhos, cinema, televisão – filmes, séries, novelas. E até nas chamadas redes sociais. A chave para o enquadramento, nós vimos, é “valor estético”. (Um dia destes eu descobri uma profissão que provavelmente vocês já conhecem há muito tempo: a de roteirista de games… Os games são literatura de ficção, também.)

Eu falei na chave para o reconhecimento estético do texto. No meu livro O texto nu,1 que está na terceira edição, eu desenvolvi a teoria da letra-poema, tentando orientar o leitor a identificar letra de música que seja digna de ser classificada como poesia. É curioso como alguns clássicos da chamada MPB são uma nulidade enquanto poesia. São letras funcionais, que passariam despercebidas se não estivessem conectadas à uma música inesquecível, cumprindo uma função emotiva/informativa, prosaica. Já a letra poética está em um patamar superior, onde a harmonia entre letra e música, em que ambas são valorizadas, constrói alguns clássicos. A letra-poema é uma invenção de outro nível: uma letra de música que se sustenta sozinha, que não precisa da música para ser reconhecida como poesia. É claro que essas ideias não estão isentas de polêmica. Então, o que não se enquadrar em nenhuma das categorias antes citadas será chamado simplesmente de letra ordinária.

Não podemos deixar de lembrar o Nobel de Literatura de 2016: o compositor Bob Dylan. Depois do reconhecimento pelo significativo prêmio, devemos deixar o pudor de lado e chamá-lo de poeta Bob Dylan. Minha próxima aposta são os autores de histórias em quadrinhos, de “graphic novels”. Roteiristas de cinema e TV já têm o Oscar e o Emmy. Mas, é apenas uma questão de tempo.

No século 19, Verlaine conclui um de seus mais belos poemas, afirmando: “e todo o resto é literatura”.2 Parafraseando o bardo francês: no século 21, tudo é literatura!

Memórias: não podemos esquecer

Um gênero especialmente complicado são as memórias. Enquanto gênero literário, as memórias situam-se em um ponto fluido, entre o testemunho histórico e o relato ficcional. Mas o mecanismo que deflagra as memórias é muito mais complexo que essas veredas que se bifurcam: lembrança-esquecimento; memória afetiva, memória seletiva; memória individual, memória coletiva – são apenas alguns dos aspectos que envolvem o mecanismo da memória. E o mais terrível de todos, o bicho-papão que nos espreita dos mais sombrios recônditos do nosso ser: o inconsciente é também uma forma, incontrolável, de memória.

As memórias distinguem-se da autobiografia na medida em que esta busca o registro histórico e cronológico rigoroso, enquanto aquelas trabalham a imaginação, compondo uma narrativa em que a experiência vivida é mais importante que o documento dela resultante. As memórias não são, portanto, um mero levantamento de fatos passados, mas o estabelecimento de uma teia de relações com o presente e com o futuro – por isso, as memórias podem ser consideradas como literatura de invenção.

Precisamos da literatura porque a vida não nos basta

Por fim, a terceira pergunta: para que serve a literatura? Tenho certeza de que vocês já têm uma resposta, numa palavra: prazer? Diversão? Fruição? Todas as anteriores? Nenhuma delas? Eu diria que todas as anteriores e mais alguma coisa. A resposta clássica, abrangendo todas as possibilidades acima é: precisamos da literatura porque a vida não nos basta. A literatura leva ao devaneio, à fantasia. É como assumir o controle dos próprios sonhos. Ler literatura exige um grau de amadurecimento que ultrapassa a leitura mecânica: é preciso aprender a estabelecer relações, nexos, conexões, links – com a tradição (o passado) e a contemporaneidade (que contempla também o futuro). Porque a literatura é a história contada como se os acontecimentos fossem sonhados.

Se frei Gaspar de Carvajal, o dominicano que registrou a primeira navegação de pessoas brancas pelo rio Amazonas, em 1542, não tivesse se deixado levar pelo devaneio, hoje não seríamos quem somos: amazônidas. O relato de Carvajal estabeleceu conexões entre a mitologia grega, a mitologia nativa e a realidade que ele vivenciou. Desse amálgama, nasceram páginas literárias históricas e páginas de história que se tornaram literatura. Estava inaugurado, com toda pompa e circunstância, o imaginário amazônico, e, de quebra, o que Todorov chamaria, quatro séculos depois, de “maravilhoso hiperbólico”. Mas, o que vem a ser esse imaginário amazônico?

Viajante ou nativo, o escritor amazônico tem a cabeça nas nuvens

Fazendo uma analogia com a mais recente tecnologia de armazenamento, a “cloud storage”, podemos dizer que o imaginário é um mega-arquivo em uma fictícia nuvem de imagens mentais (não iconográficas), resultantes da memória e da imaginação – portanto, dos saberes – de uma coletividade.

Do ponto de vista literário, o imaginário amazônico é formado principalmente pela mitologia, que tem origem em um tempo indefinido, contaminada, nos últimos quinhentos anos, pelo contato com saberes diversos de todos os pontos do planeta, pois o imaginário é dinâmico e inconstante – e em estado de permanente mutação.

Mas, para o indivíduo que vem de fora dos domínios da região, o primeiro contato – e primeiro choque – é com a paisagem. E a paisagem é a selva. E a selva é um enigma. Como definir a selva para quem nunca a viu? Podemos começar dando uma ideia de suas dimensões, usando a mesma expressão que serviria para dar as dimensões do mar, do deserto ou do espaço: imensidão. Mas isso seria uma incoerência, porque a selva, plantada a céu aberto, é fechada. E se é fechada, é limitada. Por outro lado, é muito fácil de entrar, mas é complicado sair de sua estrutura labiríntica. Sob o sol, seu interior é escuro, sombrio. Mas, há de ter os sentidos aguçados para vê-la, tocá-la, sentir o seu cheiro e seu gosto – e, sobretudo, ouvi-la. Porque este é o sentido mais exigido: o silêncio da floresta ocorre entre a algaravia carnavalesca de um bloco de sujos e a suavidade quase tristeza de um conjunto de câmara.

A selva se associa à água – dos rios, dos lagos, das corredeiras, das cachoeiras, da pororoca, das enchentes, das vazantes, das chuvas intermináveis e das tempestades devastadoras. Para o viajante, a água é caminho, a selva é mistério.

É natural, portanto, que o escritor estranho à região eleja a paisagem, item essencial do imaginário, como tema de maior destaque. É desse uso da paisagem que nasce a dicotomia-clichê “edenismo x infernismo”: para alguns autores, é o “paraíso perdido”; para outros, apenas um “inferno verde”.

O escritor local, entretanto, que tem a paisagem incorporada ao seu cotidiano, embora não a ignore, escolhe outros aspectos do imaginário para explorar literariamente, especialmente a mitologia e a simbologia da região. Ele ouve a voz do mito e compreende a razão do símbolo.

Para efeito didático, portanto, identificamos dois tipos de escritores que têm a Amazônia como matéria-prima: o viajante e o nativo, contando entre estes os radicados. Viajantes são aqueles que passaram por aqui – alguns nem passaram, aliás – e escreveram sobre a Amazônia, servindo-se do imaginário.

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PINTO, Zemaria. O texto nu – Teoria da Literatura: gênese, conceitos, aplicação. 3. ed. Manaus: Valer, 2019. p. 149-158.

2Poema “Art Poétique”: “Et tout le reste est littérature.”

Continua na próxima edição…

*Zemaria Pinto tem 27 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, contos adultos, ficção infantojuvenil, teoria literária, didáticos, artigos e ensaios sobre literatura, além de três livros de contos publicados no blog Palavra do Fingidor.
Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas.
Graduado em Economia (1981), é especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos Literários (2012). Sempre pela UFAM.
É membro da Academia Amazonense de Letras, onde ocupa a cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.

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