Manaus, 31 de outubro de 2025

Poráozeiros

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O sol mal abre as pálpebras, e já aparece o som da manhã no porto. Caminhão com todo tipo de cargas e fretes. O ar, mesmo com um suave vento, avisa que o calor vai chegar e não pede licença. É ali, no beiradão do rio, entre sacas de cimento outras de trigo, pacotes, caixotes e encomendas que começa a história dos poráozeiros.

Não é de romance que se faz o ofício, mas de repetição firme: levantar, amarrar, alinhar, empurrar, erguer. Cada caixa tem uma história que não cabe na etiqueta: o cimento que veio de lá, a estiva que veio de cá. O poráozeiro sabe decifrar o peso das coisas pelo silêncio que elas carregam. Um saco de cimento não é apenas cimento; é a perspectiva que vai construir uma casa ou um muro, ou uma calçada, num beiradão qualquer.

Diferente do estivador que tem carteira assinada, horário fixo e jornada de trabalho, o poraozeiro embarca junto com as mercadorias. Os poráozeiros carregam e descarregam as mercadorias para o convés de carga da embarcação bem como de e para os porões do navio. Daí o nome de poráozeiro.

Em outros tempos e infelizmente em alguns barcos menos humanizados os poráozeiros dormem no meio das cargas, como se mercadoria fossem.

O poráozeiro não reclama; ele regula o próprio fôlego como quem regula uma máquina antiga, mantendo o pulso igual ao batimento do motor do navio.

O balanço do navio denuncia a chuva que pode chegar, o movimento das cordas diz quem está cansado hoje. E no meio dessa coreografia de força e prudência, surge a paciência: a paciência de quem sabe que tudo o que entra e sai no navio precisa de alguém para dizer “vai lá” e “já é hora de parar”.

Há poráozeiros que chegam com histórias pesadas nos ombros: a dívida que não cala, o filho que precisa de terapia, a casa que precisa de tinta. O porto de algum vilarejo amazónico, porém, é um espaço de onde se volta para casa com o corpo mais pesado e o coração mais leve ao mesmo tempo. Porque, no fim, o que o poráozeiro carrega não é apenas peso físico. São as contas do mês, as contas da vida, a sensação real de pertencimento a uma corrente maior que a própria força muscular.

Os dias se espremem na paisagem hegemónica dos rios caudalosos e da floresta. E o sol que às vezes parece fugir para o horizonte. Chega o meio-dia com a promessa de almoço partilhado entre colegas. Um sorriso, um olhar triste ou mesmo o silêncio que se faz cúmplice quando a conversa cai no afastamento das famílias ou na saudade da cidade que ficou para trás. Porque o poraozeiro trabalha entre dois mundos: o das cargas que entram e saem e o da gente que fica.

À noite, quando o navio desliza pelos rios da Amazônia os poráozeiros descansam nas redes armadas junto a passageiros que pagam também para serem transportados, mas respiram outras verdades. Embora, durante as horas de folga, entre jogos de dominó e baralho, os poráozeiros compartilham suas verdades e histórias com os passageiros.

Quando chega o dia de voltar para seu tapiri, para a rede de casa, com as mãos ásperas, o peito carregado não só do que foi empurrado para dentro do porão, mas também o que ficou desejado nas pequenas cidades amazônicas. Lugares e pessoas guardados no fundo do peito. A brisa de quem ficou para trás, a risada que não se apaga. Tudo marcado. Como o destino que costura as suas vidas e sonhos a partir de pequenos gestos de força diária. O poráozeiro organiza o mundo amazônico por meio do peso e do cuidado, ele dá forma à matéria que move o comércio dos rios. Ele transforma trabalho em território de convivência. E, no fim das contas, ele é a ponte entre o que foi feito e o que ainda será entregue ao caboclo ribeirinho, sempre com a dignidade de quem sabe que cada caixa é uma história pronta para ganhar o próximo capítulo.

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