*Francisco Calheiros
Continuação…
Lesa-pátria
Nos bairros, principalmente nos mais periféricos, uma legião de desempregados estava sendo contratada pelo cacique político para divulgar seu programa de governo. Eram exatamente três meses de trabalho para excluídos do Distrito Operário e do centro comercial, que, vez por outra, eram ameaçados pelos empresários paulistas. A área de comércio, criada para tirar a região do atraso econômico, vivia sendo agredida por comentaristas econômicos das principais emissoras de televisão do País. Um antipático mordia os dentes quando falava sobre os incentivos fiscais que prejudicavam, por exemplo, o superavit da balança comercial.
Somente no Bairro dos Laminados, o candidato do Sistema, com mais de setenta por cento das intenções de votos, segundo o criticado Instituto Brasileiro de Opinião Pública, Ibope, estava pagando a mais de cinco mil pessoas. Era um verdadeiro exército invadindo ruas e becos da cidade, divulgando panfletos e pregando cartazes pelas casas sem autorização dos proprietários, numa clara demonstração de desrespeito à legislação eleitoral, que nada podia fazer para coibir o uso da máquina pública a favor do candidato apoiado pelas empreiteiras, por líderes comunitários que se vendiam em troca de favores, por correntes conservadoras que se mantinham no poder a ferro e fogo. Seria, segundo um comentarista político, um verdadeiro massacre eleitoral. “Ninguém jamais conseguiu alterar os rumos de uma eleição com setenta por cento de vantagem para um determinado candidato”, dizia um estudioso no assunto na sua coluna de domingo no centenário Jornal da Barra. Era impossível calcular o número de pessoas presentes ao comício no Bairro dos Laminados, pois toda a área da Feira do Resto estava repleta de pessoas com bandeirolas e palavras de ordem.
Fiquei, confesso, triste com aquela cena. Como as pessoas conseguem endeusar os responsáveis pela falta d’água, pelo desemprego e pela insegurança que rondam nossas vidas? Seria masoquismo? Estava sendo inútil o nosso trabalho de conscientização em sala de aula, tentando formar pessoas capazes de discutir os problemas da cidade, do estado e do País? À proporção que atravessava aquela turba, lembrava-me das aulas de Filosofia do professor Gonzales. Aquele meu colega era um sonhador. Suas aulas eram em forma de discurso, pregavam a luta de classes, exortavam os alunos a participarem da vida política do País e dizia sempre que de sua sala de aula sairiam deputados, médicos, advogados, professores e revolucionários. Sua barba lembrava a de Marx, e seu modo de vestir mais parecia Luís Carlos Prestes ao liderar a famosa Coluna. Um professor fala para muitos, porém poucos conseguem ouvir. Padre Antônio Vieira viveu o mesmo drama. Os surdos são tragados pela subserviência que o estado lhes impõe. No seu famoso sermão sobre a arte de pregar, já questionava sobre a doutrina ineficiente ou a falsa doutrina. Minha vizinha, que fazia parte desse exército de surdos, aceitou ser cabo eleitoral para comprar o leite da filha.
– Mas o voto é secreto! – repetia várias vezes. Nas proximidades em que morava, falaram-me várias pessoas as mesmas palavras: “Mas o voto é secreto!”. Será? O que isso na verdade poderia significar? Preferi a opinião do comentarista político a ter de ouvir o desabafo de desempregados destruídos pelo subemprego. O povo, dizia meu tio, aquele que morreu na fila do banco, quer resultados, está cansado de discurso e de propostas, por isso quem der mais leva vantagem. Naquele sábado, as ruas do bairro amanheceram pintadas com propagandas e não havia um muro, uma casa, um poste que não tivesse seu nome estampado num colorido cartaz impresso nas gráficas de São Paulo. Aliás, tudo era importado, inclusive os marqueteiros que sempre em época de eleições apareciam com a fita de vídeo debaixo do braço. Os efeitos visuais criados pela computação gráfica fizeram deste chão uma cidade sem problema e massificaram no imaginário das pessoas uma realidade de países europeus. Não era preciso ser especialista no assunto para perceber que milhões estavam sendo gastos, que tudo já estava passando dos limites e transformando-se numa verdadeira agressão ao estado democrático de direito. A Justiça Eleitoral, nesta terra, é para inglês ver. Mas um dia ainda veremos governa- dores sendo cassados, vereadores sendo obrigados a deixar as câmaras e deputados sendo expulsos das assembleias. Se não acreditarmos nas instituições, a barbárie pode voltar a determinar nossas vidas. E isso, se já não estiver determinando.
Mas onde conseguiam tanto dinheiro? Não havia justiça para coibir tanto abuso? A resposta era a de sempre: empreiteiros doavam vultosas quantias em troca de obras superfaturadas na próxima administração. Havia, por outro lado, rumores de que vários candidatos à Câmara Municipal estavam sendo financiados com dinheiro do narcotráfico. O Fato foi o primeiro jornal que levantou essa suspeita numa reportagem de página inteira. Determinados candidatos ao cargo proporcional davam sinais de que suas campanhas se- riam milionárias e não escondiam isso nem mesmo das autoridades do Tribunal Regional Eleitoral, sempre às voltas com as velhas dificuldades: poucos fiscais, carros sem condições de uso e ainda tendo que conviver com ameaças anônimas.
Somente hoje entendo perfeitamente aquela ligação entre a política e o narcotráfico. Isso sempre funcionou em países desenvolvidos, como a Itália, e como não poderia funcionar no Brasil, onde as instituições são tão frágeis como uma teia de aranha? Custou-me acreditar que tal clima de instabilidade institucional houvesse chegado a esta cidade, tão distante do resto do País, ainda mais da Europa. Na Itália, dizia-se, a máfia deita e rola sobre o estado; mata juízes, políticos e opõe-se a tudo que vier de encontro aos seus interesses. Os jornais europeus, todavia, já noticiavam uma forte reação da sociedade e das instituições. Se era verdade que esse pesadelo havia atravessado o Atlântico e aterrissado aqui, não se podiam separar as ligações dessa gente com alguns políticos e autoridades locais. Para o professor José Raimundo, com quem conversei várias vezes sobre o assunto, o envolvimento era claro. “Temo pela sua vida, meu amigo, temo pela sua vida”, repetiu várias vezes. Também não tinha mais a menor dúvida: a presença da máfia italiana era uma realidade, e era ela que estava desembolsando aquela fortuna pela execução do serviço. Era italiana mesmo? Não seria baré? Dizem que o retrocesso era tanto que o crime poderia estar infiltrado nos mais diversos setores da sociedade com ramificações nas cidades do interior, principalmente nas mais próximas. E poderia muito bem ser o caso de Vila da Barra, a cidade sem lei e sem ordem, porém disputada por grupos políticos formados por brasileiros e naturalizados. Hoje sei, pelos manuscritos que encontrei nas pastas que ele arquivava na velha biblioteca do pouco que restou do incêndio, que as intenções iam além do campo político. A venda de madeira era a principal delas e, para burlar a legislação brasileira sobre esse assunto, era necessário infiltrar-se no Executivo e no Judiciário. Um outro ponto que meu pai também revelou foi a descoberta de uma grande reserva de petróleo, principalmente nas proximidades desta cidade. Tal fato explica a vultosa quantia.
Havia acabado de subir a Rua da Fé de volta do trabalho, quando um carro preto estacionou em frente à minha casa. Os vizinhos olharam assustados, pois eu raramente recebia visitas, não era de muita conversa com as pessoas da redondeza. Aproximei-me do automóvel, ali, estacionado na minha biqueira, impedindo a minha passagem. Reconheci logo Ernandes, que me cumprimentou de forma rápida, perguntando se eu estava atento para as minhas obrigações.
Disse-me que eu havia sido designado para realizar a entrega de uma encomenda. Seria levado até a esquina da Boulevard Costa e Silva com a Avenida Médice, dali pegaria um táxi que me deixaria em um prédio recém-construído nas proximidades do Parque Municipal, cujos igarapés eram depósitos dos resíduos fecais dos prédios de classe média das proximidades. Durante o percurso de aproximadamente trinta minutos do Bairro dos Laminados até a primeira parada obrigatória, os dois sujeitos que acompanhavam Ernandes me chamaram atenção. Conhecia-os de algum lugar e, com um pouco mais de sacrifício, lembrei-me de que Júlia, certa vez, na Praça do Acari, apresentou-me a eles. Tratava-se de Ramon e Célio. A identidade continuava a mesma, uma vez que não haviam mudado de nome, e somente a postura parecia mais séria, de quem não queria muita conversa. Ramon, um tipo baiano e de bigode por fazer, segurava entre as pernas uma mala preta. Os dois entraram no táxi comigo, enquanto Ernandes nos seguia a alguns metros de distância.
– Pare aqui! – ordenou Ramon ao obediente taxista -. Vá – disse-me em seguida e entregue essa encomenda ao senhor Saraiva, apartamento vinte e cinco, vigésimo andar.
– Obrigado, meu rapaz!
Com essas palavras e exalando um bafo de bebida alcoólica, o segurança passa a mala preta a um homem sentado numa poltrona a poucos metros de distância. Era o senhor Saraiva? Não, não era o senhor Saraiva! A mala foi entregue ao candidato da situação. Não foi difícil reconhecê-lo. Era uma figura pública. Não passei naquele recinto mais do que trinta segundos, mas o suficiente para saber que estavam todos ali, do primeiro ao último escalão da administração pública, inclusive alguns deputados estaduais que faziam da Assembleia Legislativa uma antessala do Paço do Governo. Para mim uma toca de ratos. Um desses deputados era um sujeito muito conhecido pelo vocabulário chulo nas sessões do legislativo, bizarros erros gramaticais que cometia e pelos italianos que usava.
O elevador que me levou de volta ao térreo pôde testemunhar o meu desabafo e a minha tristeza. Criticava a mim mesmo, estava envolvido até o pescoço com aquela gente, não podia retroceder sob pena de levar ao sacrifício pessoas muito próximas de mim, principalmente minha velha mãe, já idosa e vivendo na companhia de um neto.
O crime de lesa-pátria que estava cometendo me era motivo de vergonha, de revolta e de indignação. Não foi aquela a educação que o professor João Bosco me passou nas suas aulas de Filosofia no primeiro período do curso de Letras. Sua disciplina, Introdução à Filosofia, era uma viagem às obras do pai do Socialismo Científico. “A história de toda sociedade até hoje tem sido a história das lutas de classes”. O elevador parou no térreo, e via aquelas palavras pichadas nas paredes de mármore do moderno edifício. E, antes de chegar à portaria para pegar o táxi de volta, muitas coisas me vieram à cabeça: voltar ao vigésimo andar e jogar uma bomba naquele apartamento, procurar a imprensa e denunciar toda aquela sujeira, fugir e virar feirante no mercado Ver-o-Peso, ou simplesmente pôr fim à minha vida para também dar termo à vergonha que estava sentindo.
Pela primeira vez me sentia um criminoso e, verdadeiramente, era um criminoso. Os mais de cem quilos de cocaína que ajudei a transportar da fronteira foram consumidos aqui e na capital, e quantos não prejudicaram suas vidas, danificando-se tanto física quanto psicologicamente? Talvez por pessoas bem próximas de mim. A droga não escolhe parentesco nem relações de amizade e destrói tudo que não resistir às ruínas que impõe ao organismo humano.
Não queria assumir minha condição de membro de uma poderosa organização criminosa. Àquela altura do campeonato ainda me considerava um cidadão de bem e um simples professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino, amante da Literatura e apaixonado pelos versos de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Recém-nomeado em um concurso público, feito sob pressão do Ministério do Trabalho, que não aceitava a contratação de professores à revelia da legislação trabalhista. Aqueles pensamentos pueris não mais condiziam com a realidade que estava vivendo e que havia mudado completamente minha vida. De nada valera o meu envolvimento com a vida sindical, minha participação nas greves por melhorias salariais e por um ensino público, gratuito e de qualidade. O vigia do prédio era a cara do professor Aluísio, apelidado carinhosamente pelos alunos de sapo, brilhante professor de Sociologia da Universidade do Amazonas. A história de vida dele era um exemplo que deveria ser seguido. Isso tudo refletia acerca do abismo em que me encontrava, tentando aumentava meu sentimento de culpa. No momento em que esquecer meu passado e não aceitando responsabilidade nenhuma, a imagem daquele professor parece que era proposital. Atravessei a guarita, cheguei até a esquina e notei que o táxi que me trouxe não se encontrava mais no local. Até mesmo Ernandes, que nos acompanhou a distância no seu imponente carro preto, havia-se evadido. O táxi que me levou de volta ao Bairro dos Laminados aumentou ainda mais o drama psicológico, cuja saída até aquele momento era apenas uma: o suicídio. Mas o que tinha a ver o táxi com o meu caso? Olhava para o motorista e via uma mulher, ou seja, via ali, na minha frente, a professora Arminda, que, por diversas vezes, liderou as greves dos profissionais da educação. Sua determinação era algo extraordinário. Numa chuvosa segunda-feira, ela já se encontrava à porta da Escola Estadual Getúlio Vargas, distribuindo panfletos do sindicato e conclamando os professores para as reuniões da categoria.
Senhor, pare na esquina da Rua da Fé com a dos Desvalidos – disse ao motorista, que diminuiu o volume do rádio para melhor ouvir minhas orientações. Era um sujeito branco, meio magro que, pelo visto, gostava de Martinho da Vila, pois cantarolava suas músicas com a desenvoltura de quem passa o dia ouvindo as mesmas canções.
– Pronto! – exclamou.
Paguei a corrida e perguntei:
– Como é o seu nome?
– Mourão.
Enquanto descia a esquina, enxugava as lágrimas.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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