Manaus, 19 de junho de 2025

Quadro Negro

Compartilhe nas redes:


*Francisco Calheiros

Continuação…

Difícil decisão

Foi a última vez em que fui a uma feira. Isso me era muito corriqueiro. Conhecia os trabalhadores do local. Já me considerava até amigo de alguns deles. Sempre gostei de peixe. Não propriamente só do tambaqui. As espécies amazônicas me eram um prato predileto. Aqui não há liberdade de escolha. Come-se do pão que é colocado debaixo da cela. “Este acabou de chegar da Panair”, resumiu o velho Paulo, um dos mais antigos vendedores de peixes do local. A notícia de sua morte me foi dada pelo Joaquim, seu amigo de trabalho. “Morreu para salvar a esposa e os filhos. O incêndio foi incontrolável”. O botijão de gás eliminou a vida daquele trabalhador brasileiro. Nunca deixava de passar por aquele mercadinho. A caixa era uma linda mulher. Mas agora mancava de uma das pernas. Maldito assalto que lhe tirou uma parte de sua beleza. Eu a amei a distância e tinha ciúme daquele homem, que deveria ser o marido dela.

Custou-me acreditar que aquele jovem rapaz estivesse causando medo às elites que sempre dominaram o cenário político local. Era apenas um homem. Pode ser. Mas já não estava tão só. Havia mais alguém ao lado dele. Havia o povo querendo mudança, ou, pelo menos, experimentar alguém novo dirigindo seus destinos e, como sempre acontece nos países subdesenvolvidos, resolvendo seus problemas. E novamente a dúvida. E se a esperança se transformasse não só em pesadelo, mas também em decepção? Depois de muito divagar, resolvi parar de pensar naquelas coisas; outrossim, estaria defendendo uma coisa na qual eu não acreditava plenamente, ficando claro que não se pode defender algo em que não se acredita. A mesma coisa poderia ser dita em relação, por exemplo, ao papel do professor. Eu explico: conquanto saibamos que a educação seja um ato político, há, em todo esse processo, um pouco de subjetivismo.

Somente para lembrar o Bruxo do Cosme Velho, você acha, leitor, que seja possível conciliar educação com o narcotráfico? Minha atitude estava correta em usar o dinheiro ganho com o crime organizado para comprar vale-transporte a professores vítima de um Estado opressor? Quando os profissionais da educação serão bem pagos neste País? A verdade é que havia muitos falsários em sala de aula, fingindo-se profissionais. O Estado manda prender os que se passam por médicos e advogados, mas permite que desqualificados exerçam a sala de aula. Isso sempre me foi revoltante. Se recebesse o suficiente para a minha sobrevivência, não me teria envolvido com aquelas pessoas.

Por outro lado, o que ganharia apoiando aquele candidato? Ele nem me conhecia direito. Sobraria alguma coisa? Dizem que as pessoas quando chegam ao poder logo se cercam de aproveitadores e de empresários que se envolvem em licitações fraudulentas. Às vezes bem antes do poder. O processo já começa viciado desde as primeiras articulações. Mas, em meio a essas vicissitudes psicológicas, pelo menos estava tendo o gosto de derrotar aquela máfia que há décadas estava no poder.

Enquanto em divagava, eles agiam. De volta a casa, encontrei uma correspondência jogada embaixo do relógio de energia. Tratava-se de um envelope com o meu nome. Um detalhe me chamou a atenção: dentro dele havia uma folha de papel em branco com uma mancha de sangue. Mal acabo de enrolar a ameaça, um foguetório denunciava a presença de políticos na área. Muitas pessoas se dirigiam para a área do comício em frente ao Rock Clube, famosa sede social em que eram frequentes os assaltos e outras infrações à ordem pública. Como mais um na multidão, dirigi-me ao local que estava completamente congestionado por pessoas que se prostravam ali para ver o jovem deputado.

Aproximei-me o quanto pude. Se perdesse aquela oportunidade, seria muito mais difícil cumprir o acordo. A distância o vi num corpo-a-corpo na rua de acesso ao local do comício. Sua simpatia era contagiante. As mulheres, principalmente as adolescentes, faziam um esforço danado para cumprimento oro chegar perto. Os poucos seguranças que se faziam presentes não conseguiam conter o tumulto. Aos poucos, fui aproximando-me. Era a oportunidade. Era a oportunidade. Para o meu desespero, um dos seguranças tinha sido meu aluno e me reconheceu. Por dentro da camisa, aquele objeto. Na consciência, uma conduta quase iminente. A oportunidade? O economista fazia-se presente. Agora tinha candidato à Câmara Municipal. Depois de muito custo, estava praticamente cara a cara com o jovem deputado. Ele parou e me reconheceu. Deve ter-se lembrado daquela conversa entre amigos. Via-me aliado. Justo eu, que estava ali com outros sentimentos. Pegou-me pela mão e levou-me para o palanque. Aquilo parecia mais uma festa de vitória. Um oceano de pessoas disputava espaços naquela travessa que dava acesso à São Francisco, uma das principais ruas do bairro.

Primeiro discursaram os candidatos à Câmara Municipal. João, natural de Parintins e ex-deputado estadual, fez um belo discurso. Aquele rapaz tinha futuro na política e quem sabe um dia ainda fosse senador. Suas palavras foram recebidas com entusiasmo. Viam-se no rosto das pessoas as mais diversas manifestações. Como sempre há os indesejados. Um princípio de tumulto começou a ser gerado depois que dois sujeitos, provavelmente pagos, começaram, no meio da multidão, a chamar a todos de mentirosos. A Polícia Militar, que se fazia presente, acabou com o incidente. O advogado criminalista, o cara de rato, por ser baixinho, quase não conseguiu aparecer quando começou a discursar. Suas palavras também foram de conforto. Até que o indivíduo falava bem. Parece até que estava num tribunal como advogado de acusação já que suas palavras eram rancorosas e cheias de venenos. Prometeu o razoável. Nada de projetos mirabolantes apenas para inglês ver. Destacavam-se no meio da turba várias faixas com palavras voltadas para o campo da educação.

Era a oportunidade. Um sujeito próximo de mim tinha o perfil de Fernando, com sua cara de Juca Chaves com piadas de Ari Toledo. Não ali, na frente de todo mundo. Era preciso esperar o comício acabar, e o melhor momento seria na entrada do candidato no carro. Ficaria de longe. Havia uma casa abandonada de onde o serviço poderia ser feito. Faria mais ou menos o mesmo quando do episódio Kennedy. Só que não seria de um prédio. Seria de uma casa. As possibilidades de sucesso eram de cem por cento. Somente um cego erraria um alvo tão grande daquela distância. Desci do palanque para pôr em prática as metas traçadas ali mesmo ao lado da vítima.

No pequeno percurso do palanque ao local escolhido, um sujeito aproxima-se e passa-me um papel. Era um envelope novamente endereçado a mim com uma folha de papel em branco e mancha de sangue. Não consegui ver a cara do sujeito que mais parecia um vulto na escuridão. O foguetório marca o término do comício. Era chegado o momento. Até porque o prazo que me foi dado já se tinha esgotado. Não podia mais continuar adiando tudo aquilo.

Continua na próxima edição…

*Francisco Soares Calheiros (1968-2020) foi um poeta e servidor público de Itacoatiara, Amazonas, conhecido por sua dedicação à educação e ao próximo. Nascido em uma família humilde, mudou-se para Manaus na adolescência, onde enfrentou dificuldades financeiras, chegando a dormir debaixo de uma ponte. Trabalhou em diversos “bicos” até conseguir ingressar na universidade. Inicialmente, sonhava em cursar Medicina, mas optou por Letras, influenciado pelo poeta Thiago de Mello. Calheiros foi um dos fundadores do Fecani-Festival da Canção de Itacoatiara e atuou como jurado no concurso de poesia do festival. Foi servidor público e dedicou-se a melhorar a educação, muitas vezes usando recursos próprios para reformas e compra de livros. Publicou três livros e deixou seis manuscritos prontos para publicação. Na área do Direito, destacou-se por conseguir o medicamento Zolgensma para pacientes com Atrofia Muscular Espinhal (AME) no Amazonas. Infelizmente, faleceu antes de ver a pequena Isadora, por quem lutou, receber o tratamento.
Fundou a Academia Itacoatiarense de Letras em 2009, Ele e sua esposa, Olívia, realizavam “viradões” de estudos para ajudar alunos de Itacoatiara a se prepararem para vestibulares, trabalho que ele fazia voluntariamente. Sua vida foi marcada por um profundo compromisso com a educação e a cultura, sempre buscando ajudar os mais necessitados e contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade.

Views: 3

Compartilhe nas redes:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COLUNISTAS

COLABORADORES

Abrahim Baze

Alírio Marques