*Francisco Calheiros
Continuação…
Quarto de hotel
Trazia nas mãos um envelope com vários papéis, provavelmente os documentos sobre o meu processo e alguma novidade sobre a data de minha pendência. Ledo engano! Tudo não passava de alguns manuscritos em folhas de papel ofício.
-Com saudades? – disse-me sorrindo.
Não tive reação para responder àquela pergunta nem para oferecer-lhe o canto na cama como assento. Há muito tempo não sabia o que era uma mulher, e estou falando sério. Olhei Carol, assim a chamava, dos pés à cabeça e devorei-a com o olhar de homem faminto. O vestido inspirava-me muita coisa, aquelas pernas, aqueles seios, aquela boca. Comecei a excitar-me e passei as mãos pela perna para diminuir os batimentos cardíacos que estavam ficando fora de controle. O guarda passou a ser um cara legal, depois de saber que eu era um professor e ter um comportamento diferente dos demais detentos. E foi por causa dessa bondade é que pude receber visitas na cela, já que a ordem era ir para a grande área externa, que chamavam de campinho de futebol. Ali os detentos recebiam os familiares, e as esposas com os filhos pequenos abraçavam-se aos maridos, que cumpriam penas por latrocínio, porte ilegal de arma, pequenos roubos e assaltos a banco.
Pela primeira vez vi Carol com outros olhos, olhos de quem não sente só tesão ou vontade de levar uma mulher para a cama. Era um sentimento fraternal, de reconhecimento por nunca me ter abandonado. Já disse que tanto Júlia quanto Carol eram lindas, duas mulheres encantadoras e boas de cama. Mas, pensando bem, cheguei à conclusão de que aquela empregada doméstica e aluna do supletivo era muito mais especial do que imaginava. Era uma mulher cinco estrelas a começar pelo olhar que traduzia verdade, pela boca que aparentava estar sempre à procura de outra boca, os lábios carnudos, o nariz afilado, os supercílios espessos.
Os cabelos dessa vez estavam mais curtos e ondulados quase sempre cultivada, irrigada, podada, e cujos frutos possam caindo sobre os ombros. Resumindo: uma árvore para ser colhidos em forma de prazer ou em forma de filhos. Passei a vê-la por esse ângulo, não mais como uma empregada
doméstica que sonhava em ser advogada.
Admirava-a pela determinação de ascender social- mente. Cursar a Faculdade de Direito era seu projeto de vida e dava sinais de que o realizaria. No terreno comprado atrás daquela escola estadual, construiria sua casa, sairia do pequeno quarto em que morava com a tia. A Matemática e a Física eram o seu ponto fraco e, por duas vezes, tivera sido reprovada nos exames do supletivo exatamente nessas disciplinas. Já a Língua Portuguesa era o seu forte, já não usava o te e o lhe de qualquer jeito e começava a ter mais segurança na colocação dos pronomes oblíquos átonos. Agora estava ali numa clara demonstração de que eu significava alguma coisa para ela. Numa de suas visitas, ensinei-lhe a não mais confundir uma oração subordinada substantiva subjetiva com uma objetiva direta. As aulas eram ali mesmo, no chão do cárcere.
Suas raras visitas eram resumidas a gestos e a pouca conversa. Estava procurando um advogado. Dessa vez, porém, conversamos um pouco mais, falamos sobre os honorários que seriam pagos, sobre as últimas disciplinas ainda pendentes no exame da Seduc e, pela primeira vez, falamos também de nós. Isso mesmo: de nós. É verdade que nunca paramos para pensar se tínhamos alguma coisa a dizer a nosso respeito. Na verdade, não, mas as coisas vão sendo construídas com o tempo e com as necessidades
– Um amigo seu mandou isso.
Era a segunda pessoa que se lembrava de mim. Foi-me uma surpresa, tinha-o como o maior de todos os mestres. Sua Trilha D’água era muito mais do que um livro de poesia, era uma denúncia responsável da situação de miséria em que vive o caboclo amazonense, abandonado à própria sorte. Conheci-o pessoalmente no Bar do Artista, um famoso ponto de encontro de intelectuais, à sombra da igreja, cujas torres vivem abençoando aquele monumento de completa adesão ao capitalismo, em frente ao teatro. Era um homem estranho e não queria muita aproximação com os cidadãos envolvidos com o poder, achava-os corruptos, insanos e devoradores dos parcos recursos públicos destinados aos projetos culturais que não passavam de um tablado de madeira no final da Rua Tiradentes, a rua paralela ao teatro construído no período de surto econômico. Encontrei, entre os papéis que ela me entregou, o seguinte texto:
Nesta residência provisória
(parada necessária),
em que repenso a vida,
não tenho noites calmas.
Convoco meus fantasmas,
e amigos meus, sabendo que estou só,
vêm naturalmente
para a longa tertúlia.
Há muitas vozes caras, e eu apenas escuto:
não me sinto julgado, nem sou réu ou herói.
No início da conversa,
Bocage fala de um nariz enorme,
que cheira o mundo
(quer fazer graça);
Cervantes me pergunta
se não são moinhos de vento
que me assustam e me convertem
nesta triste figura;
Camões recorda a turbulência do mar,
tanta tormenta, tanto dano,
tantas vezes a morte pressentida,
na vida o desamor e tanto engano,
tanta necessidade aborrecida
(ó velho Mestre, eu te saúdo);
Balzac, malicioso, fala
de passagens picantes
desta grande Comédia,
e me cita a mulher de trinta anos;
Eça me conta, mais uma vez,
da hilária relíquia,
e de incursões ao incesto,
no Portugal d’antanho,
mas, ao final, alerta
que não se julgue a Inglaterra por um inglês;
Raquel assegura-me
que o caminho é de pedras;
Mestre Graça lembra os tempos amargos,
e discorre sobre a angústia;
Machado, com o velho binóculo,
vê atentamente as vozes;
Guerra Junqueiro comenta as iras
de um deus sempre velho e carrancudo;
Pessoa, fantasiado de ele mesmo,
faz-me lembrar que tudo vale a pena;
Garret alude à rosa,
rosa de amor purpúrea e bela,
pura, singela, orvalhada, viva.
Alencar e Silva diz que
sereno, contudo, é o seu semblante:
este, e aquele que passeia entre as gentes
(veio do Rio para visitar-me);
Augusto dos Anjos, com sua mórbida ironia,
acena com uma tesoura
para minha singularíssima pessoa;
Dante, embora acompanhado
da figura macabra de Ugolino e sua embiara,
sugere aconselhar-me com Vírgilio,
e prostrar-me depois aos pés de Beatriz;
Sócrates, entre Jesus e Gandhi,
apenas observa.
Sem sons expostos,
a algaravia continua.
Um cansaço antigo pesa sobre meus olhos
que me cerram retilíneos
(ainda tento esboçar uma desculpa).
Creio que meus amigos,
com todo o tempo da imortalidade,
voltarão amanhã.
O título do texto não poderia ser mais oportuno. Conquanto conhecesse bem os versos do autor, lia-os com meus alunos nas aulas, não me lembra aquela peça. Era apenas um rascunho que, talvez, ainda não tivesse sido publicado. Mas para mim era muito mais do que um rascunho, aquilo me pareceu proposital, uma enorme ofensa pelo estado e que me encontrava. Citou quase todos os meus autores prediletos, só faltou Manuel Bandeira e Thiago de Mello. Uma coisa também me deixou pensativo: queria o Mestre me dizer alguma coisa? De onde ele conhecia Carolina para pedir-lhe que me entregasse aquelas ofensas e aqueles ensinamentos?
O velho lençol que servia de porta para o pouco higiênico banheiro da cela nos escondeu naqueles movimentos em pé e de mau jeito. As pernas, pelo menos no meu caso, nunca resistiram por muito tempo. Carol me tirou de um jejum de semanas, e, apesar de estar um pouco destreina- do, pude perceber que ela gostou mais do que eu. A roupa que ela usava facilitou nossas intenções. Sempre gostei de mulher de vestido.
O cacique político levou uma multidão para a convenção que homologaria sua candidatura. Um clube, no Bairro de Vila Rica, dizia a reportagem, foi pequeno para as quase vinte mil pessoas que se acotovelavam com faixas e palavras de adesão, saudando-o como o novo prefeito da cidade três meses antes das eleições. Esse macabro ritual repetia-se a cada quatro anos, quando ônibus eram fretados para levar gente da periferia com a finalidade de dar o primeiro nocaute no adversário e causar a impressão de que a grande massa estava ali, de joelhos, num gesto de penitência, implorando para ser salva da miséria e do desemprego.
– Eu te amo!
Com essas palavras Carolina despediu-se de mim naquela visita. Não teve tempo de ajeitar os cabelos nem limpar a mancha de batom no lado esquerdo do queixo. As notícias sobre o advogado foram péssimas, pois não havia jeito era esperar o designado pela Defensoria Pública. O fato dinheiro para contratar um que acompanhasse o caso, e o de não poder ser condenado sem o direito de defesa já era um consolo que me impossibilitava de pensar em suicídio.
Depois da rebelião, deixaram-me sozinho em uma cela e, naquele meu “quarto de hotel”, passei a noite relendo os manuscritos…
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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