*Francisco Calheiros
Continuação…
Conversa entre amigos
O interbairro nos deixou nas proximidades do Grêmio Recreativo Escola de Samba Reino Unido da Liberdade. Eram aproximadamente dezesseis horas, e o pessoal de apoio acabava de chegar para a organização do comício às vinte. Não conhecia o Morro da Justiça, famoso bairro pela beleza das pessoas que moram ali e por ser palco de uma escola de samba do Grupo Especial.
Aqui, são inúmeras as bancas de churrasco nas esqui- nas de rua. Quase todas improvisadas à beira das calçadas. A churrasqueira normalmente é feita de aro de automóvel sobre o qual são colocados alguns pedaços de carne enfiados em um espeto de madeira. A vigilância sanitária sempre fez vistas grossas a esse tipo de atividade que serve de ganha-pão para mulheres e homens excluídos do mercado de trabalho. O centro da cidade, por exemplo, é um verdadeiro horror. Frita-se jaraqui em plena avenida central.
Os churrasquinhos de gato, como são conhecidos pela população, entretiveram-me o estômago. Carol não quis nenhum e preferiu um suco de maracujá. Ela decidiu faltar às aulas para me acompanhar e sentir-se, segundo suas próprias palavras, mais perto de mim. A calça apertada e a blusa exibindo o volume dos seios transformavam-na em um bom prato para depois do trabalho voluntário. Sim, trabalho voluntário. Na escola em que trabalhava, um grupo de professores decidiu que apoiaria a candidatura do jovem deputado, e esse apoio iria além de pedir os votos da família e dos alunos. Seria ir a campo, participar de caminhadas, fazer panfletagem nas vias públicas e contribuir com o que depois que o candidato esteve na porta da nossa escola, estivesse ao nosso alcance. Toda essa disposição começou conversando com as pessoas que saíam. Já conhecíamos seu histórico de vida, sua formação acadêmica e seus projetos sobre educação. E toda a turma do Bar da Francisca estava presente. O anedótico Fernando era o mais exaltado. Marcos Portes não esqueceu mostruário com sus fias piratas. Carlos ajudava a levantar algumas tabuas que seriam usadas como escada. Enfim, só voltou mesmo a bela Chica. Provavelmente estivesse em pensamento, uma vez que também defendia aquela causa. Seu esposo foi exonerado de um posto de saúde só porque disse que o sistema de saúde no Brasil era um dos piores do mundo. O diretor do posto, que ficava nas proximidades do Condomínio Rio Urubu, era um sujeito chamado Luís Cunha. Pela semelhança de nome foi carinhosamente tachado de Fanfarrão. Falo das Cartas Chilenas, meu caro leitor, falo das Cartas Chilenas. Por favor, não me exija tantos detalhes. Nem sei se esses manuscritas serão publicados. Depois de morte de Eduardo – de quem? O guarda que me conseguia papel para rascunho – nunca mais achei um bom samaritano que me ajudasse nesse aspecto. Pedia de Carol. A resma de papel que ela me trouxe foi vetada na portaria. Soube depois que a usaram como material de expediente.
Aquilo era extraordinário. Pela primeira vez na histórica política desta cidade um candidato a cargo majoritário tinha aquele comportamento: ajudar pessoalmente na montagem do palco, onde o comício seria realizado, pegar do martelo, do serrote e servir água para os operários. O outro candidato. exatamente pela força do poder econômico, só aparecia no horário previsto cercado por seguranças armados.
– Carol, você não vai acreditar!
– O que foi?
– Olhe lá.
Ela se vira e olha em direção ao palco que estava sendo montado. Sorriu. Achou tudo muito estranho e inusitado. Correu e abraçou o jovem deputado, deixando-me com um pouco de ciúmes. Ele se fazia acompanhar de um economista, candidato a vereador e auditor da Receita Federal. Já o conhecia de vista e de leitura, pois tinha lido um dos seus livros sobre a economia amazonense. Era um sujeito meio alto, meio forte, branco e um pouco calvo. Cumprimentou- -me com uma educação pouco rara nos políticos bares, que raramente olham para as pessoas com sinceridade. A partir daquele momento passei a ter candidato à Câmara Municipal. Jornalistas fizeram algumas perguntas ao candidato sobre o seu programa de governo e a nova pesquisa do Ibope, que queda do candidato oficial. registrava pequeno crescimento de sua candidatura e ligeira queda do candidato oficial.
Por uma razão muito simples não houve comício: poucas pessoas compareceram ao local. Contei umas cinquentas. Para Carol, não havia mais do que trinta pessoas.
E, sem perder a postura, o aguerrido deputado chega no horário previsto acompanhado do economista e de outros correligionários. Em frente à casa de dona Aparecida, de sua banca de churrasco e sob as bênçãos da escola de samba, pediu que todos se acomodassem da melhor maneira possível para que pudessem ter uma pequena conversa. O diplomata era bom de discurso. Sua oratória era limpa, enxuta, sem as prolixidades habituais dos discursos vazios. Mostrou que conhecia Vila da Barra como a palma de sua mão, demonstrou preocupações com a crise do sistema de transporte coletivo e declarou-se a favor dos moradores do São Judas Tadeu, que incendiaram ônibus para protestar contra a falta de atitudes dos governantes. E a conversa entre amigos continuava sob o olhar atento dos presentes. “Esta cidade -disse subindo num assento usado pelos fregueses de dona Aparecida – continua sendo vítima das invasões de terra, de grileiros, do subemprego e da falta de opção para milhares de homens e mulheres desempregados”. Parecia estar numa peça de teatro porque suas palavras eram acompanhadas por gestos feitos com as mãos, com o olhar, com a cabeça, olhando seriamente para todas aquelas pessoas. Suava muito. que já começava a molhar a calça social com a qual estava Sua camisa de mangas compridas estava tomada pelo suor vestido. Vez por outra dona Aparecida estendia-lhe as mãos e ofertava-lhe um copo de água, aquela mesma servida aos fregueses e retirada da torneira.
E foi aí que a água passou a dominar seu discurso. “É um absurdo – bradava – que esta cidade tenha problema de abastecimento de água. Se fosse apenas racionamento, ainda seria tolerável. Mas não. São bairros inteiros que passam semanas sem águas, logo a água, esse líquido essencial à vida humana”. Dona Aparecida era a mais empolgada. “Muito bem”, gritava, sempre atendendo os fregueses na sua banca de churrasco.
Gostei da sinceridade com que ele se dirigiu às pessoas. O homem público deve falar sempre a verdade, usar da coerência, conhecer a realidade que o cerca; do contrário, estará aquém dos problemas básicos da população como a questão da água, o colapso da educação e o drama da segurança. Pena que poucas pessoas estivessem presentes!
“Um milagre pode acontecer”, falei comigo mesmo. Referia-me aos altos índices de intenção de votos que as pesquisas de opinião pública davam ao candidato do Sistema. Mas logo depois comparei o comício no Bairro dos Laminados com aquela reunião e cheguei à conclusão de que, apesar de ainda estarem faltando mais de dois meses para as eleições, seria praticamente impossível mudar aquele quadro. Tudo nos era desfavorável, a começar pelo sistema de votação em cédulas de papel que nunca garantiu a lisura de nenhuma eleição. O folclore político amazonense era recheado de histórias de eleições fraudadas, ganhas do dia para a noite. Certa vez, um deputado federal dormiu senador e acordou derrotado. Era impossível fiscalizar uma eleição em todos os municípios do Estado, um gigante pela própria natureza, com regiões de difícil acesso, longínquas, onde pessoas nasciam, cresciam e morriam sem nunca ir à cidade.
Em Manaus a situação era muito diferente. Não se ouvia falar em falta d’água, muito pelo contrário, o sistema de abastecimento de água era uma referência para o País. Técnicos de Brasília visitavam a cidade para aplicar os mesmos projetos em outras capitais brasileiras.
Minha cabeça era novamente um turbilhão de questionamentos e de reflexões. O serviço que tinha para executar, se realizado, levaria para o esgoto da história a possibilidade de romper com aquele estado de coisas, de mudar um paradigma e até mesmo de reconstruir toda uma sociedade. E isso tudo me irritava, pois vivia questionando-me sem nunca ter tomado logo de início uma atitude, decidindo-me por um único time. Vivia, como se diz na gíria popular, em cima do muro, acendendo uma vela para Deus e outra para o diabo. Já disse que esse comportamento me incomodava, aliás, envergonhava-me a ponto de não encarar as pessoas. A minha maior preocupação era mesmo com o tempo, que estava passando com a velocidade de sempre até chegar o momento de eu não poder mais fugir das minhas obrigações, já que fui escolhido a dedo para realizar o serviço.
O comício, no São Judas Tadeu, bem próximo do local em que os ônibus haviam sido incendiados, fez-me ver que as coisas não era como aparentavam ser e que algo estava errado com as pesquisas de opinião. A Polícia Militar teve dificuldades para controlar o trânsito, a via de retorno ao centro foi interditada para que as pessoas tivessem mais segurança. Das ruas, becos e vielas as pessoas saíam e seguiam em direção ao local do comício. Eram homens e mulheres, crianças e adolescentes, pessoas simples do povo, exatamente aquelas mais sacrificadas pelos problemas que sempre fizeram do chão que adotei para viver uma cidade rica com uma população pobre. As caras que se dirigiam àquele local formavam a síntese das migrações de que o Brasil tem sido vítima nas últimas décadas. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, esta cidade é também alvo de migração na Amazônia.
Manaus, por sua vez, era a preferida de todas, principalmente de paraenses que lá chegam e são logo empregados pelas empresas do Polo Industrial. A cultura era um outro ponto de destaque: em cada área da cidade, uma biblioteca fazia companhia a um posto médico. O anúncio da criação de uma Orquestra Filarmônica era o assunto do momento.
Isso tudo era o que menos importava, uma vez que era uma realidade que, no caso, ainda demoraria a chegar.
Aquela multidão significava que as pesquisas de opinião estavam totalmente erradas ou eram uma farsa. O quarteirão foi pequeno para o aglomerado que se acotovelava para ouvir o candidato. “Povo desta cidade e moradores da Zona do Desterro – foram suas primeiras palavras -, a presença de vocês demonstra que a sociedade quer mudanças, que não aceita mais a política de pão e circo, que exige providências das autoridades para os problemas que precisam de uma solução urgente. Não podemos viver sem o essencial para a manutenção da vida. Necessitamos de água, e isso teremos, caso Deus e vocês me deem a oportunidade de administrar esta cidade. Minha candidatura não tem o apoio do capital nem das forças do mal, muito pelo contrário, tem a adesão dos homens e das mulheres que fazem este chão, que aqui nasceram, chegaram, vivem, vão morrer e cujos filhos haverão de dar continuidade à história dos que sonham e lutam por um futuro melhor…”.
O discurso foi longo e, portanto, muito mais do que aqui transcrevo e durou exatos quarenta e cinco minutos. Vi, mais uma vez, sinceridade no discurso daquele homem e passei a admirá-lo ainda mais. Eram pessoas das mais diversas faixas etárias que ali se encontravam. Mas foi nos jovens que as palavras despertaram, na minha avaliação, maior efeito. A receptividade foi das melhores. Muitos carros, que por ali passavam, chegaram a congestionar o trânsito para ouvir um pouco daquelas palavras que lhe transmitiam novas perspectivas. E, mais uma vez, saí dali com a convicção de que preciso mudar a história e, mais, fazer história. Aquela aula do professor João Bosco, no primeiro período do curso de Letras, veio-me novamente à memória. “A história de toda sociedade continuava sempre tão presente. E se tudo aquilo, no futuro, até hoje tem sido a história das lutas de classes”. O velho Marx de um governante inovador viesse a ser um pesadelo? Essas e outras divagações não saíam da minha cabeça. Olhei, por um se transformasse em uma grande decepção? Se aquele sonho instante, para Carol e a vi, ali, no meio das pessoas. Ela, tão cheia de graça; e as pessoas, de esperança.
Continua na próxima edição…
*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.
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